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Um romance frenético em cena:
O casamento
pela
Cia. Os Fodidos Privilegiados
Paula Sandroni
Para citar este artigo:
SANDRONI, Paula. Um romance frenético em cena:
O
casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0107
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O casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados
Paula Sandroni
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Um romance frenético em cena:
O casamento
pela Cia. Os Fodidos
Privilegiados1
Paula Sandroni2
Resumo
Na década de 1990, a editora Cia. das Letras promoveu a edição de obras inéditas de Nelson
Rodrigues e a reedição de alguns de seus livros, como por exemplo
O casamento
, obra
publicada e censurada em 1966. Mais de 30 anos depois, em 1997, o romance ganhou sua
primeira adaptação teatral, feita por Antonio Abujamra e João Fonseca, diretores da Cia. Os
Fodidos Privilegiados, do Rio de Janeiro. O espetáculo representou o Brasil no XXII FITEI
(Festival Internacional de Expressão Ibérica) na cidade do Porto, em Portugal, em 1999, e no
VII Festival Ibero-americano de Teatro de Bogotá, na Colômbia, no ano 2000. A autora analisa
a história da adaptação do livro para a cena.
Palavras-chave:
História do Teatro Brasileiro. Nelson Rodrigues. Antonio Abujamra.
A frenetic romance on stage:
The Wedding
, by “Os Fodidos Privilegiados”
Abstract
In the 1990s, the publisher Cia. das Letras promoted the publication of previously unreleased
works by Nelson Rodrigues. Among these works was the novel
The Wedding
, which had
originally been published and subsequently censored in 1966. Over 30 years later, in 1997, the
novel received its first theatrical adaptation, directed by Antonio Abujamra and João Fonseca,
from Cia. Os Fodidos Privilegiados in Rio de Janeiro. The play represented Brazil in 1999 at
the XXII FITEI (International Festival of Iberian Expression) in Porto, Portugal, and also at the
VII Ibero-American Theater Festival in Bogotá, Colombia, in 2000. The author's intention was
to analyze the process of adaptation of the book for the stage.
Keywords
: Brazilian Theatre History. Nelson Rodrigues. Antonio Abujamra.
Un romance frenético en cena:
El casamiento
por la Cia. Os Fodidos
Privilegiados
Resumo
En la década de 1990, la editorial Cia. das Letras promovió la publicación de obras inéditas
de Nelson Rodrigues, así como la reedición de algunos de sus libros, como por ejemplo
El
Casamiento
, una obra publicada y censurada en 1966. Más de 30 años después, en 1997, la
novela recibió su primera adaptación teatral, realizada por Antonio Abujamra y João Fonseca,
de la Cia. Os Fodidos Privilegiados, en Río de Janeiro. La obra representó a Brasil en el XXII
FITEI (Festival Internacional de Expresión Ibérica) en la ciudad de Oporto, Portugal, en 1999,
y en el VII Festival Iberoamericano de Teatro en Bogotá, Colombia, en El año 2000. El artículo
presenta un análisis del proceso de adaptación del libro para el teatro.
Palabra clave:
Historia del teatro Brasileño. Nelson Rodrigues. Antonio Abujamra.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por André Luís Câmara, mestre e doutor em
Letras/ Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. andreluispireslealcamara@gmail.com
2 Doutoranda em Literatura Comparada no Programa de pós-graduação em Estudos de Literatura da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Comunicação Social Jornalismo pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Atriz e diretora teatral. paulasandroni@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9767470656055357 https://orcid.org/0009-0000-4208-1230
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Em 21 de março de 1997, estreou no Festival de Curitiba (no teatro Ópera de
Arame, lotado) a primeira adaptação teatral do romance
O casamento
, de Nelson
Rodrigues, assinada por dois diretores que trabalhavam juntos pela primeira vez:
o veterano Antonio Abujamra e o estreante João Fonseca. Ambos faziam parte, à
época, da companhia Os Fodidos Privilegiados3, fundada em 1991 por Abujamra no
Rio, e na qual Fonseca começou em 1995. Uma semana depois, em quatro de abril,
deu-se a estreia no Teatro Dulcina, então a sede do grupo, no centro do Rio de
Janeiro. O espetáculo foi um dos mais bem-sucedidos da companhia, obteve
enorme sucesso de público e recebeu dois Prêmios Shell: Melhor Direção
(Abujamra e Fonseca) e Melhor Figurino (Charles Moëller).
Essa montagem participou de diversos festivais de teatro pelo Brasil e pelo
mundo, representando o país no XXII Festival Internacional de Teatro de Expressão
Ibérica (FITEI) na cidade do Porto (Portugal), em 1999, e no VII Festival Ibero-
americano de Teatro de Bogotá (Colômbia), no ano 2000.
O casamento
tornou-se
um marco divisório na história do conjunto, pois a partir deste trabalho João
Fonseca assumiu a codireção artística da companhia, ao lado de Abujamra.
Embora eu não tenha participado dos ensaios de
O casamento
no Rio de Janeiro,
por estar trabalhando como assistente de direção de Abujamra em São Paulo,
acompanhei de longe ouvindo os relatos do próprio diretor. Além disso, juntei-me
ao elenco como atriz substituta no ano da estreia e, dessa forma, estive em todas
as temporadas a partir de abril de 1997.
