1
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória:
a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Para citar este artigo:
OLIVEIRA, Luciano Flávio de. Objetos máquinas,
objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0204
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
2
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana1
Luciano Flávio de Oliveira2
Resumo
Neste artigo, observarei as relações poéticas entre atores e objetos de cena em
algumas passagens do espetáculo teatral
Wielopole-Wielopole
, do encenador
polonês Tadeusz Kantor. Para tanto, inicialmente, será necessária uma breve
definição dos termos “poética” e “objetos cênicos”. Para sintetizar o conceito de
poética, recorrerei a Pareyson (2001). para o estudo semiótico do objeto cênico,
utilizarei Ubersfeld (2005), Pavis (2005) e Fischer-Lichte (1999). Por fim, notarei os
lugares dos objetos na práxis do encenador relacionado.
Palavras-chave
: Fisicidade. Ação consciente. Cenário. Acessórios. Signos.
Objects machines, objects of death and memory: the kantorian poïein
Abstract
In this article, I will examine the poetic relationships between actors and stage
objects in specific scenes of the theatrical performance "Wielopole-Wielopole,"
directed by Polish director Tadeusz Kantor. To accomplish this, I will first provide a
brief definition of the terms "poetics" and "stage objects". To synthesize the concept
of poetics, I will refer to Pareyson (2001). Regarding the semiotic study of stage
objects, I will draw on the works of Ubersfeld (2005), Pavis (2005), and Fischer-Lichte
(1999). Lastly, I will analyze the placement of objects in the director's related praxis.
Keywords: Physicality. Conscious action. Stage design. Props. Signs.
Objetos máquinas, objetos de la muerte y de la memoria: el poïein kantoriano
Resumen
En este artículo, observaré las relaciones poéticas entre actores y objetos escénicos
en algunas escenas del espectáculo teatral Wielopole-Wielopole, del director polaco
Tadeusz Kantor. Para ello, en primer lugar, será necesaria una breve definición de los
términos “poética” y “objetos escénicos”. Para sintetizar el concepto de poética,
recurriré a Pareyson (2001). Luego, para el estudio semiótico del objeto escénico,
utilizaré las obras de Ubersfeld (2005), Pavis (2005) y Fischer-Lichte (1999). Por
último, destacaré los lugares de los objetos en la praxis del director relacionado.
Palabras clave
: Fisicidad. Acción consciente. Escenario. Accesorios. Signos.
1 Revisão realizada por Marilyn Clara Nunes, Doutorado e Mestrado em Artes Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Graduação em Teatro Centro Universitário
Ítalo Brasileiro (UniÍtalo), e Graduação em Letras habilitação em Português e Inglês - Faculdade Presidente
Prudente (FAPEPE).
2 Doutorado e Mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Especialização
em História da Cultura e da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharelado em Artes
Cênicas ênfase em Direção Teatral pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Professor do Curso
de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). luciano.oliveira@unir.br
http://lattes.cnpq.br/0084587484397779 https://orcid.org/0000-0002-3738-1797
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
3
Os objetos sempre estiveram presentes nas práticas humanas (nos ritos, nas
cerimônias, na caça, no trabalho, nos jogos etc.) e, consequentemente, na cena
teatral. Podemos remontar à antiguidade para observarmos a relação de sujeitos
e de atores com máscaras, potes, lanças, bastões etc. Entretanto, no teatro, foi
principalmente no final do século XIX e princípios do século XX, em especial por
meio dos movimentos de vanguarda europeus (Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo,
Construtivismo e Expressionismo) que a relação ator/objeto assumiu um novo
patamar, adquirindo outro grau de importância, haja vista a negação das práticas
teatrais precedentes
,
tais como as naturalistas, e a busca de um novo teatro.
Assim, anos depois, mas ainda no século XX, na fronteira com a Rússia e no limiar
das diferenças e aproximações entre as pesquisas de Stanislavski e Meyerhold, o
polonês Tadeusz Kantor ( 1915 + 1990) debruçou-se sobre as relações
atores/objetos de cena a partir das experiências com o Teatro Cricot 2 (1955).
Kantor teve um modo muito particular de desenvolver as relações entre
atores e objetos de cena em suas encenações, principalmente em
Wielopole-
Wielopole
, espetáculo de 1980. Inclusive, os próprios atores eram considerados
como objetos do trabalho. Logo, os atores-objetos eram elementos fundamentais
da
poïein
(poética) kantoriana.
Todavia, antes de iniciar a análise dessas relações, torna-se necessário fazer
uma breve observação sobre o conceito de “poética” e também sobre a ideia de
“objeto teatral”.
Sobre poética e objetos no universo do teatro
A
poïein
teatral
Poética, originária do grego
poïein
, que significa fazer, compor, criar, diz
respeito à obra por fazer, conforme a definição do filósofo italiano Pareyson (2001).
O artista, segundo ele, não consegue produzir arte sem uma poética declarada ou
implícita. Ademais, define:
A poética é programa de arte, declarado num manifesto,
numa
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
4
1
retórica ou mesmo implícito no próprio exercício da
atividade
artística; ela traduz em termos normativos e operativos um
determinado gosto, que, por sua vez, é toda a espiritualidade de
uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte
(Pareyson, 2001, p. 11).
Sobre os manifestos artísticos, é sabido que alguns foram escritos
principalmente nos princípios do século XX por artistas que exerceram influência
no teatro, como o
Manifesto Surrealista
de André Breton, em 1924. Outros foram
elaborados pelos próprios artistas teatrais, como
O Manifesto do Teatro da Morte
,
de Tadeusz Kantor, em 1975. No primeiro caso, o surrealismo buscava estabelecer
os princípios constituidores de uma nova forma de encarar a arte. No segundo
caso, Kantor recorria aos modelos dos simbolistas Henrich Von Kleist, Ernest
Theodor Hoffmann e Edgar Allan Poe na tentativa de reformular a arte teatral
principalmente pela inserção de marionetes no espaço cênico.
