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Tramaturgia de Sabenças:
uma metodologia expandida nas Artes Cênicas
Mariana Fernandes
Djavan Antério
Para citar este artigo:
FERNANDES, Mariana; ANTÉRIO, Djavan. Tramaturgia de
Sabenças: uma metodologia expandida nas Artes
Cênicas.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 55, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0207
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Tramaturgia de Sabenças: uma metodologia expandida nas Artes Cênicas
Mariana Fernandes | Djavan Antério
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, abr. 2025
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Tramaturgia de Sabenças: uma metodologia expandida nas Artes Cênicas1
Mariana Fernandes2
Djavan Antério3
Resumo
Estruturando-se em princípios de memória, narrativa, processo criativo e escrita, este artigo apresenta
a metodologia denominada “tramaturgia de sabenças”, desdobramento do conceito
corpo griot
(Fernandes, 2022), no qual corpo é compreendido pela origem de seu trajeto a partir dos movimentos
contemporâneos nas Artes Cênicas sob uma perspectiva contracolonial. Através de intersecções entre
dramaturgias expandidas e saberes de tradição oral, o estudo foi relacionado aos saberes ancestrais
das “loiceiras” (ceramistas de barro) do município de Remígio (PB), entrelaçando suas histórias com
improvisação em dança, fazendo florescer composições cênicas de movimento e um documentário
audiovisual performático.
Palavras-chaves
: Tramaturgia de Sabenças. Dramaturgias expandidas. Processo de criação. Loiceiras.
Audiovisual.
Tramaturgy of Knowledge: an expanded methodology in the Performing Arts
Abstract
Structured on principles of memory, narrative, creative process and writing, this article presents the
methodology called “tramaturgia de sabenças”, an extension of the concept
corpo griot
(Fernandes,
2022), in which the body is understood by the origin of its trajectory from contemporary movements in
the Performing Arts under a countercolonial perspective. Through intersections between expanded
dramaturgies and knowledge of oral tradition, the study was related to the ancestral knowledge of the
“loiceiras” (clay potters) of the municipality of Remígio (PB), intertwining their stories with dance
improvisation, making scenic compositions of movement and an audiovisual performance documentary
flourish.
Keywords
: Tramaturgy of knowledge. Expanded dramaturgies. Creation process. Dishware. Audiovisual.
Tramaturgia de Sabenças: una metodología ampliada en las Artes Escénicas
Resumen
Estructurado en principios de memoria, narrativa, proceso creativo y escritura, este artículo presenta
la metodología denominada “tramaturgia de sabenças”, un despliegue del concepto
corpo griot
(Fernandes, 2022), en el que el cuerpo es comprendido por el origen de su trayectoria a partir de los
movimientos contemporáneos en las Artes Escénicas bajo una perspectiva contracolonial. A través de
intersecciones entre dramaturgias expandidas y saberes de tradición oral, el estudio se relacionó con
los conocimientos ancestrales de las Loiceras (artesanales de barro) del municipio de Remígio (PB),
entrelazando sus historias con la improvisación dancística, haciendo florecer composiciones de
movimiento escénico y un documental audiovisual performativo.
Palabras clave
: Tramaturgia del conocimiento. Dramaturgias expandidas. Proceso de creación. Vajilla.
Audiovisual.
1 Revisão ortográfica e gramatical realizada por Naíla Cordeiro Evangelista de Souza. Mestrado e Licenciatura
em Letras, com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2 Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialização em
Dramaturgias Expandidas do Corpo e dos Saberes Populares pela Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB). Especialização em Dança pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
marianasanfer13@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6119470223442878 https://orcid.org/0000-0002-8777-8135
3 Doutorado e mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduação em Artes
Cênicas pela UFPB. djavananterio@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4093858420993734 https://orcid.org/0000-0001-5679-9067
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Introdução
A partir de uma tecitura proposta pela vivência de brincadores-fazedores-
pertencentes das culturas de tradição oral nordestinas e de suas presenças no
campo das artes cênicas, este estudo se direcionou a tecer os fios fundamentais
que compõem a metodologia de pesquisa em artes cênicas, chamada
Tramaturgia
de Sabenças
, fruto do conceito
Corpo Griot
(Fernandes, 2022), desenvolvido
durante o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), de 2020 a 2022. Tal metodologia foi maturada no curso de
especialização em Dramaturgias Expandidas do Corpo e dos Saberes Populares,
na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), entre os anos de 2023 e 2025. O
estudo contou com o financiamento por meio do edital de fomento e incentivo à
cultura por meio da lei Paulo Gustavo, no estado da Parahyba, em 2023.
Nascida no contexto de uma pesquisa em dança, numa situação êmica4 junto
aos saberes de tradição oral, inicialmente tendo como chão os saberes da
Capoeira Angola, a
tramaturgia de sabenças
apresentou-se como uma
possibilidade de organização e desenvolvimento entre o trabalho em campo nas
comunidades de tradição oral, por meio do convívio em suas práticas cotidianas;
os laboratórios criativos, onde experimentamos improvisos corporais a partir dos
motes emergentes de nossa experiência em comunidade em paralelo à montagem
cênica; e a escrita acadêmica, na qual tecemos a experiência vivida nos dois
primeiros eixos (comunidade e laboratório), em reflexões, questionamentos,
poéticas e lógicas do estudo. Esses três fios/eixos juntos, formaram uma
mobilidade de “tear”, numa espécie de vaivém tramador em que cada fio tecia o
grande corpo que ia se configurando enquanto produção artístico-acadêmica.