Neste artigo, proponho-me a discutir brevemente alguns aspectos da
concepção e encenação desta montagem, tirando partido da minha perspectiva
de integrante da companhia. Antes disso, vou situar brevemente o romance na
trajetória de Nelson Rodrigues, e farei um resumo da trajetória do diretor Antonio
Abujamra até a encenação de
O casamento
.
3 A partir de agora passarei a chamar Os Fodidos Privilegiados de Os FP.
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Um outro Nelson em cena: a obra não-dramatúrgica ressurge
nos anos 1990
O nome de Nelson Rodrigues (1912, Recife 1980, Rio de Janeiro), quarenta
anos após sua morte, segue mais vivo do que nunca e ganhando o mundo4:
considerado por muitos críticos o maior dramaturgo brasileiro, autor do marco do
teatro moderno no Brasil (a peça
Vestido de Noiva
, encenada por Ziembinski em
1943, ano em que foi escrita), o autor exerceu dos treze anos até o fim de sua vida
o ofício de jornalista, profissão de muitos dos seus pares na arte de escrever para
a cena. Escreveu centenas de crônicas, alguns romances muitos dos quais
nasceram como folhetins e foram assinados sob pseudônimos , foi o autor da
primeira novela brasileira na TV Rio, em 1963,
A morta sem espelho
, e nos deixou
dezessete peças de teatro, muitas delas já traduzidas para diversas línguas.
As peças do dramaturgo, que começaram a vir a público nos anos 1940, nas
oito décadas seguintes, além de ganharem várias montagens cada uma delas e
de chegarem muitas também às telas dos cinemas tiveram seu conjunto
bastante estudado pelos críticos, em especial pelo professor e amigo particular de
Nelson, o crítico Sábato Magaldi, a quem o dramaturgo pediu uma “organização”
de sua obra dramatúrgica:
Eu estudava, há longos anos, a obra de Nelson Rodrigues, […] quando ele
me pediu para organizar a edição de seu teatro. Pretendia substituir a
sucessão cronológica, na qual eu nada enxergava de reprovável, por outro
critério, que agrupasse de forma diferente as dezessete peças até aquele
momento produzidas. Apresentei-lhe o projeto de quatro volumes
dividindo-os em: 1 - peças psicológicas, 2 peças míticas, 3 e 4
tragédias cariocas (Magaldi, 1987, p.1).
Aprovada pelo próprio autor, que faleceu em dezembro de 1980, esta
classificação foi publicada em quatro volumes pela Editora Nova Fronteira ao longo
daquela década, com prefácios preciosos de Magaldi para cada livro. Mais tarde,
em 1993, a editora Nova Aguilar reuniu os quatro volumes num só, e os estudos
de cada bloco de peças se transformaram num grande prefácio intitulado
As peças
4 Em 2019 a atriz e produtora americana Viola Davis comprou os direitos da peça
O beijo no asfalto
, de 1961.
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que a vida prega
. Juntou-se à publicação uma fortuna crítica com textos de
diversos intelectuais e artistas, a maioria publicada em jornais após as estreias de
cada obra.
E foi também em meados da década de 1990 que grande parte da obra não-
dramatúrgica de Nelson Rodrigues começou a ser editada e, em alguns casos,
reeditada, como o próprio romance
O casamento
5. Folhetins que haviam sido
publicados em jornais na década de 1940, como
Escravas do amor
sob o
pseudônimo Suzana Flag,— e também crônicas jornalísticas sobre futebol, as
crônicas da coluna
A vida como ela é
, memórias, boa parte de todo esse tesouro
estava agora sendo reunido numa coleção de doze volumes, editada pela Cia. das
Letras6.
Esse movimento editorial trouxe mais popularidade ao nome de Nelson
Rodrigues, e através desses volumes toda uma geração mais jovem passou a
conhecer o autor. Esse novo holofote sobre sua obra impulsionou mais uma vez o
interesse do setor audiovisual, que desde os anos 1960 realizava adaptações de
seus textos, tanto para o cinema7 como para a TV. O romance
Asfalto selvagem
(os dois volumes, que têm por subtítulo
Engraçadinha, seus amores e seus
pecados dos 12 aos 18
, e o segundo,
depois dos 30
), e boa parte das crônicas de
A
vida como ela é
, foram comprados pela Rede Globo de Televisão, em 1995 e 1996,
respectivamente. A emissora havia produzido a adaptação de dois folhetins de
Rodrigues para telenovelas nos anos 19808, e agora iria veicular a releitura das
crônicas da vida do carioca e suas aventuras amorosas e sexuais para toda família
brasileira assistir no horário nobre de domingo no programa
Fantástico, o show da
vida
. Ambas as séries se tornaram sucessos de audiência e de crítica;
Engraçadinha
foi ao ar como minissérie no horário da novela das 22h.
5 Editado em 1966 pela Ed. Guanabara, de Alfredo Machado.
6 No início da década de 1980 a Editora Nova Fronteira também publicou obras de Nelson Rodrigues.
7 O diretor Arnaldo Jabor (1940-2022) adaptou
O casamento
para o cinema, com grande êxito, em 1976.