De certo modo, esses manifestos estabelecem programas de arte e apontam
para normas e operações relacionadas aos gostos artísticos de Breton e Kantor.
Ou seja, indicam modos de pensar que caminham para formas de fazer (poéticas).
Pareyson (2001) diz também que a poética é experiência, pois a obra de arte
precisa ser feita. Seria uma experiência ligada ao espírito do artista e ao tempo em
que vive, que atrela a obra ao próprio tempo em que é realizada e ao indivíduo que
a desenvolve. No caso de Kantor, o seu manifesto exprimiria as memórias das duas
guerras mundiais pelas quais passou e o imaginário artístico não figurativo da
Polônia das décadas de 1960 e 1970.
No que se refere ao programa de arte, Pareyson coloca uma pergunta
elucidativa e também que o difere do conceito de arte:
[…] quem poderia negar a validade do programa de arte abstrata como
se se pudesse estabelecer a
prior
i que não é possível fazer arte
seguindo aquela poética? Mas quem, em nome daquela poética,
desvalorizasse a arte figurativa do passado, ou, ao julgá-la,
considerasse o intento representativo como absolutamente
irrelevante, ou colocasse a não figuratividade como condição
indispensável e perpétua da arte, confundiria os planos e tenderia,
ilegitimamente, a transformar um programa particular de arte em
conceito geral da arte
(Pareyson, 2001, p.16)
.
Diga-se de passagem, sobre a arte abstrata, o encenador Tadeusz Kantor,
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
5
profundamente fascinado (não influenciado3) pelo radicalismo na arte e pelos
artistas do construtivismo e da Bauhaus, declara de uma maneira que pode ser
lida como um tipo de enunciado poético (programa) artístico, que não mais se
trata de um abstrato frio e cerebral:
Sim, eu não sou frio, não sou um abstrato, jamais. Quando eu o era, no
sentido que a arte informal atribuía ao termo, isto era muito caloroso.
Sou contra a combinação, o cálculo, a pseudociência, a arte que se
defende a golpes de definições científicas. Há muitos artistas que atuam
com métodos “científicos”, naturalmente isto não é nada!... A arte deve
expressar-se completamente nua, desarmada (Kantor, 2008, p. XXVII).
Aqui nota-se o gosto artístico de Kantor. E a esfera do gosto, de acordo com
Pareyson (2001), é outro ponto relevante para a compreensão do conceito de
poética. O filósofo toma como exemplo um tipo de doutrina moralista da arte que
comumente aparece no campo da estética. Para ele, se o objetivo desta é propor
o programa de uma arte repleta de moralismos, ou ensinar o bem, ou ainda voltada
para um modo de concepção filosófica, política ou religiosa, essa arte é uma
poética e denota um certo gosto e ideal artístico. Logo, a autonomia da arte não é
comprometida, pois seu programa é mais do que legítimo, limitando-se a exaltar
e a “recomendar a prática de uma arte de inspiração moral” (Pareyson, 2001, p. 16).
Para a realização de uma obra artística, ainda para Pareyson (2001), é
imprescindível para o artista uma poética, explícita ou implícita, haja vista ser
possível o artista não ter um conceito de arte, mas não poder ficar sem um ideal,
um desejo, de arte. Quanto ao trabalho do crítico que como escritor também
desempenho o papel , não deve se basear somente em sua opinião para o
esclarecimento da poética de um artista. É necessário “colher sua espiritualidade
no ato de individuar-se num gosto de arte, colher este gosto no ato de
manifestar-se na
sua eficácia normativa e operativa e colher estas normas e
estas operações no ato de concretizar-se em obras” (Pareyson, 2001, p. 17).
Obviamente, quando se trata de
Wielopole-Wielopole
, não será possível
3 Denis Bablet questiona se Kantor é realmente influenciado por outros artistas ou mesmo por outros
movimentos artísticos: Ele é realmente ‘influenciado’? Kantor não gosta desse termo evocador de laços
mecanicistas de dependência, que não lhe parecem corresponder ao desenvolvimento vital de um artista
autêntico. Este é fascinado. Nutrido. Ele encontra. As tendências irracionais da arte, o simbolismo de
Maeterlinck, o fantástico de E. T. A. Hoffmann, o universo de Kafka e, no campo polonês, além da figura
lendária de Wyspianski, três escritores: ST. I. Witkiewicz, W. Gombrowicz e B. Schulz” (Bablet, 2008, p. XXVIII).
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
6
apreender a espiritualidade kantoriana no seu ato de individuação, ou seja, acessar
seus processos criativos e as apresentações desse espetáculo por meio da
observação presencial. Contudo, tentaremos percorrer sua trilha criativa a partir
de relatos escritos por terceiros (pesquisadores, artistas em geral e também dos
seus atores) e confrontá-los com imagens oriundas do vídeo4 de uma
representação ocorrida na Polônia.
De resto, com base nas questões apontadas por Pareyson, parece-me que a
poética do artista é autêntica, traduz sua própria linguagem, possui uma lei
exclusiva (não cotidiana) e o constitui, tornando sua poética pessoal e
intransferível. Assim, o fazer artístico e a obra feita identifica o próprio artista que
o faz, como o
Wielopole-Wielopole
que nos faz reconhecer a identidade e a
memória de Tadeusz Kantor, assim como
A Flauta Mágica
nos possibilita ouvir
Mozart.
Além do mais, o fazer artístico aproximando-me aqui da ideia de poética
como experiência de Pareyson representaria a presença do artista no espaço-
tempo presente. No teatro, essa presença ocorre durante os processos criativos
da obra e no ato de sua realização. Por um lado, o aqui e agora do encenador, o
seu ato de realização, é notado principalmente na encenação: na estética do
espetáculo que acontece, nos climas e atmosferas criados, nos ritmos etc. Por
outro lado, o tempo atual do ator, a despeito do que sucede nos ensaios, ocorre
no ato de interpretação da personagem. Com o seu corpo, com os seus desejos e
emoções, o ator se expressa e mostra sua personagem ao público. Já no que toca
os processos criativos, o ato de o artista individualizar-se e de fazer sem barreiras
é relevante na criação de sua poética. Todavia, durante a representação, os
sentidos, as experiências estéticas, as reações externas, os efeitos, etc., ficam a
cargo da plateia e constituiriam temas de gosto.