Na espiral reflexiva deste estudo, buscou-se inscrever sua perspectiva
discursiva a partir do conceito de contracolonização, cunhado por Antônio Bispo
dos Santos, o qual compreende que os modos e organizações originárias não se
deixaram colonizar, a exemplo dos quilombos (Bispo dos Santos, 2023). Assim
sendo, compreendemos que as demais organizações e expressões de matrizes
4 Abordagem que visa compreender uma cultura a partir dos seus próprios referenciais. É uma forma de olhar
para as coisas de dentro da cultura, em seus próprios termos. (Rosa; Orey, 2012)
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africanas e pindorâmicas, como o candomblé, a capoeira, o coco de roda, e tantas
outras sabenças que se geriram e mantiveram a partir de um modo próprio de
existência, organicidade e política, também não se deixaram colonizar. E é mirando
nessa perspectiva que o presente estudo teceu suas compreensões e proposições.
Com o intuito de espraiar as possibilidades de alcance da
tramaturgia de
sabenças
enquanto ferramenta metodológica, o estudo foi relacionado a dois
novos campos. O primeiro foi com o rompimento das bordas do contexto
tradicional da capoeira Angola, sendo conduzido a tecer, desta vez, com os saberes
ancestrais das
Loiceiras
(louceiras ou ceramistas de barro) do município de
Remígio (PB). O segundo foi com a estreia na produção audiovisual, com a tarefa
de ter, enquanto um dos resultados, a produção de um documentário, pelo fato
de estar vinculado ao edital anteriormente mencionado, localizado na área de
pesquisa e produção audiovisual.
Dramaturgias Expandidas
Remexendo inquietações e perguntas no campo das Artes Cênicas, refletimos
acerca da dita expansão da dramaturgia. Em seu conceito clássico, o termo
dramaturgia fora propagado a partir de uma cultura hegemônica, estruturando-se
assim “uma valorização daquilo que está inscrito dentro do paradigma da escrita
alfabética” (Araujo; Dinodet, 2021, p. 41). Fruto de uma cultura “textocentrada”, a
dramaturgia ocupou historicamente a função de compor peças teatrais
exclusivamente a partir de uma escritura alfabética e, portanto, geradora das
ações em cena. Sugerindo estruturalmente uma hierarquização entre texto, ator e
narrativa.
Com movimentos modernos e contemporâneos nas artes da cena, tal
conceito vem se atualizando a partir do reconhecimento de um conjunto de
elementos que constituem o processo de criação cênica e que apontam para a
existência de uma dramaturgia, apresentando-se de maneira ampla e complexa
em cada situação compositiva das variadas vertentes cênicas e seus produtos,
como espetáculos de dança, performances, concertos musicais, cinema e outros.
Para Luciana Lara, diretora e coreógrafa, no universo da dança o conceito de
dramaturgia tem sido utilizado muito pouco tempo. Emprestado do teatro,
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o uso do termo parece vir de uma necessidade de reconhecer que em algumas
concepções coreográficas da atualidade um enredo construído durante a
pesquisa artística que permeia e direciona a maneira como todos os elementos
constitutivos dessa linguagem artística são ordenados. Segundo a autora, “a
dramaturgia rege as ideias, soluções cênicas, motivos de movimento, tudo que
constitui o espetáculo” (Lara, 2010, p. 133).
Por conseguinte, percebemos que as fissuras nos conceitos, outrora, rígidos,
nas artes da cena, abrem espaço a partir do desejo de expandir, mas também da
necessidade de enxergar o que se tem e o que já se praticava, apesar do receio de
aderência aos termos consagrados pelos vieses clássicos da arte. Desse modo, a
dramaturgia expandida “modifica o que instiga a olhar o que contém e o que
pode ser” (Araujo; Dinodet, 2021, p. 37). Ou ainda, “a palavra ‘expandida’, como um
adjetivo que denota características que não deixam o conceito de dramaturgia se
encerrar em si mesmo e que permite amplitude de chamamentos. As
dramaturgias expandidas provocam interrogações” (Araujo; Dinodet, 2021, p. 37).
No âmbito do cinema, Doroteia Bastos nos provoca a “pensar numa
dramaturgia do corpo vivo que mantém vínculos de naturezas diversas, como a
mediação de um fluxo incessante de imagens, como um modo de organização, de
nexo, de ligação” (Bastos, 2014, p. 9). No que tange às linguagens artísticas
trabalhadas em nosso estudo, como a dança e o cinema, corroboramos as
seguintes reflexões da autora:
Uma dramaturgia relacionada ao discurso da imagem também está
relacionada ao movimento de criação cênica voltado à própria imagem,
não mais à representação de um personagem escrito em um roteiro, mas
o hibridismo entre corpo, texto e elementos visuais, intensificado com o
uso de novas tecnologias e meios de comunicação. Neste ponto, a
dramaturgia se expande para além da mera execução tecnicista, que
busca uma representação por imitação e apresenta aspectos de criação,
a partir da poética das imagens capazes de produzir narrativas de
construção simbólica de forma que a dramaturgia se torna a própria
tessitura da cena (Bastos, 2014, p.9).
No fortalecimento ao sentido de uma dramaturgia expandida composta a
partir da imagem, por exemplo, optamos por um viés criativo embasado na
amplitude intuitiva em consonância à improvisação pela oralidade. Desse modo, o
alargamento dramatúrgico, em nosso processo de criação, desenhou-se também
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pelo jogo entre as imagens das mestras loiceiras, a paisagem do território (quintais
e demais espaços) e as cenas de dança. Desse modo, acessar possibilidades
dramatúrgicas que emergissem anteriores a referência textocentrada foi
indispensável a este estudo.