8O homem proibido foi adaptado por Teixeira Filho para o horário das 18h, em 1982,e
Meu destino é pecar
,
adaptado por Euclydes Marinho, para o horário das 22h, em 1984.
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Um romance encomendado
Antes de entrarmos na análise da adaptação do romance para o teatro,
vamos apresentar uma outra história: a da publicação do livro. Vamos a um
resumo dos fatos que nos conta Ruy Castro na biografia
Nelson Rodrigues: o anjo
pornográfico
:
No começo de 1966, Carlos Lacerda chamou Nelson Rodrigues a seu
escritório […] “Vou fazer uma editora […] quero um romance seu. Mas
nada de ‘Suzana Flag’. Quero Nelson Rodrigues, não vou censurar nada”.
[…] Carlos Lacerda ia fazer de
O Casamento
o primeiro livro de sua
editora, a Nova Fronteira. […] Nelson escreveu
O Casamento
, entregou-o
a Lacerda na Nova Fronteira e ouviu dele que tudo azul. E então
Lacerda foi ler o romance, ficou assustadíssimo. Outro poderia publicar
aquele romance, não ele (Castro, 1992, p.349).
Curioso perceber que Carlos Lacerda antes de ler os originais afirmou que
não iria “censurar nada”, que Nelson poderia ser ele mesmo “quero Nelson
Rodrigues”, disse mas após a leitura do romance fica assustadíssimo e volta
atrás, recusando-se a publicar o livro. Com a recusa, o primeiro e único romance
assinado por Nelson Rodrigues acabou caindo nas mãos de Alfredo Machado, que
o lançou pela editora Guanabara com enorme sucesso. Nas duas primeiras
semanas foram vendidos oito mil exemplares, mesmo número alcançado por
Dona Flor e seus dois maridos
, sucesso de Jorge Amado editado por Machado na
mesma época por sua principal editora, a Record (Castro, 1992, p. 350).
Em seu artigo sobre o romance, o autor Eugênio Drumond observa que o
narrador da história “que voz às personagens monta uma espécie de ‘jogo da
verdade’ em que elas, em todo percurso da narrativa, ameaçam ou prometem
contar tudo umas às outras” (Drumond, 2004, p. 321). E, de fato, em
O Casamento
,
Nelson Rodrigues parece querer expor todas as aberrações possíveis em um
livro. É como se o autor quisesse contar ao leitor tudo de pior que um ser humano
é capaz de fazer e sentir. Abaixo, vamos fazer um breve resumo da história.
Sabino Uchôa Maranhão é um rico industrial, casado com Eudóxia, com quem
tem quatro filhas. O pai tem predileção pela filha mais nova, Glorinha, que vai
casar-se no dia seguinte. Conforme a história avança, percebemos que a
predileção é na verdade desejo sexual, mesmo sentimento que a mãe de Glorinha
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nutre pela moça. Sabino tem uma secretária, D. Noêmia, que é secretamente
apaixonada pelo patrão. Ela é amante de um homem casado, Xavier, que por sua
vez trata das feridas da esposa doente, razão pela qual não tem coragem de se
separar. Na véspera do casamento de Glorinha, o ginecologista e amigo da família,
Dr. Camarinha, chama Sabino para conversar. O motivo: Dr. Camarinha viu Teófilo,
o noivo de Glorinha, beijando seu assistente, Honório. Sabino não quer acreditar
e afirma que “não se sabe quem é o ativo, quem é o passivo!”. Dr. Camarinha
chama então Glorinha em seu consultório, mas diante da felicidade da moça em
casar-se com Teófilo, mantém o silêncio sobre a possível homossexualidade do
noivo. Ao fazer em Glorinha um exame ginecológico pré-nupcial, Dr. Camarinha
descobre que a moça não é mais virgem e exige que ela revele quem a deflorou:
ao ouvir a resposta de que foi Antonio Carlos, seu filho já falecido, o médico exige
uma explicação.
Começa então a narrativa de um longo
flashback
contando a ida de Glorinha,
Antonio Carlos e sua namorada, Maria Inês, até a casa de Honório, assistente
de Dr. Camarinha, situada no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro. Lá,
o rapaz mora com o pai, hoje paralítico e afásico, que, por descobrir a
homossexualidade do filho, outrora lhe surrava gritando: “engole o choro!” O livro
vai revelando estupros (Maria Inês), torturas (pai de Honório), incestos (Sabino
e Eudóxia, pai e mãe, beijam Glorinha na boca), assédio sexual e moral (Sabino faz
sexo com a secretária Noêmia), feminicídio (Xavier, por não aceitar o fim da relação,
mata Noêmia). Como cereja do bolo, Sabino, no último capítulo, é acusado pelas
filhas de ter deflorado sua sobrinha epilética, uma menina de treze anos, em pleno
ataque. Ao saber do assassinato de Noêmia, Sabino aceita o conselho de
Monsenhor Bernardo, amigo da família que é para ele uma espécie de terapeuta,
e resolve “assumir sua lepra”: após o casamento de Glorinha, entrega-se para a
polícia como o assassino de Noêmia. Por abordar todos estes temas, em menos
de um mês após o lançamento, o livro foi censurado:
Quando soube que o livro havia sido censurado e retirado das bancas,
Nelson Rodrigues escreveu uma crônica sobre o assunto na sua coluna
À
sombra das chuteiras imortais,
publicada pelo jornal
O Globo
: “Imaginem
que eu estava em casa, quando bate o telefone. Era um repórter
berrando: ‘Teu livro foi cassado! Teu livro foi cassado!’. Como no soneto
bilaquiano, eu fiquei pálido de espanto. O outro foi despejando mais
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informações: ‘Portaria do Ministério da Justiça proibindo a venda de
O
Casamento
em todo o Brasil!’. Por um momento, eu não soube o que
pensar, nem soube o que dizer. […] O texto do Ministério é, acima de tudo,
burríssimo. Diz que o livro é contra a instituição do casamento. É falso.