A propósito, é importante lembrar que, antes mesmo dos processos criativos,
existe o
pensamento poético
5 do artista. Esse pensamento está no seu desejo
4 Disponível em: <https://youtu.be/8wsAfotRhbc?t=44>. Acesso em: 30 jun. 2023.
5 Expressão emprestada de Rogério Santos de Oliveira, artista plástico, diretor e ator de teatro e professor
aposentado do Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Numa madrugada fria e
chuvosa do verão ouropretano, mais especificamente no dia 21 de dezembro de 2013, regado a vinhos e
queijos, conversávamos displicentemente, na casa desse artista, sobre arte, pinturas, teatro e também sobre
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
7
(“inconsciente-consciente”) de manifestar-se artisticamente, na sua potência de
manifestação. Nela está contida uma profusão de imagens, de movimentos, de
formas, de frases avulsas e desconexas, de rabiscos cenográficos, de borrões de
luz, de memórias, de cheiros, de sons, e assim por diante. Tudo isso disponível à
experimentação durante o ato criativo.
Finalmente, o outro lado da poética, um pouco distinto da
poïein
pareysiana,
relacionar-se-ia com a beleza, com o suspiro, com a interjeição do espectador:
“Que poético é esse espetáculo!”, “Lindíssimo esse cenário!”, “Quão maravilhosa é
essa luz!”. Assim, o espectador
parece manifestar-se sobre o belo abstrato da obra (as sensações, os
sentidos, as emoções evocadas e provocadas, o som que arrepia a pele,
o verso que acelera o coração, o soluço de um ator que faz aumentar a
respiração) e também sobre o belo concreto perceptível aos olhos e ao
tato que estaria mais ligado à forma da obra (as cores dos figurinos, os
ângulos e as texturas do cenário, a organização espacial dos elementos
cênicos, à página de um livro...) (Oliveira, 2002, p.70).
O que são os objetos de cena?
Segundo Ubersfeld (2005), o espaço teatral é frequentemente preenchido por
uma variedade de elementos concretos, como os corpos dos atores, os elementos
do cenário e os acessórios. Por diversas razões, esses elementos podem ser
denominados de objetos:
Uma personagem pode ser um locutor, mas pode também ser um objeto
da representação, do mesmo modo que um móvel: a presença muda ou
a imobilidade de um corpo humano pode ser significante como a
presença de outro objeto; um grupo de atores pode figurar um cenário; é
possível que seja mínima a diferença entre a presença de um guarda
armado e a de armas representando a força ou a violência. Por isso fica
difícil fazer coincidir as três categorias de
objetos
com três tipos de
funcionamento autônomos: um acessório, um ator, um elemento do
cenário podem ter funções intercambiáveis. Tudo o que ocupa o espaço
pode nele atuar e as três categorias deslizam entre si; [...] mas são
característicos desta ou daquela dramaturgia (Ubersfeld, 2005, p. 118).
As dramaturgias a que se refere Ubersfeld, com ênfase na mimesis, são
o conceito de poética. Observando os inúmeros quadros que adornavam as paredes da sua sala de estar e
refletindo sobre os seus processos de criação enquanto pintor, Rogério mencionou a expressão
pensamento
poético
para ilustrar o momento potencial que antecede os processos criativos de um criador. Fiquei com
essa expressão na cabeça e mal consegui dormir naquela noite. Logo, peguei de empréstimo a expressão
do ex-professor.
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
8
aquelas que podem entupir a cena de objetos, esvaziar o espaço de atuação, usar
os objetos como decoração para criar uma ambientação estética ou utilizá-los da
maneira mais funcional possível. Ademais, existem dramaturgias em que o objeto
cênico é a própria personagem. Todavia, para Ubersfeld (2005, p. 118), “a
personagem somente se torna cenicamente objeto, se for transformada em
inanimado, com os traços do
inanimado
: a não palavra e o não movimento”. Nesse
sentido, percebe-se que quando Ubersfeld refere-se a personagem, depreende-
se, pelo contexto, a ideia de representação. Em Kantor, ocorria o contrário: o
próprio ator poderia ser o objeto. Isso porque em boa parte de sua
mise-en-scène
não havia representação. Não havia imitação. Em
Wielopole-Wielopole
a realidade,
degradada, era manuseada a partir da ilusão. Para o encenador polonês, os
objets
trouvés
objetos prontos ou encontrados na cena, assim como os atores, não
imitavam, eles eram. Ademais, segundo Cintra (2008, p. 38) “o
status
do trabalho
do ator no teatro de Kantor emana da sua presença real”. Ou seja, da fisicidade do
ator, do tempo presente. A repetição de ações era comum, nos moldes do
automatismo psíquico dos surrealistas, e os atores agiam como marionetes (seres
inanimados) e também como
ready-mades
(objetos prontos), no sentido
duchampiano.
Em
A Classe Morta
, de 1975, por exemplo, o ator kantoriano também adquiria
caráter objetal. no início da realização do espetáculo (cujo vídeo pode ser
encontrado na internet6), os atores imóveis, sentados em bancos como se fossem
alunos em sala de aula, confundem-se com bonecos também imóveis. A princípio
não sabíamos quais das figuras congeladas eram atores, quais eram bonecos e
quantos atores e bonecos existem. Somente no decorrer da cena, quando os
atores começam a se movimentar de maneira mecânica e repetitiva, abandonando
os bancos, é que o único boneco existente ficava à mostra. Assim, poeticamente,
ele adquiria condição humana e os atores adquiriam condições objetais.
Para o teatrólogo francês Pavis (2005, p. 174), os objetos no teatro são “tudo
o que não é o ator e que representa na cena os acessórios, os cenários, os telões
e mesmo os figurinos”.