Para analisarmos o cenário das artes cênicas sob o foco das dramaturgias
expandidas, é preciso que façamos ainda pelo menos dois outros recortes
indispensáveis para a compreensão do conceito de dramaturgias expandidas: a
nossa localização geográfica e, em consequência, as noções étnicas. Nos
localizamos na América Latina, Brasil, neste estudo, mais precisamente no estado
da Parahyba. Logo, a partir dessa orientação geográfica, política e étnica, o que
temos a respeito das mais variadas expressões de arte em nosso território?
Refletindo junto a Araújo e Dinodet (2021, p. 39), seguimos com os
questionamentos: “como escolher outras genealogias mais abrangentes de
milhares de anos, de culturas não coloniais? Conseguimos ter uma mirada que
escape da linearidade histórica, do cânone?”.
Na década de 1990, a artista e pesquisadora baiana Inaicyra Falcão propôs
em seu estudo de doutoramento o conceito de “dramaturgia ancestral”.
Investigando nas artes a intimidade das relações entre corpos multicoloridos e
suas ancestralidades, Inaicyra trata da mobilização, ou mobilizações, de diferentes
territorialidades e temporalidades, reivindicando, por sua vez, maneiras outras de
se narrar histórias. Tal proposta abria caminhos para os movimentos intensos
de reaver o conceito de dramaturgia, apresentando inquietações como resposta
as perguntas que fizemos no parágrafo anterior. Emergindo com uma percepção
cosmológica, a autora aponta a dramaturgia ancestral como um conjunto de
fatores que constituem o artista cênico que vai além da premissa de uma escritura
alfabética, mas leva a condições primordiais de nossa existência. E que, portanto,
fazem-se indispensáveis no criar e refletir cena.
A memória aliada à qualidade expressiva do movimento corporal abrange
a atenção ao aspecto melódico, ao rítmico, ao impulso, ao jogo, que
proferem outras narrativas. Dessa forma, permitem a ressignificação
ancestral, no processo transformado em ações vinculadas à história
individual a uma dramaturgia pessoal (Santos, 2015, p. 3).
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É justamente sobre esses elementos constitutivos do corpo vivo, que pulsa e
tem memória, que não o conceito de dramaturgia se amplia, mas as práticas
no campo das artes se redimensionam. Criando não apernas fissuras, mas tecendo
confluências entre cena, pesquisa e os saberes de tradição oral. Assim, refletindo
a partir dos movimentos contemporâneos nas artes cênicas no Brasil sob uma
perspectiva contracolonial, interessa-nos os diálogos entre as dramaturgias
expandidas e os saberes de tradição oral, pensados e articulados no e pelo corpo
(Bispo dos Santos, 2023; Fernandes, 2022). Compreendendo que o campo das
artes cênicas tem seus próprios repertórios semânticos, assim como a academia
tem sua maneira de regrar os conhecimentos, as expressões artísticas originárias
(pindorâmicas e africanas) “têm seu dicionário”, como diria mestre Vicente Ferreira
Pastinha.
No fluxo de reaver os meandros da dramaturgia, e por que não das artes
cênicas, evocamos a presença dos
griots
nas práticas primordiais cênicas em um
dos berços da humanidade, os territórios africanos (Sotigui, 2006). Este tem sido
um de nossos exercícios no campo das artes e da academia, o de elucidar a
existência de fatos históricos e territoriais, de que as práticas cênicas existiam
em culturas originárias, logo, seguir mantendo um único exemplo dominante de
exercer a arte, na verdade, é reforçar o sistema colonial e negar a ancestralidade
da arte (Fernandes, 2022).
O escritor malinês Amadou Hampaté traz em seu apanhado histórico e
cultural o conceito de tradição em África, especialmente em seu território e
arredores, apontando diversas práticas orais milenares, entre elas, as práticas
cênicas exercidas pelos
Griots
.
Se as ciências ocultas e esotéricas são privilégios dos “mestres da faca”
e dos chantres dos deuses, a música, a poesia lírica e os contos que
animam as reações populares, e normalmente também a história, são
privilégios dos griots, espécies de trovadores ou menestréis que
percorrem o país ou estão ligados a uma família (Hampaté Bâ, 2010,
p.193).
Os animadores públicos (
dieli
em bambara), mais conhecidos pelo nome
francês de
griot
, são os responsáveis por guardar e transmitir a história dos reis e
do seu povo, treinados na arte da palavra desde a infância. Oriunda do Império de
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Mandengue, onde a língua nativa era o malinque ou bambara, a origem dos
griots
é em Mali, mas estudos apontam que, com a colonização francesa na África
Ocidental, os griots enfrentaram muitas adversidades para manterem a história e
a cultura de seu povo (Hampaté Bâ, 2010; Fernandes, 2022).
A existência e as práticas dos gritos comprovam que as artes cênicas, assim
como os conceitos de dramaturgias, poderiam e deveriam ser aplicadas de
maneira ampla e plural, estruturadas junto às culturas originárias e suas produções
orais, imagéticas, simbólicas e mnemônicas. Ao contrário desse cenário, por anos
a fio, artistas e pesquisadores têm mantido os repertórios cênicos e científicos
com as mesmas fundamentações hegemonias dominantes. Os saberes e as
práticas originárias, na maioria das vezes, são encurralados nos conceitos de
inclusão, mas somente se estiverem submetidos às formatações e lógicas
predominantes.
Saberes de Tradição Oral
As
sabenças
resistem, expressam-se e subvertem de maneira integral e
complexa, pois são o que são em sua natureza própria, em seu sotaque próprio e
em suas percepções próprias. Funcionam a partir de princípios cosmológicos, e
mais do que epistemologia, os saberes de tradição oral são portais de retorno a
tudo o que vitaliza e nos aproxima de um modo de existir a partir da diversidade,
da organicidade, da circularidade e da presença em “comum-unidade”. Assim
sendo, as artes da cena precisaram fissurar para expandir porque se estruturaram
sob conceitos centrados em culturas hegemônicas, numa forma de existir que
separou e hierarquizou corpo e mente, pensamento e emoção. Uma monocultura
cuja base se estabeleceu através da colonização de tudo o que não fosse espelho
do seu pensar e que estivesse longe de suas dominações territoriais, estéticas,
éticas e racionais.