Podia -lo, e daí? Qualquer um pode discutir o matrimônio, o celibatário,
o adultério, a castidade e a viuvez. Acontece, porém, que o meu romance
é anterior ao casamento. A mocinha se casa no último capítulo. E se casa
de véu, grinalda, no civil e religioso. O casamento termina com os noivos
na sacristia recebendo os cumprimentos. Sim, antes dos salgadinhos e
do guaraná. Vejam bem: eu me dou o direito de ser contra quaisquer
usos, costumes, instituições, ideias, cultos. Penso como quero e não
admito, nem aceito, que me ponham limites nos meus pontos de vista.
Mas insisto: não há, nas minhas trezentas páginas, uma única e vaga
objeção ao matrimônio. Um dos personagens chega a dizer, de fronte
erguida: ‘Um casamento não se adia’. Nem se adia, vejam bem, nem
se adia”(Capelozi, 2016, p.40).
O narrador do romance é um narrador-onisciente, que narra a história em
terceira pessoa, como um narrador observador, mas que é capaz de, num mesmo
parágrafo, passar a narrar em primeira pessoa. Vamos destacar duas passagens
do capítulo 12 em que o narrador passa com tranquilidade da terceira para a
primeira pessoa: “Graças a Deus, vinha Sabino. Glorinha tinha medo e asco, um
certo asco de bêbado. Papai quase não bebe, bebe pouquíssimo” (Rodrigues, 1975,
p. 107); “Glorinha parou, confusa e dilacerada. Teve uma brusca vontade de chorar.
Não ouvira o próprio riso. Papai, onde está papai? Não vejo papai” (Rodrigues, 1975,
p. 109). Note-se que esta mudança do texto da narração em terceira pessoa,
para um texto que seria o “pensamento” da personagem, que se em vários
momentos do romance, poderia ser destacado pelo autor com simples sinais
ortográficos como aspas ou travessão. Porém Rodrigues opta por não diferenciar
seu texto, preferindo jogar com as palavras para tornar mais rica a experiência da
leitura. ainda a intromissão do narrador na história, emitindo opiniões como
“não sei o que”, que é destacado pela dissertação de Laís Capelozi (2016, p.42):
Contando com melodrama e o tom folhetinesco,
O Casamento
é narrado
em terceira pessoa, por um narrador onisciente. O interessante é que o
narrador, muitas vezes, brinca com o leitor, jogando muitas informações
para que este faça conclusões por si só. O narrador onisciente de
O
casamento
faz-se presente em todo o texto apesar de simular
objetividade, escondendo-se na “terceira pessoa” e se intromete
arbitrariamente na narrativa, principalmente por meio do uso de
parêntese ou da presença dos dêiticos, como nesse exemplo: “Graças a
Deus, Sabino não estava, que sorte. Eudóxia apanhou não sei o que
debaixo de um móvel”. Note-se que esse “não sei o que” denuncia a
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presença do narrador e desmente, ironicamente, sua suposta onisciência.
Na adaptação para cena feita por João Fonseca e Antonio Abujamra não havia
a figura do narrador, mas os diretores inventaram uma dupla de “comentadores”,
como veremos adiante. Nas páginas a seguir farei um breve resumo das atividades
de Abujamra antes do diretor voltar a trabalhar9 no Rio de Janeiro nos anos 1990.
Antonio Abujamra: diretor e ator
Antonio Abujamra (1932 Ourinhos, SP 2015, São Paulo, SP) faz parte, como
ele gostava de dizer, da primeira geração de diretores brasileiros, ao lado de Flavio
Rangel, Antunes Filho, Ademar Guerra, Augusto Boal, José Renato e José Celso
Martinez Corrêa. Aprendendo e aprimorando o ofício com diretores estrangeiros, a
partir das décadas de 1950 e 1960, esses artistas começaram a abrir o caminho do
moderno teatro brasileiro na segunda metade do século XX. Muitos deles iniciaram
o século XXI trabalhando a todo vapor. Abujamra era o único dos diretores citados
que levava uma profícua carreira de ator em paralelo à da direção, iniciada com a
temporada do monólogo
O Contrabaixo
, de Patrick Sussekind, no qual foi dirigido
por sua sobrinha Clarice Abujamra, também atriz e diretora, em 1987. Dois anos
depois, o bruxo Ravengar, personagem de
Que rei sou eu?
novela de Cassiano
Gabus Mendes, na Rede Globo, foi seu primeiro grande sucesso na televisão, e a
partir daí o ator/diretor passou a ser chamado assiduamente para atuar em peças,
em várias emissoras de TV e em diversos filmes brasileiros. Em 2001, começa a
trabalhar também como idealizador e entrevistador no programa Provocações, da
TV Cultura de São Paulo, atividade que exerceu até o fim da vida.