6 Disponível em: https://youtu.be/a235hHGFIps?t=3. Acesso em: 30 jun. 2023.
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
9
Diferentemente do que aponta Ubersfeld, Pavis admite a possibilidade de o
ator (ou partes do seu corpo) representar um objeto. Contudo, isto ocorreu em
distintos espetáculos da vanguarda teatral europeia, como em
Ubu Rei
, de Alfred
Jarry, dirigido por Lugné-Poe em 1896. Em
Ubu
, um ator de braços abertos
simbolizava uma porta. Um buraco feito em uma de suas mãos, conseguido pelo
encontro do indicador com o polegar, denotava uma fechadura, na qual uma
personagem introduzia uma chave para passar para o outro lado.
Fischer-Lichte (1999, p. 217), por sua vez, diz que “podemos delimitar los
accesorios como objetos en los que el actor ejecuta acciones; se definen así como
objetos a los que se dirigen los gestos intencionales de A”. De acordo com essa
autora, entende-se por A uma pessoa (ator), que representa X (personagem),
diante de S (espectadores). Aqui é colocado um ponto muito importante: a ação
intencional do ator no e com o objeto. Essa ação, conforme essa teórica alemã, é
essencial para que um objeto seja acessório. Logo, um objeto isolado como, por
exemplo, uma camisa abandonada sobre uma poltrona, cumpriria meramente a
função de objeto. Agora, se um ator (A), por meio de sua personagem (X), age com
e sobre essa camisa vestindo-a apressadamente como se estivesse atrasado
para o trabalho o objeto cênico adquire status de acessório. Ademais, ela
alguns exemplos para distinguir os acessórios do penteado, do cenário e dos
objetos:
Pelo, lazos, horquillas, etc. actúan como elementos del peinado si están
prendidos en la cabeza, si por el contrario el actor comienza a recolocarse
el cabello, a trenzarlo, a recogerlo, a ponerse lazos, ponerse y quitarse
horquillas, el cabello, los lazos y las horquillas actúan como accesorios.
Guantes y espada que el actor lleva puestos o sujeta, son componentes
de su vestuario, si los deja y los utiliza como objetos que manipula se
consideran accesorios. Una mesa puesta representa con todos sus
elementos (mesa, sillas, mantel, platos, tazas, cucharas, sopera, etc.) el
decorado de una escena o representación o al menos una parte de ese
decorado. Si un actor cambia de lugar una silla, se sienta y coge una
cuchara o una taza, utiliza estos objetos como accesorios (Fischer-Lichte,
1999, p. 216 e 217).
Neste excerto, observamos o que diferiria, segundo a estudiosa alemã, os
acessórios dos elementos do penteado e do cenário e, por conseguinte, o que faz
com que o objeto também seja distinto do acessório. Fica evidente, então, que
para Érika Fischer-Lichte os objetos que são manipulados intencionalmente pelo
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
10
ator são acessórios.
Entretanto, particularmente, discordo desse ponto de vista da teórica alemã,
pois o objeto seria
toda a matéria com e na qual o ator tem a possibilidade de agir
consciente e intencionalmente. Logo, a ação consciente e intencional do
ator em relação ao objeto o afirma como signo potente do jogo teatral a
ser manipulado pelo ator e também pelo encenador. Ao contrário, sem a
ação intencional, o objeto é meramente um acessório do figurino, do
cenário e do espaço. Vejo ainda o objeto teatral como a matéria com a
qual o ator relaciona-se, sica e espacialmente, durante os processos
criativos ou quando de sua interpretação, a fim de criar sentidos diversos:
sejam eles concretos ou abstratos. (Oliveira, 2002, p.36).
Essa matéria, aproximando-me um pouco – e guardadas as diferenças dos
conceitos de Ubersfeld e Pavis, pode ser os próprios corpos (ou partes de corpos)
dos atores, os adereços, os cenários, os figurinos, um instrumento musical e até
mesmo os bonecos, sejam eles figurações zoomórficas ou antropomórficas.
Assim, em termos de categorias dos objetos, teríamos, respectivamente: bio-
objeto, objeto-adereço, objeto-cenário, objeto-figurino, objeto-instrumento,
objeto-zoomórfico e objeto-antropomórfico7.
Além do mais,
o uso consciente e o contexto no qual está inserida tal matéria também
é fundamental para interpretá-la como sendo objeto de cena. [...] o
relacionamento do ator com os diferentes tipos de objetos pode se dar
de maneira que o corpo do ator e o objeto se confundam, como se
fossem uma única fisicidade (objeto-extensão do corpo): o primeiro
complemento do segundo, o segundo complemento ou prolongamento
do primeiro; ou até mesmo pelo jogo consciente da espacialidade
existente entre ator e objeto (Oliveira, 2002, p. 36-37).
Veremos o primeiro caso quando eu tratar, mais apuradamente, das relações
entre atores-figuras cênicas e objetos em
Wielopole-Wielopole
. Para ilustrar o
segundo caso, trago o seguinte exemplo: durante uma jornada teatral um ator que
interpreta Otelo de Shakespeare adota como ação física a manutenção de uma
insistente distância entre ele e uma mesa posicionada em um canto do palco.
7 Os detalhamentos conceituais dessas, e de mais setes categorias dos objetos, como, por exemplo, objeto-
desviante e objeto-energético, podem ser encontradas no meu e-book “O objeto flutuante entre a poética
e a estética teatral”, publicado pela Editora Scienza, do estado de São Paulo, em 2022. Esse livro virtual pode
ser baixado, gratuitamente, no site dessa editora.
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
11
Otelo mantém o olhar fixo na mesa, piscando repetidamente, mas nunca se
aproximando dela a menos de um metro. O público percebe esse jogo por meio
da constante troca de olhares entre Otelo e a mesa, bem como pela sua contínua
recusa em se aproximar do móvel. Assim, esta, “além de constituir um cenário da
encenação, torna-se também um objeto cênico, que implicaria certo sentido,
talvez uma fobia ou loucura, que é dado tanto pelo contexto da encenação quanto
pela recepção” (Oliveira, 2002, p.38).