Renegada e subestimada durante centenas de anos, a chamada “cultura
popular” historicamente foi concebida como uma forma de arte inferior, “sem
escola e/ou fora dos padrões clássicos”. Tal noção ainda se mantem atualmente,
nas camadas mais estruturantes das artes, que fomenta, por exemplo, uma ideia
da mera aprendizagem de passos coreográficos que, oriundos das sabenças, são
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apropriados e explorados em laboratórios, com a intenção de “limpá-los” para
transformá-los em espetáculos. Talvez esse processo de higienização tenha sido
justamente o que enclausurou os conceitos e as práticas nas artes da cena e agora
estejam causando a necessidade de expansão. Talvez seja esse “borrado” entre as
fronteiras de técnica e espiritualidade, condições indissociáveis nas expressões
artísticas e científicas originárias até então nomeadas de
impureza
, que os
movimentos contemporâneos de arte estejam chamando de expansão; e a
academia, por sua vez, esteja chamando de epistemologias.
Sob a perspectiva da literatura, a congadeira e escritora Leda Maria Martins
apresenta uma percepção sábia e generosa: o conceito de oralitura. À luz de uma
discussão contra-hegemônica da palavra escrita, fundantes da filosofia ocidental,
em detrimento da diversidade de formas escriturais das comunidades de tradição
originárias, sobretudo as de tradições africanas, Martins afirma:
Na literatura escrita no Brasil predomina a herança dos arquivos textuais
e da tradição retórica europeia. Mesmos os discursos que se alçaram
como fundadores da nacionalidade literária brasileira, no século
dezenove, tinham na série e dicção literárias ocidentais sua ancora e base
de criação literária. A textualidade dos povos africanos e indígenas, seus
repertórios narrativos e poéticos, seus domínios de linguagem e modos
de aprender e figurar o real, deixados à margem, não ecoaram em nossas
letras escritas (Martins, 2003, p. 63).
Espraiando seus estudos para o campo da performance, a autora encontra
nos conceitos de performance ritual, uma jazida de elementos, textuais, sígnicos
e mnemônicos, capazes de enunciar e inscrever o corpo, o tempo e os saberes
das ciências afro-diaspóricas:
O significante oralitura, da forma como o apresento, não nos remete
univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da
tradição verbal, mas especificamente, ao que em sua performance indica
a presença de um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente
constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade.
Como um estilete, esse traço cinético inscreve saberes, valores,
conceitos, visões de mundo e estilos (Martins, 2003, p. 77).
É a partir da memória e das inscrições verbais e corporais que tecemos os
nossos processos de criação, tanto cênico quanto acadêmico, junto aos saberes
da comunidade tradicional das loiceiras de Remígio, na Parahyba. Compreendendo
a magnitude dessa arte tradicional e a vasta teia de conhecimentos transmitidos
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em sua existência, faremos um recorte acerca de alguns de seus fundamentos a
fim de elucidar o que sugere a autora:
[...] o corpo principalmente como local de inscrição de conhecimento,
conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia;
nos solfejos da vocalidade, assim como os adereços que
performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete
não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento
de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do
conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, tecnológico, etc.
[sic] (Martins, 2003, p. 64).
Em se tratando da sabença do barro, das loiceiras, a expressão do corpo se
na labuta do trabalho, que antecede inclusive a escultura das peças. Está na
relação do corpo com o território, com a terra, com a ancestralidade, com o
feminino, com os valores de troca pelo trabalho, nos textos orais, nos
conhecimentos e técnicas passados de geração em geração, “da boca ao ouvido”
(Hampaté Bâ, 2010, p. 190), assim como na aprendizagem pela observação dos
gestos. Inscrições que se dão na repetição, na retirada e na peneiragem do barro,
na produção da massa, no modelar da peça, no alisar, secar e, por fim, no queimar
da peça. Mas também nos simbolismos internos da comunidade, como a presença
da imagem do Padre Cícero, que dentro da tradição das loiceiras, tinha, e ainda
tem, a função de “santo do pau ôco”, para resguardar uma parte do dinheiro
apurado da venda das louças. Todas estas são escritas e leituras que antecedem
e transbordam a grafia alfabética, e que nos inspiraram no processo criativo desta
pesquisa.
Tramaturgia de Sabenças
: uma metodologia expandida
A
tramaturgia de sabenças
derivou-se da necessidade de estruturar
processos criativos na cena e na escrita, isso porque o contexto da nossa origem
foi primeiramente nos saberes de tradição oral. Um atravessamento de fronteiras
dos quintais à universidade, com a missão de sobreviver no curso de licenciatura
em Dança com o chão da capoeira Angola. Aqui reforçamos a trajetória, pois o
cerne da perspectiva que se apresenta nesse estudo inclina-se sobre de onde se
parte para criar dança, teatro, performance, dramaturgias e escritas acadêmicas
nas artes cênicas.
Ao longo do percurso, fizeram parte do estudo algumas metodologias de
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pesquisa e literaturas de cunho considerados também metodológicos, entre elas,
a pesquisa-ação e a pesquisa participante. Contudo, foi a partir da etnografia
método de pesquisa que valoriza a dimensão sociocultural dos acontecimentos
estudados que chegamos à autoetnografia, a qual elegemos enquanto suporte
metodológico mais viável para o desenvolvimento deste trabalho. Segundo
apontam Santos e Biancalana (2017), a autoetnografia se baseia na observação e
na descrição do objeto de pesquisa, e o pesquisador passa a compreender-se
também como parte do seu foco de estudo (Santos; Biancalana, 2017, p. 5).
