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O realismo sedutor como metáfora para uma
re-educação do corpo-arte
Cláudia Madruga Cunha
Thais Adriane Vieira de Matos
Para citar esta Resenha:
CUNHA, Cláudia Madruga; MATOS, Thais Adriane Vieira
de. O realismo sedutor como metáfora para uma re-
educação do corpo-arte.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45,
dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0801
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
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Cláudia Madruga Cunha | Thais Adriane Vieira de Matos
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-15, dez. 2022
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Resenha da obra
RIBEIRO, Martha.
Realismo sedutor: o corpo-teatro e a invenção de
realidades
. São Paulo: Hucitec Editora, 2022. 320 p.
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O realismo sedutor como metáfora para uma re-educação do
corpo
1
-arte
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Cláudia Madruga Cunha
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Thais Adriane Vieira de Matos
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Resumo
Trata-se da resenha de uma obra intensa e complexa, no qual a autora cria
o conceito metáfora realismo sedutor, com o objetivo de revisitar a
apropriação do vocábulo teatro que ramifica para o binarismo real-ficção
vindo associado à tradição aristotélica. A proposta nos faz pensar a
educação do corpo na e para a arte, Ribeiro instiga a refletir que atuar não é
interpretar o real, mas experimentá-lo através de um corpo intuitivo, que
interfere e é interferido pelo meio social, político, econômico e cultural, de
modo afetivo, por isso sedutor, revolucionário, transgressor. Nisso desafia o
que se entende e o que se ensina a respeito da arte teatral, quando propõe
rupturar com as telas do real e da representação que nos condicionam.
investe em um corpo múltiplo, intempestivo artaudiano, que se desdobra ao
longo do texto em outros conceitos corpos, maquinímicos, biopolíticos,
antropofágicos, esteticamente emancipados.
Palavras-chave
: Corpo-teatro. Antropofagia. Biopolítica. Educação do corpo.
1
Revisão ortográfica e gramatical da resenha realizada por Lucas Vinicius Vebber Cardenas, graduado em
Letras Português pela UFPR.
2
Trabalho realizado com o apoio da CAPES (PROEX Programa 6-7) -PPGE/UFPR
3
Pós-Doutora em Educação pela Universidade do Porto (UP), Doutora em Educação (UFRGS), Mestra em
Filosofia (PUCRS), Licenciada em Filosofia (UFPEL). Docente no Departamento de Artes (UFPR) e docente
permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação (UFPR) na Linha Linguagem, Corpo e Estética
na Educação. cmadrugacunha@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3002442586103574 https://orcid.org/0000-0002-2867-5566
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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) na
Linha: Linguagem, Corpo e Estética na Educação, Mestra em Educação (UFPR) e Licenciada em Educação
Física (UFPR), docente na Educação Básica da rede pública. prof.thaisvieira@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7515707400606325 https://orcid.org/0000-0003-3413-6777
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Seductive realism as a metaphor for a body-art re-education
Abstract
This is a review of an intense and complex work, in which the author
creates the metaphorical concept of seductive realism, with the aim of
revisiting the appropriation of the word theater that branches out to the
real-fiction binarism associated with the Aristotelian tradition. The proposal
makes us think about the education of the body in and for art, Ribeiro
instigates to think that acting is not interpreting reality, but experiencing it
through an intuitive body, which interferes and is interfered by the social,
political, economic and social environment. culturally, affectively, therefore
seductive, revolutionary, transgressive. In this, it challenges what is
understood and what is taught about theatrical art, when it proposes to
break with the screens of reality and representation that condition us.
invests in a multiple, untimely Artaudian body, which unfolds throughout the
text in other concepts, machinic, biopolitical, anthropophagic, aesthetically
emancipated bodies.
Keywords
: Body-theatre. Anthropophagy. Biopolitics. Body education.
El realismo seductor como metáfora de una reeducación del arte
corporal
Resumen
Esta es una revisión de una obra intensa y compleja, en la que el autor crea
el concepto metafórico de realismo seductor, con el objetivo de revisar la
apropiación de la palabra teatro que se ramifica en el binarismo real-ficción
asociado a la tradición aristotélica. La propuesta nos hace pensar en la
educación del cuerpo en y para el arte, Ribeiro incita a pensar que actuar no
es interpretar la realidad, sino vivenciarla a través de un cuerpo intuitivo,
que interfiere y es interferido por el entorno social, político, económico y
social. Culturalmente, afectivamente, por lo tanto, seductora, revolucionaria,
transgresora. En este, desafía lo que se entiende y lo que se enseña sobre el
arte teatral, cuando propone romper con las pantallas de realidad y
representación que nos condicionan. invierte en un cuerpo artaudiano
múltiple, intempestivo, que se despliega a lo largo del texto en otros
conceptos, cuerpos maquínicos, biopolíticos, antropofágicos, estéticamente
emancipado.