Finalmente, ainda em relação à
poïein
, o encenador necessita, para o seu ato
teatral, refletir e agir sobre o como trabalhar os distintos procedimentos de cena
para alcançar determinados efeitos com sua encenação. No caso de Tadeusz
Kantor, enquanto diretor e professor de teatro, questiono-me sobre o lugar e o
valor dos objetos em
Wielopole-Wielopole
e quais sentidos e poéticas foram
criadas pelos atores desse espetáculo a partir de suas relações com os objetos de
cena. O interesse maior está no programa teatral (ideias, manifestos, conceitos,
gostos e operações) e na própria
poïein
(enquanto fazer, compor e criar) deste
encenador. Por sua vez, a
poïein
encontrar-se-ia tanto nos processos criativos dos
espetáculos (que envolvem, principalmente, o encenador e os atores) quanto na
representação/apresentação dos mesmos, em que o fazer dos atores é constante
nos seus atos de interpretação, de improvisação e de relacionamento com os
múltiplos elementos da cena.
Poéticas do objeto em
Wielopole-Wielopole
Concomitantemente a alguns apontamentos a respeito do uso do objeto
cênico no teatro de Tadeusz Kantor, surgirão análises de cenas e de objetos
utilizados no espetáculo
Wielopole-Wielopole
, texto montado por esse encenador
em 1980.
Sendo assim, começo por Ana Maria Amaral, professora titular da
Universidade de São Paulo (USP) e diretora de teatro especializada em Teatro de
Animação, que aponta o lugar do objeto na cena kantoriana e também a maneira
dos atores se relacionarem com ele:
O objeto ocupa posição importante em seu teatro onde trata sempre da
relação ator-objeto. E o que se usa é um objeto qualquer, apenas
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
12
recuperado para significados artísticos e emocionais. Quanto menos
importante for ele, maiores possibilidades revela. Usa-o de acordo com
princípios construtivistas, isto é, forma com ele, no palco, ângulos e
linhas, que se modificam no contexto da cena. O objeto é para ele uma
espécie de prótese do ator. Cada personagem tem o seu próprio objeto
que, ligado ao seu corpo, forma com ele um ser. [...] A estola de um
sacerdote, em
Wielopole-Wielopole
, passa de objeto ritual a um simples
objeto caído no chão, rejeitado, sequer percebido, e depois é retomado
com novas conotações. (Amaral, 1996, p. 202).
Aqui notamos um claro exemplo em que o objeto é complemento (prótese)
do ator e o corpo do ator é uma extensão ou prolongamento do objeto. Em
Wielopole-Wielopole
, parece que os atores (ou os seus membros, como pernas e
braços) são engolidos pelos objetos. Ao entrarem em cena, conforme notado no
vídeo citado, alguns trazem objetos deglutidos por suas mãos: cruz, comadre,
fuzis, etc. Esses, extensões dos corpos dos atores, ou vice-versa, permanecem
ligados uns aos outros por todo o espetáculo.
Em relação aos objetos que constantemente mudam de sentido, notemos a
cena da estola do sacerdote, conforme apontado anteriormente por Amaral. Trata-
se de um casamento, em que um soldado, Marian Kantor, marcha repetidamente
sem sair do lugar. Ele aguarda o padre entrar com a sua esposa zumbi, que age
como uma morta-viva, olhando fixamente para frente, como se observasse seu
futuro ao lado do marido também morto-vivo. Apoiados pelos ombros, amparando
um ao outro, aguardam paralisados o começo da cerimônia. Após uma breve
introdução, o padre pergunta se o noivo aceita a noiva Helena Berger como esposa.
Não resposta. O padre então sopra no ouvido do noivo: “Eu aceito, eu aceito!”.
Como uma marionete, o morto-vivo abre a boca e deixa os dentes de cima
baterem nos de baixo, como se dissesse mecanicamente: “Eu aceito!”. A cena se
repete do outro lado, e a noiva suspira: “Eu aceito!”. Um pouco mais adiante, o
sacerdote tira dos ombros sua estola preta e utiliza esse ornamento para enlaçar
as mãos dos noivos, objeto simbólico mortuário que substitui as alianças.
Parecendo fazer um movimento de beijar a noiva, que lança a estola ao chão, o
noivo a transporta rumo a uma cruz, carregada por outro soldado. Saindo de cena,
Marian Kantor abandona sua amada na porta de entrada, no fundo do palco. Kantor
então aparece, serra a porta, volta-se ao centro do palco, pega a estola e lança-a
sobre uma cadeira, abandonando-a, e
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
13
Eis que a estola vira agora um acessório de teatro desprovido de todo
valor emocional. Em seguida o padre volta para buscar sua estola. Kantor
a indica com um gesto. A emoção se rompeu, a ilusão teatral foi
desvendada. Agora tudo pode recomeçar (Bablet e Eruli apud Beltrame e
Moretti, p. 1125).
No teatro kantoriano, também uma ligação intensa entre bonecos e
objetos. Nos primeiros instantes do espetáculo, nota-se um boneco sentado numa
cadeira: um boneco-cadeira. Momentos depois, os gêmeos, que se revezam num
jogo de confusão
clownesca
(quem é quem?), tiram o boneco-cadeira do lugar.
Um deles levanta o boneco, separando-o da cadeira, que se torna um objeto
singular. Enquanto um carrega o boneco, o outro busca mais uma cadeira,
mantendo-a entre os braços. O jogo de duplicidade continua por mais um tempo,
até que, finalmente, o boneco é colocado sobre uma cama mecânica, sendo preso
por correias por uma atriz. Deitado, mortuariamente, o boneco sem vida repousa
como se estivesse em um caixão. De boneco-cadeira ele torna-se boneco-caixão.
E assim continua por toda a cena.