Em nosso caso, o processo de criação nas artes da cena e a maneira como
o tornamos uma escrita científica surgiu a partir da intimidade com o objeto
pesquisado e pela proposição de estruturar, desde a escrita, um processo
duplamente poético. Partimos da premissa de que nos saberes de tradição oral, a
aprendizagem se estabelece de maneira circular, poética e orgânica (Martins, 2003;
Bispo dos Santos, 2023).
Foi desenvolvendo pesquisas acadêmicas nas artes da cena, partindo de
sabenças (saberes e experiências de tradição oral), na busca por manter o “nosso
sotaque”, ou seja, as especificidades íntimas de nosso estudo junto à oralidade,
aos costumes e à territorialidade, que compreendemos que ter uma referência
teórica metodológica não garante um processo criativo cênico e científico
estimulador de nossa criatividade e fortalecedor de nossa identidade. De repente,
nós, que viemos dos chãos da tradição, ficamos hesitantes diante do desafio de
apresentar as inscrições que vivenciamos na oralidade frente a tantas normas
acadêmicas. A tramaturgia de sabenças, em termos teóricos, foi nutrida pela
autoetnografia, porém vem encontrando sua maneira de se espraiar, na
atualização e no aprofundamento de nossos processos criativos (cênicos e
científicos).
Tecemos com confiança e fluidez quando nos ancoramos em nossas
narrativas e permitimos a poética sem temer o rigor da norma, pois a narrativa é
o texto da memória:
A memória te autoriza a narrar uma história sobre o mundo que você
vive, a memória te autoriza a criar uma narrativa sobre o mundo. Se você
não tem memória, você vai ficar citando bibliografia. Nesse sentindo vale
a pena pensar em produção, é uma produção de memória. Produzir
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memória sobre si como coletivo, como ser social, ela é um fenômeno
maravilhoso, é uma ação política ativa. A memória tem a capacidade de
te pôr de diante das afrontas de maneira crítica, a memória é a
consciência crítica (Krenak, 2020, transcrição5).
Substituímos a letra “d” por “t” na construção de um sentido próprio deste
estudo. A compreensão de “trama”, ganhou aqui dupla força: a de estar relacionada
a um “conjunto de fios que formam uma teia ou tecido”, e a “reunião daquilo que
constrói uma narrativa dos acontecimentos”. Desse modo, decidimos dar atenção
à maneira com que acontece no vaivém entre as sabenças - composição cênica -
escrita científica.
No caso da metodologia tramaturgia de sabenças, o processo criativo nasce
de motes que vivenciamos no cotidiano em comunidade e que nos instiga a
compor em cena. Simbologias, elementos, estrutura ou fundamentos da tradição
que são vivenciados formam os argumentos disparadores da criação. Assim, a
composição cênica e a escrita científica se configuram numa lógica que conecta e
organiza tais escolhas. Memórias contadas e vividas se entrelaçam com o
imaginário, as intuições, as intenções e as soluções, estabelecendo relações entre
o visível e o invisível, articulando camadas da escrita ao processo criativo e vice-
versa.
Para iniciarmos as práticas da tramaturgia de sabenças, começamos por
escolher um elemento. O elemento pode ser um movimento, uma ação gestual,
um objeto, uma narrativa, qualquer coisa significativa de determinada tradição oral
que seja um motivo disparador para o curiosamento de mais detalhes deste, e
que, portanto, gere o desejo de criar, cenicamente e/ou cientificamente. A partir
dessa escolha, espraia-se a percepção que a comunidade tem sobre esse
elemento, à medida que novas percepções poéticas e metafóricas emergem de
associações e mediações entre o mote-objeto da pesquisa e o processo criativo,
acionando a corporalidade da escrita: “às vezes uma palavra só dança ou desenha
linhas desordenadas no espaço como ânsia de grifar um chão comum” (Araujo;
Dinodet, 2021, p. 44).
Ao refletirmos sobre as possibilidades de expansão da escrita, começamos
5 Disponível em: https://youtu.be/KRTJIh1os4w?si=JobhnnNRr_Cs-SjQ . Acesso em: 12 dez. 2024.
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por reconhecer as muitas formas de inscrições originárias (pindorâmica e africana)
que foram deixadas à margem, e que em suas literaturas cosmológicas não
separam o movimento da palavra. Inventar caminhos poéticos associados ao
escrever, tornando o processo de escrita científica um processo também artístico,
uma vez que, sendo submetidos a uma tradição textocêntrica, como a academia,
faz-se imprescindível uma proposição no campo expandido da escrita (Evaristo,
2017).
Nos voltejos das etimologias, tentemos uma outra aproximação. Em uma
das línguas banto, do Congo, da mesma raiz, ntanga, derivam os verbos
escrever e dançar, que realçam variantes sentidos moventes, que nos
remete a outras fontes possíveis de inscrição, resguardo, transmissão e
transcrição de conhecimento, práticas, procedimentos, ancorados no e
pelo corpo, em performance (Martins, 2003, p. 64).
Tanto a dramaturgia quanto o texto acadêmico requerem que façamos
escolhas, apontemos critérios, fundamentos teóricos, aplicabilidade da
proposta/ideia, articulações entre prática e teoria, ação e texto, com a finalidade
de criar uma lógica e uma coerência própria de cada processo criativo.