Uma das maiores contribuições de Abujamra para o teatro brasileiro foi sua
leitura do grande teórico, autor e diretor teatral Bertolt Brecht (1898-1956)
absorvida durante os estágios na Europa. Em 1958, antes de completar trinta anos,
Abujamra parte para uma longa viagem e passa quase três anos no velho
continente: começa pela Espanha, onde fica por quase um ano; de segue para
a França onde estagia com dois dos maiores diretores do país: Jean Vilar e Roger
Planchon. E passa três semanas acompanhando os ensaios de
A mãe
, no Berliner
9 Abujamra e seu Grupo Decisão chegaram a estrear várias peças no Rio de Janeiro nos anos 1960.
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Ensemble, de Bertolt Brecht, onde se encanta pelo trabalho do conjunto alemão;
além de visitar Londres e assistir a peças de Arnold Wesker e Harold Pinter, autores
que mais tarde irá encenar no Brasil (Sandroni, 2004).
Na volta a São Paulo, em 1961, Abujamra começa a trabalhar sem parar: dirige
Cacilda Becker, dirige no Teatro de Arena de José Renato e Augusto Boal, no Teatro
Oficina, de José Celso Martinez Corrêa; funda seu próprio conjunto teatral, o Grupo
Decisão; inicia parceria de toda uma vida com Paulo Goulart e Nicete Bruno; dirige
Ruth Escobar, Glauce Rocha, Jardel Filho, entre tantos outros.
Em fins dos anos 1960, Abujamra passa a dirigir também para a televisão e
segue na carreira, nos anos 1970 e 1980, se dividindo ativamente entre esses dois
veículos e participando de várias companhias teatrais, tanto como diretor
convidado, como na Companhia Estável de Repertório (CER), do ator e produtor
Antonio Fagundes, ou fundando suas próprias companhias, o que se deu em São
Paulo nos anos 1980, na época da ocupação do Teatro Brasileiro de Comédia, e no
Rio de Janeiro com a estreia de Os FP em 1991. No ano de estreia no Rio de Janeiro,
o conjunto realizou três espetáculos:
Um certo Hamlet
, de Giovanni Testori, em
junho;
Phaedra
, de Jean Racine, em julho; e A serpente, em setembro.
Abujamra havia montado em São Paulo o último texto de Nelson Rodrigues,
A serpente
, em 1986, e a remontagem no Teatro Dulcina no Rio em 1991 obteve
enorme sucesso de público. Nos anos de 1992 e 1993 o grupo se dedica a leituras
dramatizadas e a poucas peças, algumas dirigidas por Abujamra outras por seus
assistentes. No final do ano de 1993, com a volta de Abujamra para São Paulo, o
grupo interrompe suas atividades e assim permanece durante todo o ano de 1994.
De volta ao Rio de Janeiro10 em julho de 1995, Abujamra resolve reavivar o grupo
Os FP. O diretor convida todo o elenco da novela em que está trabalhando, chama
todos os componentes do grupo da fase 1991-1993,11 e pede que todos nós
chamemos os nossos amigos que quiserem se juntar ao grupo, pois como ele
declarava, “esse é um grupo aberto”, ou seja, quem quiser entrar para trabalhar,
“ocupe o seu espaço”, seja bem-vindo. Nessa nova fase do grupo, diretor e elenco
10 Abujamra veio contratado pela TV Bandeirantes para fazer a novela
A Idade da Loba
como ator.
11 Não esqueço o dia em que acordei com um telefonema de Abujamra me dizendo “voltei pro Rio e vamos
ressuscitar os mortos!” referindo-se a reavivar o grupo que estava parado.
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irão se dedicar a estudar toda a obra de Nelson Rodrigues.
Nelson Rodrigues e Os FP em Núpcias de fogo
Após o sucesso de
Exorbitânicas, uma farândola teatral
, espetáculo
composto por cenas de diversos autores em 1995, Abujamra sugeriu à companhia
que nós fizéssemos um estudo profundo da obra de Nelson Rodrigues, para que
o próximo espetáculo fosse baseado na obra deste dramaturgo. O primeiro passo
seria lermos juntos suas dezessete peças, em ordem cronológica, através de
leituras dramatizadas que seriam ensaiadas e realizadas por pequenos grupos
determinados e apresentadas por cada um destes grupos para toda a companhia.
Depois desta meta alcançada, a segunda meta dada pelo mestre foi que nós
lêssemos toda a obra não-dramatúrgica de Rodrigues, que estava sendo lançada
pela editora Cia. das Letras; grande parte do material era inédito em livro o que
não era o caso do romance
O casamento
.
A ideia de Abujamra era simples: cada ator que quisesse trabalhar como
adaptador e como diretor deveria escolher um livro (podia ser de crônicas, um
romance de Suzana Flag, cartas de Myrna, memórias, qualquer um, contanto que
a obra fosse não-dramatúrgica) e apresentar uma parte de aproximadamente vinte
minutos já levantada como cena teatral. A partir daí, avaliando a melhor ideia, ele
escolheria qual seria a nova produção da companhia. Muitos torciam que o livro
escolhido para montagem fosse o folhetim
Núpcias de fogo
, o que foi inclusive
anunciado, mas não foi o que ocorreu. Outras “núpcias” foram escolhidas.