As ideias essenciais sobre o objeto no teatro de Tadeusz Kantor, conforme
apresenta Cintra (2008, p. 79), são as seguintes:
aquela do objeto pronto ou encontrado, ‘objet trouvé’, na concepção de
Kantor, ideia semelhante ao ‘ready-made’ de Marcel Duchamp, e aquela
da ‘matéria arrancada da vida’, o objeto pobre que caracterizará a
‘realidade de classe mais baixa’ [...]. Mas ao lado dessa ideia que percorre
toda a sua obra, outros objetos mais sofisticados aparecerão, não mais
arrancados da vida, mas construídos, fabricados, revelando um outro
universo poético.
Ainda para Cintra (2008), até os princípios do século XX, os objetos no teatro
sempre foram acessórios, meros elementos decorativos e instrumentos para
auxiliar os atores na construção de suas personagens. Entretanto, em Kantor,
como parte de tendências que reinterpretavam o objeto na arte, entre os
quais o Construtivismo, o Surrealismo e o Dadaísmo, o objeto passou a
ocupar um lugar de destaque. Em seu teatro, o objeto é valorizado no
sentido de se criar a tensão, tensão que está presente entre os diversos
elementos da cena. O ator não possui mais o privilégio de concentrar a
atenção e de catalisar a emoção. O elemento humano é um dos
componentes do jogo teatral e a emoção surge das infinitas
possibilidades de arranjo dos elementos que compõem o espetáculo
(Cintra, 2008, p. 12).
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
14
Nota-se, então, que para Kantor era essencial respeitar o objeto, tratá-lo
como um objeto vivo da vida cotidiana e não apenas como um mero acessório de
teatro. O objeto, de acordo com alguns dos seus depoimentos, poderia até ser
mais importante que os atores. Ele tornava-se um elemento da narrativa que
possibilitava ao espectador mergulhar num universo misterioso e distinto da vida
cotidiana, num lugar chamado por ele de “‘outra dimensão espaço/temporal’
constituindo, assim, as relações poéticas de uma arte que é resultante de um
conjunto de procedimentos que resultam de uma análise introspectiva que o
artista exercia sobre seu próprio trabalho” (Cintra, 2008, p. 13).
Nos espetáculos tradicionais o objeto é tido como um acessório que auxilia
o ator a interpretar sua personagem. Mas Kantor criticava essa fórmula, pois, para
ele, ali o objeto era sempre secundário. Ele reconhecia a importância dos objetos,
anexando-os aos espetáculos, fazendo deles personagens. Do mesmo modo que
Duchamp, “ele tirava do objeto seus atributos tradicionais, estéticos ou formais,
fazendo deles um ready-made. Por isso lhes dava um novo peso de existência”
(Beltrame e Moretti, s.d., p. 1122).
Amaral (1996, p. 201), aponta as várias fases pelas quais passou o teatro
kantoriano: “A fase do teatro independente; a fase do teatro informal; ligado à
pintura; a fase do teatro zero, onde a ênfase era o objeto; a fase do teatro da
morte; e, finalmente, a fase do teatro espiritual”.
Em
Wielopole-Wielopole
, espetáculo pertencente à fase do Teatro da Morte,
Kantor operava com a mnemônica e também com as suas memórias. Mas essa
operação se dava de forma não linear e por meio de saltos temporais. Assim como
na vida, em que as coisas acontecem, aparecem e, de repente, desaparecem. O
povoado polonês onde ele nasceu, em 06 de abril de 1915, Wielopole Skrzyńskie,
era o suporte espacial do imaginário do diretor. Ele lidava com as lembranças da
Praça do Mercado
que circundava sua casa, a qual, além de uma pequena capela,
também “abrigava a estátua de um santo para servir os católicos e um poço junto
ao qual se desenrolavam, ao clarão do luar, núpcias judaicas” (Kantor, 2008, p.
XXV). Além disso, de um lado, havia uma igreja, um presbitério e um cemitério,
enquanto do outro lado existiam ruelas judaicas, uma sinagoga e outro cemitério,
um “cemitério diferente”, segundo Kantor (2008). Ademais, ele lidava, de acordo
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
15
com Gluhovic (2005), com as recordações da II Guerra Mundial, que destruiu boa
parte do povoado e expulsou os judeus para os campos de concentração alemães
instalados na Polônia, durante o terror do Holocausto.
Numa passagem do texto de
Wielopole-Wielopole
, Kantor traz lembranças
de seus parentes e remete ao uso de uma fotografia como objeto de
rememoração:
Aqui está minha avó, Katarzyna, mãe da minha mãe.
E esse é o irmão dela, o Padre.
Alguns costumavam chamá-lo de tio. Ele falecerá em breve.
Meu pai está sentado ali. O primeiro à esquerda.
No verso desta fotografia, ele envia seus cumprimentos.
Data: 12 de setembro de 19148 (Gluhovic, 2005, p. 155).
No começo de
Wielopole-Wielopole
, Kantor, que se encontra em cena
constituindo assim um diretor-ator
ready made
que rompe com a ilusão ,
manipula e organiza objetos do seu “quarto da imaginação”:
Então, meu como eu o chamo
Pobre quarto de imaginação
em cena
Eu devo arrumá-lo (Cintra, 2008, p. 54).
Os objetos poéticos do seu “quarto da imaginação” remeteriam,
simbolicamente, ao quarto em Wielopole. De cor ocre e de aspecto decadente,
observamos um guarda-roupa quase vazio (com apenas um cabide em cada porta,
do lado de dentro); duas cadeiras e uma cama mecânica portanto, não realista
sem colchão, cujo estrado parece ser uma porta. Além disso, já se encontravam
em cena, antes da entrada de Kantor: no fundo do espaço, dois painéis que
funcionavam como porta de correr; à esquerda, uma cadeira com um manequim
de sacerdote sentado; e à direita, uma mesinha com uma valise em cima, uma
cadeira em frente à mesa e diversas cruzes. Ao ordenar a um ator que mova
lateralmente os painéis, entram, com objetos em suas mãos, as figuras-memórias
da pequena cidade polonesa: os parentes de Kantor, localizados no centro e à
esquerda do palco, e vários soldados armados, à direita. Duas figuras ficam
8Here is my Grandmother, my mother’s mother, Katarzyna. And that’s her brother, the Priest. Some used to
call him uncle. He will die shortly. My father sits over there. The first from the left. On the reverse of this
photograph he sends his greetings. Date: 12th September 1914 [...]”. (Tradução nossa).