Identificamos na tramaturgia de sabenças a presença de características
metodológicas que permeiam todo o processo. No entanto, não se trata de
propormos aqui uma receita na qual um determinado passo-a-passo, se seguido,
levará a um resultado exato e específico. Ao invés disso, compartilhamos fios que
vêm tecendo nossa trama em criações cênicas e escritas acadêmicas (Fernandes,
2022).
O mote-objeto do estudo, na metodologia proposta, funciona não somente
enquanto um fluxo temático, mas como estrutura dramatúrgica do processo
criativo e roteiro organizador do texto acadêmico. Assim, são eixos basilares da
pesquisa ancorada na tramaturgia de sabenças: a
oralidade
, tendo as falas dos
mestres e mestras enquanto citação, que reforça as sentenças escritas e que
certificam a cientificidade do estudo; a
memória
, enquanto recurso indispensável
à verdade do corpo em cena e fundamentação da escrita; a sequência circular,
não linear, entre as células coreográficas/cenas/atos, assim como os capítulos e
tópicos do texto; o recurso da poética, não como fuga de argumento, mas como
potencialidade vital do texto; e a utilização de outras linguagens textuais, como o
desenho, o poema e outros.
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Tramaturgia de sabenças, então, configura-se enquanto uma metodologia
que engendra uma escrita expandida fissurada pelas cosmologias originárias,
trasbordada às margens e recuos, vinda da experiência, fundamentada na
memória, antecessora dos “papeis” em branco do Word, pois vem do corpo em
movimento. Portanto, tece também uma forma de dramaturgia ao escrever o texto
científico, mas desta vez fazendo o caminho inverso: o corpo em movimento é
quem verbaliza a grafia alfabética.
Parahyba Profunda: processo criativo na construção do filme
Primordialmente, a tramaturgia de sabenças teceu seus processos criativos
e produziu suas reflexões, em termos artísticos, pela linguagem da dança, e em
termos culturais, a partir da capoeira Angola. No caso deste estudo, houve dois
novos desafios: 1) a construção de um filme, linguagem até então não exercida em
nossas produções; e 2) o tecimento artístico a partir da sabença do barro.
Do desafio surgiram adequações, que se transformaram em uma
oportunidade ao trazerem ainda mais coerência à metodologia, que o cerne do
estudo compreende “o corpo principalmente como local de inscrição de
conhecimento”, e o que nele se repete enquanto: “técnica e procedimento de
inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este
estético, filosófico, metafísico, tecnológico, etc. [
sic
]” (Martins, 2003, p. 64). Ampliar
a linguagem artística do segundo fio tramador (laboratório/processo criativo) com
a construção do filme revelou um corpo muito mais livre em suas transcrições e
narrativas, reinaugurando espaços de criação em que a improvisação em dança
chegou através de um fluxo fundamentado, potencialmente, pela memória.
O trabalho que a tramaturgia de sabenças exerce assemelha-se à função do
tear, conectar fios (ideias, sentidos, cenas, argumentos) enredando narrativas,
trabalho que só é possível através do movimento, pela mobilidade do vaivém dos
fios e do corpo. Uma das possibilidades que se oferece é a de evocar textos e
movimentos de elementos que supostamente não falam ou que, por si só, não se
movem, e tecer narrativas dançadas junto a eles. Em nossa pesquisa de mestrado,
cujo mote-elemento foi o instrumento berimbau, nós distinguimos cada uma de
suas partes e compusemos o nosso processo coreográfico e textual. No caso da
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presente pesquisa, o mote foi o barro e o que se estendeu dele: a narrativa das
mestras, as relações com o espaço, as memórias próprias da intérprete etc.
E se ao longo de nossos estudos presenciamos o descortinar de uma
ferramenta metodológica, inclinando nossa atenção ao “como”, vimos, ainda, a
importância de nos atentarmos igualmente ao “com”. Com quem tecemos?
Transbordando ao entendimento de falar “sobre” alguma comunidade de tradição,
interessa-nos tecer “a partir” e “com” comunidades de tradição. É um
chaveamento artesanal e que aparentemente pode passar desapercebido, mas
que nos evoca a unidade, o pertencimento, portanto, o aprender e o criar de
maneira circular, sem a ideia de um trabalho “assistencialista”, em que alguém
externo vem para dar protagonismo ou visibilidade a determinada cultura de
tradição.
Para elucidar o processo criativo, trouxemos o contexto das loiceiras, que em
si resguardam a poética que teceu o enredo do filme. Além disso, escolhemos três
frames
do filme para discutirmos acerca do mote principal e seu espraiamento
em situação criativa.
As Loiceiras: contexto, poética e política
Adentrar no território da tradição das loiceiras de Remígio é como estar nos
corações das avós paraibanas. Tem cheiro, tem aconchego, tem firmeza e doçura
na fala. Tem nutrição, tem história, tem um sotaque que vai resgatar a mais ínfima
memória da vida na Terra. Mesmo com a chegada de novas tecnologias, as loiceiras
preservaram e preservam uma energia telúrica que nos fazem sentir que “a vida
não é útil”, muito menos “uma carreira” (Krenak, 2020; Antério; Fernandes, 2023).
A vida é o nosso tempo-espaço de ser e tecer caminhos de retorno à nossa
essência criativa e criadora. Criativa, pela capacidade de gerar movimento de vida,
de tecer estratégias de sobrevivência em meio a um contexto de contrastes. E
criadora por existir nos solos férteis da força feminina, desde seu elemento
essencial, a terra, até os seres mulher que, por gerações à fio, nutrem e (se)
mantem (n)essa tradição (Fernandes, 2022).