Palabras clave
: Teatro corporal. Antropofagia. Biopolítica. Educación corporal
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Publicado em 2022,
Realismo sedutor: o corpo-teatro e a invenção de
realidades
, de Martha Ribeiro, é o sexto livro da coleção “Linguagem, Corpo e
Estética”, da editora Hucitec. O livro se arruma em um texto desafiador e
complexo, com o qual a autora nos convoca a repensar a educação das artes do
corpo. Ribeiro atua como professora no programa de Pós-Graduação em Estudos
Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense, sendo também
encenadora, ensaísta e pesquisadora das artes da cena. Seu envolvimento com a
criação da metáfora-conceito realismo sedutor teve início em 2008. Sua obra é
composta de trabalhos que vêm sendo desenvolvidos desde essa data, incluindo
estudos que resultaram em artigos como “O realismo sedutor e sua configuração
na dramaturgia brasileira” (Ribeiro, 2013), publicado na revista
Urdimento
, em
2013.
O livro Realismo sedutor se debruça sobre outros momentos de análise e
reflexão que formam o percurso de Ribeiro, envolvendo escritas e estudos
realizados nos últimos quatorze anos, incluindo um pós-doutorado realizado na
Universidade de Bolonha (2015-2016) do qual decorreram pesquisas e escritas
mais recentes que têm por tema a autoficção, o biodrama e a biopolítica.
Segundo Martha Ribeiro (2022), o realismo sedutor é um gesto político e
estético das emoções que se dirige em relação ao corpo e ao teatro como tarefa
de compreensão desse vínculo e das possibilidades que dele surgem. De modo
geral, a obra considera o corpo-teatro um inventor de realidades, um campo
intuitivo metafórico e fabulador de si. Uma vez que o teatro é espaço de criação,
de expressão e de presença, faz-se necessário analisar outras vertentes de
pensamento que fogem à tradição iluminista no que se refere ao modelo de
realidade que esta dupla — corpo-teatro tende a absorver nas atuações que a
revelam na atualidade.
A busca de um corpo-teatro “outro” encontra ao longo do texto vários
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aliados. Dentre os autores com os quais Ribeiro dialoga, destacamos: Antonin
Artaud, que é sem dúvidas o parceiro mais citado e revisitado em toda a obra
para ressignificar a relação corpo-teatro e o corpo como campo de intensidades;
seguido por Suely Rolnik, que frequenta a narrativa atualizando o corpo sem
órgãos artaudiano em um corpo vibrátil antropofágico; Jean Baudrillard, que
contribui com a relação liminar que estabelece entre arte, criação e sedução;
Gilles Deleuze, em seus escritos solo e com conceitos criados junto a Félix
Guattari, contribui com as noções de corpo intuitivo e desejante, micropolítica e
máquina de guerra; Jacques Ranciére também é convocado para tratar dos
regimes estéticos e do observador emancipado, que fratura as imagens como
telas em expansão; Michel Foucault, citado por via da biopolítica, conceito que
demonstra como o Estado e as relações de poder estão internalizadas no nosso
subconsciente; além de José Gil, entre outros autores menos citados. Entre os
pensadores apenas pontualmente citados, Ribeiro traz o filósofo Friedrich
Nietzsche, para tratar da intuição, e a socióloga Silva Cusicanqui, para tratar da
linguagem que permeia as imagens com as quais culturalmente nos
familiarizamos. Esses/as entre outras/os autoras/es menos citadas/os, compõem
o bando epistêmico que se expande e se intensifica formando camaradagem
com autoras/es, tais como: o citado Antonin Artaud, Marco de Marinis, Peter
Brook, Jean-Luc Nancy, Joseph Danan e Josette Féral, que demarcam o campo
do teatro com reflexões e experimentações que o desdobram.