Coube a João Fonseca ler o romance e preparar vinte minutos de cenas de
O Casamento
. Nascido em Santos, em 1964, João começou naquela cidade a fazer
teatro amador, seguindo para São Paulo posteriormente para estudar com o
diretor Antunes Filho. Como ator, trabalhou com Gabriel Vilella e Jorge Takla, e
mudou-se para o Rio de Janeiro em 1993 por conta do seu trabalho como
engenheiro químico. Foi o ator e diretor Charles Moëller, com quem dividia
apartamento no Rio e seu amigo desde a juventude em Santos, quem levou João
Fonseca para Os FP. O ano era 1995 e “o grupo estava aberto”, ou seja, Abujamra
estava aceitando que novos atores entrassem na companhia para que
participassem do espetáculo
Exorbitâncias, uma farândola teatral
, que chegou a
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ter um elenco de cem pessoas ensaiando mas estreou com 51 atores. Sobre a
escolha do livro
O Casamento
, Fonseca comenta:
Ele estava meio sobrando na divisão, e eu já conhecia e gostava muito. Aí
eu falei: me
O Casamento
. Eu na verdade adaptei o romance inteiro,
(não 20 minutos) não consegui parar de adaptar. eu fiz uma
adaptação, isso é uma coisa que quase ninguém sabe, fiz uma adaptação
muito maluca. Hoje em dia, revendo, eu acho que era uma adaptação
incrível, mas ainda de um amador. Aí eu dei pro Abu ler e ele falou “você
é mais maluco que eu. Vou escolher
O homem proibido
12, e eu falei “ah,
que pena, achei que o material era muito bom…” e o Abu me respondeu
que a adaptação de O homem proibido estava mais madura. Quando
eu fui mostrar meus vinte minutos de cena montada, fiz apenas Sabino,
Noêmia, Xavier e Sandra. O que ele viu na cena que eu dirigi ele adorou,
então eu falei, “vou arrumar a adaptação”. Nós dois fomos trabalhando
juntos ao mesmo tempo em que ensaiávamos com a companhia toda
O
que é bom em segredo,
é
melhor em público
. A partir daí eu ia até a
página dois e o Abujamra ia piorando13 (Fonseca, 2020).
A adaptação feita por Fonseca e Abujamra foi extremamente fiel ao romance
de Rodrigues: os diálogos foram transpostos das páginas do livro para o texto
teatral, da maneira exata como foram escritos pelo autor. Apenas personagens
coadjuvantes à trama foram suprimidos, porém todos são citados (o noivo de
Glorinha “acusado” de homossexualismo, Teófilo; a esposa do Dr. Camarinha; o
marido da secretária Sandra e a esposa leprosa de Xavier, ambos do núcleo de
Noêmia, a secretária apaixonada pelo patrão, Dr. Sabino). Não havia a figura do
narrador na encenação, porém foram inseridas quatro cenas de uma dupla de
personagens inventada pelos diretores: duas freiras, interpretadas por dois atores
travestidos, comentam as cenas da trama como quem acompanha uma
radionovela. Por exemplo: após a cena em que o personagem Honório,
assistente do Dr. Camarinha, transa com um chofer de ônibus na frente do próprio
pai, paralítico e afásico e comemora o fato do pai estar chorando—, ele se vinga
da surra que levou aos doze anos, gritando: “engole o choro, engole o choro!”. Em
seguida, as freiras entram em cena para comentar:
Freira 1- Ah, irmã, eu não gosto daquele Honório! O que ele fez no
capítulo de hoje foi muito cruel!
12 A adaptação do romance de Suzana Flag, que coube a Almir Martins, era a espinha dorsal do espetáculo
O
que é bom em segredo é melhor em público
, entrecortado por cenas das crônicas de Nelson Rodrigues.
13 Fonseca quer dizer que Abujamra estava sempre pensando à frente, querendo aumentar a narrativa do que
já era forte no romance.
Um romance frenético em cena:
O casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados
Paula Sandroni
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-17, dez. 2023
13
Freira 2 - Eu não acho! Achei lindo o desespero dele com o pai! O pai
chorando e ele dizendo: engole o choro, engole o choro… não é lindo isso?
O pai sofrendo e ele querendo que o pai não chore!...14
Segundo Fonseca (2020), a ideia teve inspiração no espetáculo anterior da
companhia,
O que é bom em segredo é melhor em público
, em que dois
personagens de fora da história também acompanhavam e comentavam a trama
de
O homem proibido
, folhetim assinado por Suzana Flag, pseudônimo de
Rodrigues, em 1951, como se fosse uma radionovela. Abujamra gostava dessa
intervenção dos “espectadores-ouvintes” no espetáculo e resolveu que na
adaptação de
O Casamento
seriam duas freiras, que iam se mostrando cada vez
menos religiosas à medida que a história avançava, história essa que, por sua vez,
ia se mostrando cada vez mais cheia de depravações.