Para começar, o bioma onde residem essas mulheres contradiz o que
historicamente fora afirmado pela mídia nacional quanto às condições geográficas,
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climáticas e humanas. Para chegar até a cidade de Remígio (PB), encaramos uma
paisagem verde e subimos serras num movimento sinuoso, como num aviso de
que a região do Brejo guarda seus mistérios, suas belezas contrastantes. Entre um
clima seco e frio, chão vermelho de barro e cachoeiras douradas, gerânios
abundantes e uma gente de sorriso largo, apesar de suas labutas desiguais, reside
ali um povo tão antigo quanto o próprio território parahybano. Mesmo quem não
dança, percebe a si mesmo rodopiando entre tais paisagens e se pergunta: como
pode?
Mestras6 Josefa, Zefinha, Lia, Vânia, Marinês e Claudiane são todas nativas
desse território. Todas permanecem sob memórias de luta, resistência e poética.
Elas nos contam, sem titubear, cada trecho de suas trajetórias junto à sabença do
barro. Histórias de fome e banquetes com um ou dois ingredientes, mas todos
fertilizados com essa matéria primordial. Memórias que nos contam sobre como
é manejar o barro e, por questões latifundiárias, ter o seu fazer impedido ou
dificultado. Como pode? Como pode quem vive da terra não poder apanhar dela
um bocado? Elas nos contam sobre as proibições de fazendeiros para que elas
não retirassem o barro para a feitura de suas peças. Elas nos contam também
sobre tempos em que o acesso à água era difícil, apesar de viverem próximas a
igarapés e águas corredeiras. Elas nos contam, ainda, acerca de distâncias, e não
acessos, do orgulho e da vergonha de serem loiceiras, de serem quem são.
Histórias ocultadas pelo fato de serem tão íntimas e difíceis de lidar, mas
também narrações que se seguem de gargalhadas e pertencimento delas próprias.
Histórias tão em comum entre todas que mais se assemelham a um enredo
coletivo ensaiado, porém, se repararmos bem, cada uma carrega em si suas
peculiaridades e nuances. Enredos de fé, contrastes, superações e um vaivém que
circula entre dizer o quanto esse ofício é árduo e, ao mesmo tempo, é a razão de
suas vidas.
Num trabalho de campo que envolveu a escuta de corpo inteiro, tivemos a
oportunidade de gravar as falas das mestras e iniciar o processo criativo da dança
6 Na cultura de tradição oral, a mestria corresponde ao reconhecimento da comunidade a determinado
membro, pela sua atuação comunitária, saber e experiência em determinado fazer ou expressão. (Sotigui,
2006; Fernandes, 2022)
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simultaneamente. A costura dramatúrgica desenhou-se entre as vozes das
mestras, o corpo da intérprete em movimento e os equipamentos tecnológicos de
captação da cena. Essa trama percorreu todo o processo criativo: o corpo como
mediador entre a memória e o concreto; a dança enquanto ação modeladora da
poética contida nas falas-vozes das mestras; os recursos tecnológicos (câmeras e
gravador de som) no lugar de lentes registradoras de paisagens imagéticas e
sonoras; e o processo de edição do filme como escrituração das escolhas, da
poética e enquanto camada dramatúrgica expandida.
Para a ocasião do artigo, selecionamos três
frames
do filme, até o momento
em fases finais de construção, elegendo-os enquanto resultado de pesquisa, sobre
o qual elaboraremos reflexões analíticas. A escolha desses
frames
se deu pela
presença mais precisa entre a palavra e o movimento, referindo-se à voz nas
narrativas das mestras e ao corpo em “estado de dança”. O que visamos refletir
no processo de criação sai um pouco do que comumente aguardamos de um
documentário, no qual o jogo de imagens fica mais restrito à imagem da pessoa
entrevistada. Saímos da perspectiva do documentário tradicional e o personagem
exemplar, em que se faz uma generalização de uma cultura ou situação coletiva a
partir de um único personagem. Ao invés disso, o que se pretendeu nesta expansão
criativa foi a produção de um documentário performático.
Na primeira etapa criativa do primeiro
frame
7, fomos às casas das mestras
Zefinha, Vânia e Lia. Na cena inicial, vê-se a mestra Zefinha e a peça que ela mais
gosta de fazer, a panela grande. Em seguida, a imagem de uma peça sendo
modelada, ainda no estado de massa cerâmica. Nessa cena, mestra Lia é quem
molda, enquanto sua irmã, mestra Vânia, relata sobre a técnica e a arte ancestral
de lidar com o barro. No fluxo da cena, uma alternância entre as imagens da
peça sendo modelada e a dança acontecendo, tendo a voz de Vânia como
paisagem sonora – interna, para a intérprete, e externa, em termos do trabalho de
edição.
No que se refere à composição em dança, tivemos como motivos de criação,
além das narrativas faladas, o espaço, o local onde é feita a retirada do barro.
7 Disponível em: https://youtu.be/Xj0Abmw-eNw?si=8fvPitrIjaNpnKeX. Acesso em: 14 fev. 2025.
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Assim como esse, outros elementos investigativos emergiram, tais como: a textura,
a aridez e a cor, gerando um “corpo aterrado”, poroso no contato com o elemento
terra, dançando as palavras vozeadas das mestras.
Sob a condução da narrativa da mestra Zefinha, a primeira cena do segundo
frame
8 traz de pronto na imagem aprendizados difíceis a respeito da produção
propriamente dita da loiça, os resultados esperados, porém nunca desejados,
como a quebra das peças na etapa da queima. A fala de Zefinha, porém, revela
outros aprendizados passados de mãe para filha. Na segunda cena, a imagem
da narrativa dançada em alternância com as impecáveis panelas de barro. Na
sequência, seguimos com a cena da dança embalada pela voz da mestra Zefinha,
que fala sobre “sustentar”, não apenas financeiramente, mas sobretudo ser
sustento no emocional pessoal e familiar, a casa com seu ofício de loiceira. Ela
também aborda a etapa que antecede todo o processo de produção das peças, a
difícil lida da retirada do barro, bem como a preparação da massa cerâmica.