Renato Ferracini, convidado a prefaciar a obra, diz que a escrita de Ribeiro
flerta, tanto na sua expressão poética como no uso e apropriação de conceitos,
com a antropofagia e com a ética da alegria espinosista, ao mesmo tempo em
que trama modos de pensar e agir que, ao tratar da arte, favorecem uma
sobreposição de territórios que se desdobram em mestiçagem, hibridismos e
paradoxos que se dão entre o real, a ficção e o vivível. “Não é mais o mundo do
astral, é aquele da criação direta que é assim retomado, mais além da
consciência e do cérebro” (Artaud, 2004, p.269), desse modo, no território do
teatro, corpo e vida formam uma trama que, em seus movimentos, acompanha
as problematizações tanto das quatro últimas cenas que o livro oferece, como
nas nove partes que estendem, tencionam e contraem o realismo sedutor,
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perpassando na sua relação com o corpo-teatro pelas noções de intimidade
compartilhada, autoficção e biodrama.
Para além do que é proposto na apresentação do livro, na qual fica claro o
desejo de uma revisão de percurso investigativo da própria autora, sua ideia é
fazer avançar análises que vêm sendo experimentadas em suas escritas e que
são, agora, revisitadas. A obra é de certo modo uma exposição ou uma curadoria
da sua produção, dos investimentos teóricos e analíticos que realizou até chegar
a esse resultado aberto e de novas versões por vir. Ao todo, são vinte artigos da
própria autora listados nas referências, que estão diluídos nas partes e cenas
propostas. Esse arranjo novo insinua um percurso de estudos e vivências de
Ribeiro, traz efeitos e reverberações singulares, vividos e experimentados por si e
pelo grupo de pesquisa que coordena. Para dar conta dessa fruição, somam-se à
apresentação nove partes e quatro cenas, divisões pontuais que expõem a busca
de uma reinvenção da realidade, especialmente a teatral, uma retomada do que
pretensamente já sabemos sobre as artes do teatro.
Os textos reunidos buscam a construção de um mapa de afetos, quando
na apresentação se problematiza se “É ainda possível decolonizar esse
personagem conceitual, o vocábulo teatro?”. Por essa via, quem começa a se
envolver pela metáfora viva do realismo sedutor, proposta que tem por objetivo
desenhar uma nova conceituação que retorna ao real: não qualquer real, mas
aquele que perpassa a cena, distinguindo-o do artifício unificado e intimidador.
Para a autora, faz-se urgente buscar uma via de diferenciação, de insubmissão,
de fuga à colonização do real, a fim de alcançar implicações encarnadas,
sensíveis, que favoreçam a invenção de realidades outras. É preciso subverter a
tela de subjetivações que se constroem e desconstroem por pacto e contágio,
abrindo-se estética e artisticamente ao contato direto e intensivo com os
elementos que vêm da vida, que nos provocam e nos convocam a observar suas
formas, tramas e modos de expressar a magia.
Trazemos abaixo uma síntese das partes e cenas que convocam a sedução
dessa leitura.
Em sua primeira parte, o livro fala de um “Retorno ao vocábulo teatro para
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nyogolon”. Uma vez que entende que a palavra “teatro” se esvaziou ao ser
concatenada à representação, num paradoxo em que o performativo exaure a
potência do corpo-teatro e o mantém submisso às ditas estruturas dominantes.
A experiência teatral se no inefável, algo ignorado pelo sistema de
pensamento que acompanha o entendimento aristotélico fundador da ideia de
representação; se dá, portanto, no sair da representação em busca do
acontecimento ou da experiência acontecente que exige viver o corpo como algo
singular, realidade a-histórica, o que o evidencia como campo de afetos. Afetos
que são múltiplos, nômades, podem ser comumente partilhados em uma
experiência estética; ou mesmo como volição, vontade, desejo e modos de
pensamento não representativos.
“Nyogolon” é uma expressão africana guineense que se refere ao teatro e
pode ser traduzida como “nos conhecer”. A noção pode ser entendida como um
convite a criar uma outra cena de pensamento, que rompa com as certezas das
quais nos acostumamos a fazer uso para fins de nos adequarmos ao regime
racionalizante e colonial, aos seus modos de associação de pressupostos que
antecipam e, ao fazê-lo, codificam e desfiguram o que de ainda não sabido,
não vivido, não experimentado na produção de conhecimento e no encontro dos
corpos que dão vida à arte cênica.