A primeira ida do personagem Sabino ao bordel, quando adolescente, em que
não consegue efetivar o ato carnal com a prostituta, é transformada na peça numa
cena que vem antes da abordagem sexual da secretária Noêmia pelo patrão. Nesta
cena, Sabino, adulto, admite a uma profissional, escolhida entre muitas que
estavam dançando em volta dele, que “não vai conseguir” e que “é um homem de
bem”, frase que aparece no primeiro capítulo, como vemos abaixo, e que é
repetida muitas vezes no romance:
E, de repente, lembrou-se da morte do pai. Meia hora antes de morrer,
com a dispneia pré-agônica, o velho agarrara sua mão. Disse e repetiu:
Homem de bem. Homem de bem.
A mãe cutuca o filho: É contigo, é contigo.
Era sim, com Sabino. O pai queria que ele fosse um homem de bem. E,
desde então, a vontade do defunto o acompanhava em toda parte
(Rodrigues, 1975, p.7).
Grande parte da trilha sonora do espetáculo foi pensada ainda na adaptação
feita somente por Fonseca, e incluía, por exemplo, algumas músicas do período
da Jovem Guarda, além da
Cavalgada das Valquírias
, tema mais famoso da ópera
A Valquíria
, de Richard Wagner. Outra parte da trilha, como as aberturas e as
finalizações dos dois atos, foram compostas pelo músico André Abujamra, filho
do diretor paulista.
14 P. 19 do texto da adaptação teatral, arquivo pessoal de João Fonseca.
Um romance frenético em cena:
O casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados
Paula Sandroni
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-17, dez. 2023
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O romance é de 1966. Eu parei e pensei, o que se ouvia nessa época?
Quando eu comecei a me entender por gente, minha irmã ouvia Jovem
Guarda. E é um tipo de música muito associado ao universo dos
personagens, uma classe alta alienada e uma classe baixa também
alienada. Ninguém tava no Chico Buarque, nos festivais. […] E o que o
Abujamra gostava na trilha? Ele gostava do contraponto. Ele amava
(Fonseca, 2020).
Por exemplo, na cena em que Honório transa com um chofer de ônibus
na frente do pai estático, antes do ato sexual o personagem fazia toda uma
coreografia dublando
É o tempo do amor
, sucesso na voz da cantora Wanderléia:
“Botar uma música de uma menina ingênua, pra ‘bicha’ transar dublando, ele
achava bom esse lugar”, conta Fonseca. O diretor santista chama a atenção para
o fato de que Abujamra sempre teve grande poder de síntese. Então, ao mesmo
tempo em que ele propunha novas cenas, como as quatro cenas de comentários
das freiras, o veterano cortava várias partes dos diálogos das cenas, para dar
agilidade ao espetáculo: “o Abu ia enxugando tudo, para depois poder colocar os
brincos”. Por “colocar os brincos” podemos entender as ideias de encenação que
Abujamra costumava ter próximas à estreia, com o espetáculo quase pronto.
Exemplificando: numa das cenas finais do romance, Sabino e Glorinha vão
conversar na praia. O diretor pediu que as freiras entrassem em cena correndo,
cruzando o palco, apenas de chapéu de freira e cueca, e jogassem talco para o
alto para simbolizar a maresia. Na mesma cena, pediu a João Fonseca, que fazia
o personagem Sabino, que trouxesse uma corda da coxia, e a jogasse até a outra
ponta do palco, exclamando: “aqui, o mar!”, e dessa forma estava demarcada a
praia. Ou ainda, após a “mijada” do personagem Monsenhor Bernardo que
assusta e diverte a plateia tirando de dentro de seu hábito um membro
cenográfico enorme de onde realmente sai um líquido a entrada de Honório
em roupas sumárias, muita maquiagem e flor no cabelo para secar com um pano
a água deixada no palco enquanto diz: “Eu adoro limpeza!”.
Outra ideia trazida por Abujamra para a encenação foi a formação das três
irmãs de Glorinha em um único ser de três cabeças, as irmãs xifópagas, que muito
perto da estreia ganharam três maridos igualmente xifópagos. O diretor paulista
muitas vezes em seus espetáculos usava o recurso dos “duplos”, como ele
chamava. Sua encenação de
A serpente
trazia um ator e uma atriz representando
Um romance frenético em cena:
O casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados
Paula Sandroni
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-17, dez. 2023
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juntos um mesmo personagem. Irmãs xifópagas também já tinham sido vistas em
sua obra, por exemplo em
O inspetor geral
, de Gogol, encenado por ele no Teatro
Popular do SESI em 1994 em São Paulo, porém eram apenas duas atrizes15
“grudadas” pelo mesmo figurino, e não três. Em
O casamento
, podemos perceber
que Nelson Rodrigues se refere às irmãs sempre juntas, como um grupo, andando
e falando ao mesmo tempo; Abujamra pegou os personagens que agiam juntos no
romance e traduziu isso em dois trios de xifópagos, com grande rendimento
cênico.
Em seu trabalho, Abujamra sempre foi adepto de uma marcação limpa, de
atores com o corpo, o gestual e o caminhar desenhados: “Eu não sou um diretor,
eu sou um coreógrafo!”, ele costumava dizer.