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
16
espalhadas no chão, como se estivessem mortos. Aliás, os humanos que na cena
se movem são aqueles sobreviventes aos próprios humanos, os que sobreviveram
à destruição. É como se também fossem mortos, mas mortos-vivos. Kantor
passeia entre eles, os cadáveres, e entre as figuras congeladas no tempo. Em
seguida, senta-se na cadeira em frente à mesa. Por frações de segundos o diretor,
figurando um tipo de duplo temporal de sua própria memória (ele no presente e
no passado), observa a cena como se olhasse a uma fotografia preta, branca e
âmbar. Uma fotografia de um “mundo de mortos que revivem suas lembranças”
(Cintra, 2008, p. 14). Enfim, todos esses objetos possuiriam, entranhadas em si, as
lembranças de um período árduo da história polonesa.
Dependendo do contexto da cena em que se inserem, e também conforme
suas utilizações no espaço de jogo, outros objetos de
Wielopole-Wielopole
são
ressignificados, adquirindo novas funções, além das suas primárias. Esse é o caso
de uma máquina fotográfica, de função ambígua, citada por Amaral (1996, p.202):
[...] a máquina fotográfica, daquelas antigas, com sanfona, toma um
significado duplo. Ao tirar a foto para posteridade por um segundo a
máquina prende as pessoas na pose, estáticas e imóveis; eterniza assim
um momento vivo, prendendo-o na imobilidade da imagem; mas, ao
mesmo tempo, ao bater a foto, a máquina, na cena, se transforma em
metralhadora. A metáfora está em que a fotografia ao mesmo tempo em
que eterniza, mata o momento.
No entanto, nem todos os objetos neste espetáculo perdem suas funções
originais e primárias. Por exemplo, uma das cadeiras permanece como uma
simples cadeira, e o guarda-roupa continua a representar a si mesmo. Entretanto,
num universo geral de uso do objeto, Kantor tira dele seu sentido original, “sua
função utilitária, seu simbolismo, para reduzi-lo à neutralidade de sua autonomia
concreta. Arrancando-o, ele o protege [...], ele afirma sua existência despojada de
todos os valores estéticos, mesmo quando escolhe de preferência objetos de um
grau inferior” (Bablet, 2008, p. XXXIX).
Fazendo agora um salto temporal para o início do vídeo, em outra cena com
os gêmeos, logo após o jogo
clownesco
mencionado, os irmãos começam a
reorganizar o espaço, que estava entulhado de objetos e de pessoas-objetos.
Vejamos a descrição dessa cena, e também da seguinte, feita pelo importante
estudioso kantoriano Michal Kobialka (2006, p. 04):
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
17
O primeiro pega a mala e coloca sobre o guarda-roupa, e o segundo fala
“não, a mala estava sobre a mesa”. E a mesma coisa acontece com todas
as pessoas naquele espaço. O primeiro gêmeo diz que aquela pessoa
estava ali e o segundo diz não” e a pessoa é removida. Até que eles
movem a eles mesmos. Então Kantor organiza o espaço, mas essa
energia que entra na forma de atores altera completamente esse espaço.
A porta se abre mais uma vez e uma pessoa entra e se coloca ao lado da
cama. A música que se ouve transforma esse espaço na reminiscência
de um funeral. A música aumenta, a porta se abre, e uma pessoa estranha
tenta entrar. Alguém ao lado da cama diz “ainda não” e empurra a pessoa.
A música volta, o estranho tenta entrar e a pessoa ao lado da cama
empurra ela de novo. A música aumenta, a porta se abre, e finalmente a
pessoa entra.9
Nessas cenas, além do jogo entre os gêmeos, a valise e o guarda-roupa,
percebemos novamente o valor dos objetos enquanto eles mesmos, ou seja, suas
funções primárias, e a manipulação de corpos humanos como se fossem objetos
(dejetos) abandonados em plena residência da família Kantor.
Por fim, a relação dos atores com os objetos no teatro de Kantor era sempre
de paridade. Não havia um elemento principal em que um sobrepujava o outro.
Aliás, não existia hierarquia entre os diferentes elementos de sua encenação (luz,
cenário, ator, texto, música, bonecos, objetos etc.). Nenhum deles era privilegiado.
Na cena kantoriana, ator e objeto constituíam um único ser, formando uma
unidade orgânica, real e não mecânica chamada, segundo Cintra, bio-objeto:
Da união de ator e figurino, sobressai uma estrutura livre que se justifica
única e exclusivamente como objeto de arte mas muito mais potente do
que qualquer experiência vital convencional devido à sua força de
expressão. Esse novo organismo deve constituir uma fusão íntima da
matéria do corpo humano e das formas cênicas que se desenvolverão no
espaço. [...] Em sua concepção, esse objeto muda o comportamento do
ator de uma maneira tal que um novo ator surge a partir de um processo
de fusão entre dois organismos, ou seja, o objeto faz nascer um novo
ator. Assim, se o objeto é habitado pelo ator, com esse procedimento o
ator se torna as vísceras do objeto. Seu sangue, sua alma (Cintra, 2012
apud Oliveira, p.41).10
9 Como essa conferência não está mais disponível no
Scribd,
um trecho, em inglês, do diálogo entre os
gêmeos “Uncle Karol” e “Uncle Olek”, semelhante ao que aqui está traduzido para a língua portuguesa, pode
ser encontrado na página 330 da obra
A Journey Through Other Spaces
Essays and Manifestos
(1944-
1990), de Tadeusz Kantor, traduzido por Michal Kobialka. PDF disponível em: <https://western-scenic-design-
11.wdfiles.com/local--files/november-8/kobialka-questfortheother.pdf>. Acesso em: 27 set. 2023.