A composição em dança nesse segundo frame se deu na relação com o
trabalho ancestral, passado de mãe para filha, e o entorno da labuta das loiceiras.
O espraiar aconteceu na construção/desconstrução das peças, num vaivém entre
as falas da mestra Zefinha e as imagens antagônicas que se deram entre as peças
quebradas, as peças inteiras e o barro ainda a ser beneficiado. Derramando-se no
corpo da intérprete em movimentos de catar e juntar os fragmentos do barro,
sustentar e equilibrar o mote in natura em expansão criativa.
No terceiro
frame
9, temos na primeira cena, a imagem do pôr do sol,
momento em que visitamos a casa das mestras Marinês e Claudiane (mãe e filha),
que narram a respeito da fome e da falta d’água. Na sequência, a imagem da
intérprete dançando numa poça de lama/barro, e a paisagem sonora continua com
a contação da história de Claudiane. Pela primeira vez o elemento água surge nas
cenas. Na alternância entre a imagem da intérprete dançando na lama e no local
de retirada do barro, a narrativa da mestra Claudiane traz várias paisagens internas,
da distribuição do trabalho familiar, da luta de sua mãe para criar os filhos, e a
8 Disponível em: https://youtu.be/9kmADiXyabE?si=i-oGrHG6LePIw77e. Acesso em: 14 fev. 2025.
9 Disponível em: https://youtu.be/lORtAsimNV0?si=7-tKf-QeMtPbNqZG. Acesso em: 14 fev. 2025.
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desvalorização das loiceiras que, para algumas, resultou na vergonha de exercer
tal ofício. No fluxo da narrativa da mestra, Claudiane nos conta que hoje é
diferente, que ela sente orgulho e amor por esse fazer. A penúltima cena alterna-
se entre as imagens das peças prontas, o reflexo da intérprete no mel derramado
em um prato de barro e a dança. Na última cena, fechamos com a fala da mestra
Claudiane contando sobre superação e a imagem da intérprete na Cachoeira da
Manga, localizada a alguns quilômetros dos quintais das mestras.
Sobre a dança, tivemos gestos tecendo os textos do corpo: a densidade do
barro molhado, a modulação da massa cerâmica como algo passível de surpresa
em seu resultado, os micromovimentos de expansão e retração que o barro faz
durante a secagem da peça. O acabamento como ações estéticas e de identidade
artística. A malemolência entre manipulação e passividade do processo cerâmico
e cênico. A água como lugar da memória do corpo, em fluxo e contornos.
Os
links
dos
frames
foram trazidos no texto com o objetivo de praticar outras
leituras além da alfabética, como propõe o estudo. Deste modo, por meio de uma
continuidade “animada-imagética-sonora”, tivemos a oportunidade de
acompanhar a tecitura poética entre o objeto inanimado do barro e a construção
do movimento em situação de dança. Essa trama pôde ser apreciada tanto nas
imagens de modelação da massa cerâmica, pelas mãos das mestras, quanto no
corpo da intérprete, ao mover com fragmentos do barro
in natura
. Assim como as
narrativas das mestras, que ganharam expressões ressignificadas quando em
estado de dança.
A ideia ou imagem do “vaivém” que faz o artefato tear aponta a estética de
nossa compreensão enquanto o movimento que exerce a metodologia em
questão. Nessa perspectiva, temos uma espécie de trança, tecendo os fios
estruturais que temos desenvolvidos em nosso estudo: campo (comunidades de
tradição oral), laboratórios criativos e composição cênica e escrita acadêmica.
Aspectos estes que foram discorridos ao longo do artigo e que puderam ser
apreciados por meio dos
frames
.
Entendemos que esse produto resguardou significativamente a relação entre
as sabenças e a composição cênica. Na representação imagética existe um
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tecimento circular crescente e que se integra, formando uma espécie de unidade
em movimento, tal qual as camadas desse artigo: campo, laboratório criativo,
construção do filme “
Parahyba Profunda
” e a escrita publicada nesta revista. Essa
liga é o que tem composto, até aqui, a metodologia expandida em artes cênicas, a
Tramaturgia de Sabenças.
Todas essas camadas formaram a dramaturgia expandida que compuseram
a dança e deu fluxo às imagens em audiovisual. Já no campo tecnológico, no que
se refere à revisão e à edição de imagens, o processo criativo visou tramar as
imagens e os sons de maneira performática, tanto na escolha das sequências das
imagens quanto nos recursos de efeitos entre as cenas, como demonstrado pelos
frames
.
Considerações finais
Esta pesquisa desembocará no desejo-motriz de fazer o caminho que evoca
a memória. É através da memória que se pode recuperar um saber orgânico, como
dizia o mestre Nêgo Bispo (Bispo dos Santos, 2023), adormecido ou resfriado entre
as gerações de nossas ancestralidades,
genéticas e/ou culturais
, dada as ações
dispersivas coloniais.
Propor uma metodologia expandida no campo das artes cênicas tendo as
sabenças como ponto de partida foi e segue sendo uma maneira de
abraçar
ou
encarar
as tensões pela disputa de uma retórica de pertencimento e contínuo
exercício da não colonização da vida, portanto, da criatividade, da capacidade de
reflexão, da poética, da corporeidade e da cosmologia da oralidade ancestral. Uma
proposição metodológica que acolhe as/os brincadores-mantedores-aprendizes
de sabenças que se encontram cruzando as fronteiras dos quintais-rodas-palcos-
academia.
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Recebido em: 11/11/2024
Aprovado em: 22/07/2025
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