O Casamento
não fugiu à regra dos
espetáculos em que o aspecto de “teatro coreografado” era bastante perceptível.
A começar pela cena de abertura, uma grande coreografia que encenava o
pesadelo de Sabino ao encarar o casamento da filha, e que era repetida pelos
atores em ritmo frenético na abertura do segundo ato. Sabino e Dr. Camarinha por
exemplo, tinham toda “uma escrita particular”, para usar uma expressão
rodrigueana. Quando iam dar-se as mãos para um cumprimento, havia sempre
uma paralisação de um segundo em pleno gesto, antes das mãos se tocarem;
quando iam sentar-se nas cadeiras para conversar, havia uma paralisação de um
segundo dos corpos a um palmo das cadeiras, antes de se sentarem. De certa
forma, essa “paradinha”, que deixava os atores em suspensão, também deixava o
público mais atento à cena. Todos os atores tinham suas marcações
extremamente precisas e limpas, sem deixar dúvidas, sempre com gestos
estudados e escolhidos.
A montagem de Os FP foi apresentada por quatro anos, de 1997 até o ano
2000: além de passar por palcos da Colômbia (2000) e de Portugal (1999), como
relatado no primeiro parágrafo, e de outras cidades brasileiras como São Paulo,
Brasília, Belo Horizonte e Ouro Preto. No Rio de Janeiro esteve em cartaz no Teatro
Dulcina, em 1997 e 1998, e no Teatro Villa-Lobos, em 1999.
Quinze anos após sua estreia o espetáculo recebeu um convite para se
15 Fernanda Abujamra, sobrinha do diretor, e a autora do artigo.
Um romance frenético em cena:
O casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados
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apresentar novamente no mesmo Festival de Curitiba, onde estreara em 1997: 2012
foi o ano do centenário de Nelson Rodrigues. O elenco não era o original pela
substituição de dois atores: Álvaro Diniz (Xavier) deixara o espetáculo em 1999, e
Marcos Correa, (uma das freiras), havia falecido em 2011. A Cia. foi convidada a
remontar também o espetáculo
Escravas do amor
, folhetim de Suzana Flag escrito
em 1944 e adaptado e dirigido por João Fonseca em 2006, quando Abujamra
não fazia mais parte do grupo deixara João Fonseca sozinho na direção geral
no final do ano 2000. Os dois espetáculos fizeram duas apresentações lotadas no
Teatro Guaíra, o Guairão, para duas mil pessoas, em março de 2012. Para surpresa
e alegria dos componentes da Cia., em fins de 2021 fomos convidados para
remontar
O Casamento
no Festival de Curitiba de 2022, na edição que
comemorava 30 anos do festival de teatro. Centenários, Nelson Rodrigues e os
tabus que ele trouxe à cena estão mais vivos do que nunca.
Como todos os meus textos dramáticos (
Vestido de noiva
) é uma
meditação sobre o amor e sobre a morte. […] E confesso: o meu teatro
não seria como é, e nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na
carne na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o
assassinato de Roberto (Rodrigues, 1993, p.84).
Em 1929, aos dezessete anos de idade, Nelson Rodrigues presenciou o
assassinato de um de seus irmãos mais velhos. A tragédia o marcou
profundamente e em seu livro de memórias ele comenta que esse fato
determinou toda sua obra. Ciúmes, crimes passionais, taras, famílias incestuosas:
temas que sempre versam sobre o amor e a morte, e que estão fortemente
presentes em
O Casamento
e em todas as suas histórias, como ele mesmo
assume.
Procurei, por meio deste artigo, compartilhar um pouco da história desta que
talvez tenha sido a montagem de maior sucesso de Os FP, bem como revelar um
pouco do modo de fazer teatral que pude observar ao longo de mais de dez anos
trabalhando ao lado de Antonio Abujamra.
Referências
CAPELOZI, Lays de Cruz.
Homem, chefe de família, dilacerado em O Casamento
Um romance frenético em cena:
O casamento
pela Cia. Os Fodidos Privilegiados
Paula Sandroni
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-17, dez. 2023
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de Nelson Rodrigues.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Uberlândia,
2016.
CASTRO, Ruy.
O anjo pornográfico
: a vida de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Cia.
das Letras, 1992.
DRUMOND, Eugênio. “O jogo irônico no romance O Casamento, de Nelson
Rodrigues”. São Paulo.
Revista do Centro de Estudos Portugueses (CESP)
, UFMG,
v. 24, 2004.
FONSECA, João. Entrevista concedida à Paula Sandroni no dia 20 nov.2020.
MAGALDI, Sábato.
Nelson Rodrigues
: dramaturgia e encenações. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
SANDRONI, Paula.
Primeiras provocações:
Antonio Abujamra e o Grupo Decisão.
Dissertação - (Mestrado em Artes Cênicas) Universidade Federal do estado do
Rio de Janeiro, 2004.
RODRIGUES, Nelson.
O Casamento
. Rio de Janeiro: Editora Edibolso, 1975.
RODRIGUES, Nelson.
A menina sem estrela Memórias
. São Paulo: Cia. das Letras,
1993.
RODRIGUES, Nelson.
Asfalto selvagem
. Volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1980.
Recebido em: 10/09/2023
Aprovado em: 13/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br