10 Cintra, 2012 apud Oliveira, 2022, p. 41.
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
18
Considerações finais
O universo dos objetos no teatro de Tadeusz Kantor é muito vasto. Eles
podem ter diversas classificações, multiplicando seus sentidos
ad infinitum
. Por
meio da
mise-en-scène
um encenador pode fazer algumas escolhas simbólicas,
apontando para diferentes direções na galáxia de significações. Todavia, é
importante lembrar que os sentidos estão muito mais a cargo dos espectadores
do que naqueles que tentam produzi-los. Isso quer dizer que a produção dos
sentidos é pessoal e intransferível, como o é o fazer (
poïein
) artístico, no qual o
fazedor firma em cartório sua assinatura. Porém, nós, encenadores, não somos
donos do entendimento alheio.
A poética do objeto em Kantor parece ir ao encontro da pluralidade e da
incerteza. Ao mesmo tempo, ela é e não é, colocando-se numa fronteira com
arames farpados cravados em areias movediças. Sejam duplos autorais, máquinas,
objetos da morte, da memória, atores-objetos, bonecos-objetos, objetos-próteses,
encontrados, construídos etc., todos eles têm um grande valor e ocupam um lugar
de destaque em sua encenação. Kantor, como vimos, deixa isso claro em seu
programa (propósito) teatral, por meio de seu entendimento do mundo e de seu
apreço pelo ser humano e pela vida (paroxismo da morte?).
Enfim, embora não tenha sido possível analisar a fundo os processos criativos
de
Wielopole-Wielopole
, tanto pela necessidade de síntese do artigo quanto pela
escassez de material, podemos, enquanto fruidores, deduzir seus procedimentos
de composição pelos exemplos expostos neste artigo. Isso porque a
poïein
observada na representação de uma obra de um artista é reflexo da
poïein
do
pensamento disparado, tal como uma bala de canhão, pelas imagens iniciais de
sua criação. Logo, do caminho criativo sobram pólvoras e resquícios, indícios que
nos ajudam a rastrear o objeto (a coisa) perdido.
Referências
AMARAL, Ana Maria.
Teatro de Formas Animadas
: máscaras, bonecos, objetos. São
Paulo: Editora da USP, 1996.
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
19
BELTRAME, Valmor e MORETTI, Maria de Fátima de Souza. Kantor, Duchamp e os
objetos.
DAPesquisa
, Florianópolis, v.3, n.5, p.1121-1129, 2008. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/15825 . Acesso em: 24 jul. 2023.
BRETON, André.
Manifesto do Surrealismo
(1924). Disponível em:
https://www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/manifesto_surrealista.pdf . Acesso em: 27 set. de 2023.
BABLET, Denis. O Jogo Teatral e seus Parceiros. In KANTOR, Tadeuz.
O Teatro da
Morte.
Textos organizados e apresentados por Denis Bablet. São Paulo:
Perspectiva, Edições SESC SP, 2008, p. XXVIII.
CINTRA, Wagner Francisco Araujo.
No limiar do desconhecido reflexões sobre o
objeto no teatro de Tadeusz Kantor
. Volume 1, 596 p. Tese (Doutorado em Artes)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
FISCHER-LICHTE, Erika.
Semiótica del Teatro
. Madrid: Arco/Libros, S.L., 1999.
GLUHOVIC, Milija. The Mnemonics of Kantor’s Wielopole, Wielopole. In
Memory-
Theatre of Harold Pinter, Tadeusz Kantor, and Heiner Mülle
r. Thesis (Doctor of
Philosophy) - University of Toronto, Toronto, 2005, p.151-177. Disponível em:
https://link.springer.com/content/pdf/10.1057/9781 137338525 _3.pdf. Acesso em: 27 set. de 2023.
KANTOR, Tadeuz.
A Journey Through Other Spaces Essays and Manifestos
(1944-
1990). Trad. Michal Kobialka. Disponível em: https://western-scenic-design-11.wdfiles.com/local-
-files/november-8/kobialka-questfortheother.pdf. Acesso em: 27 set. de 2023.
KANTOR, Tadeuz.
O Teatro da Morte
. Textos organizados e apresentados por Denis
Bablet. São Paulo: Perspectiva, Edições SESC SP, 2008.
KOBIALKA, Michal.
O Teatro de Tadeusz Kantor
: memória e representação.
(Conferência). Trad. Consecutiva: Tatiana Azevedo. Transcrição: Márcia de Barros.
Sala Preta
, São Paulo, 6, 28 out. 2006. Disponível em:
http://pt.scribd.com/doc/156435587/O-Teatro-de-Tadeusz-Kantor. Acesso em: 24 jan. 2014.
OLIVEIRA, Luciano Flávio de.
O objeto flutuante entre a poética e a estética teatral
.
São Carlos: Editora Scienza, 2022. Disponível em: https://editorascienza.com.br/
ebook/lucianodeoliveira.pdf. Acesso em: 27 set. de 2023.
PAREYSON, Luigi.
Os problemas da estética
. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
PAVIS, Patrice.
A Análise dos Espetáculos.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
UBERSFELD, Anne.
Para ler o teatro
. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Sites consultados
http://amediavoz.com/gelman.htm
Objetos máquinas, objetos da morte e da memória: a
poïein
kantoriana
Luciano Flávio de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-20, dez. 2023
20
https://editorascienza.com.br/ebook/lucianodeoliveira.pdf
https://link.springer.com/content/pdf/10.1057/9781137338525_3.pdf
http://pt.scribd.com/doc/156435587/O-Teatro-de-Tadeusz-Kantor
https://western-scenic-design-11.wdfiles.com/local--files/november-8/kobialka-
questfortheother.pdf
https://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/15825
https://youtu.be/a235hHGFIps?t=3 (vídeo de A Classe Morta).
https://youtu.be/8wsAfotRhbc?t=44 (vídeo de Wielopole-Wielopole).
https://youtu.be/8wsAfotRhbc?t=1128 (cena do casamento de Wielopole-
Wielopole)
Recebido em: 20/07/2023
Aprovado em: 03/10/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br