Na segunda parte do livro, “A intuição como método: afeto, invenção e
subjetivação”, a metáfora do realismo sedutor se apresenta para salvaguardar o
impensado. Revela-se junto à narrativa da autora uma metáfora que movimenta
o impensado quando abre a possibilidade da desestabilização do poder lógico-
racionalizante. Na ousadia de pensar o pensamento como imagem, como
criação, invenção e percepção cognitiva e sensível (Deleuze, 2010), se apoia nos
argumentos nietzschianos e bergsonianos para forjar a ideia de intuição como
método de invenção da realidade. É por que permite a abertura a uma
expressão da apreensão do mundo que não remete à
mimesis
, e que vem a
ocorrer como algo imprevisível ao pensamento, algo ainda não dado, começo do
zero ou possível enunciação do novo. Esse método intuitivo, que se abre ao novo,
também acolhe e reconhece a vulnerabilidade que envolve o humano. Nesse
contexto, Antonin Artaud torna-se peça-chave para repensar e refazer o plano
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lógico referencial, sobre o qual o corpo-teatro vem fundando uma dada
consciência estética. As pontuações artaudianas sobre o teatro exigem repensar
as formas rígidas e as condicionantes noções do real que se investem sobre o
corpo, dogmatizando suas formas de presença, tanto aquelas do corpo atriz/ator
quanto as do corpo espectadora/expectador. Sendo assim, a intuição busca
escapar às determinações de um teatro voltado à representação advinda de um
realismo pressuposto e contribui para a recepção de um teatro do espaço-
tempo híbrido, heterotópico, que especula a experiência teatral como
acontecimento. Como o acontecimento é aquilo que na experiência se apresenta
de fora para dentro, o corpo-teatro, seduzido por um realismo sedutor, percebe-
se ora distraído ora desperto, sensível às próprias afecções.
Na terceira parte, intitulada “O realismo na cena do contraditório:
inespecificidade e insurreição”, nos deparamos com um debate voltado ao
corpo-teatro inventor de realidades, corpo que precisa se enganar para criar para
si um pacto que o permite interagir com certa verdade ficcional, capaz de
movimentar narrativas de si. Essa relação entre o dentro e o fora exige um
posicionamento crítico radical, uma atitude ética micropolítica diante das
capturas que o teatro pode engendrar, tomando, por exemplo, a autoficção e as
narrativas de intimidade, pois não “estamos no mundo, tornamo-nos com o
mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Tornamo-nos
universo. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero” (Deleuze; Guattari, 2010,
p.200). Esse é um empreendimento político, que se esforça em pesquisar a
complexidade dos exercícios de poder na contemporaneidade valendo-se do
vivido. O realismo sedutor é a busca de um novo realismo, capaz de criar uma
língua do contraditório para um refazimento do corpo e do mapa de afetos, algo
para além da fábula; uma língua artaudiana e mágica é almejada.
Na quarta parte, Ribeiro traz a afirmativa “De como a estética do
performativo tem liquidado o teatro”. Contextualizando esse título, traz a
chamada “virada performativa” que se refere ao momento em que, em Nova
York, em 1959, se apresenta o primeiro
happening
. São tempos de metateatro, de
busca de improvisação autêntica, de incitação a uma estética do improviso; é a
década em que Artaud é traduzido e importado pela América. O
happening
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produz o novo teatro, espécie de evolução ou superação de um modo tradicional
de se realizar a arte da cena. São momentos que quebram as fronteiras, nos
quais o performativo exige a transdisciplinaridade, encontro entre diferentes
campos da arte: teatro, dança, vídeo, música, circo; que produzem diálogos,
deslocam gêneros e linguagens artísticas. Para a autora, a matriz genética do
teatro performativo se faz com a aparição do
happening
. Porém, esse
entusiasmo com uma forma estética que se mostrava revolucionária do
pensamento teatral, quando apostava na verdade material e orgânica dos corpos,
passa a almejar o acesso ao real como presença “pura”; isto é, não mediatizada.
Esse afastamento da mediação é entendido como uma forma de eliminação do
corpo-teatro, exclusão que se faz na utopia de um hiper-real. Ignora que a
representação é um campo de forças complexo que simula o real impondo uma
simulação da experiência ficcional. Simulação que impede que a ação de um
corpo-teatro se faça contagiada pelo acontecimento real, por aquilo que, nele, no
acontecimento, é uma imagem, uma perspectiva do real e o que se mostra
como o seu semblante. um bisturi que recorta a tela do real, opera sobre
realidades dadas possibilitando outras conexões, montagens, configurações
cênicas que são menos interpretativas e mais experimentais, que podem vir a
enfrentar na atualidade certa trama com contextos passados e prescritos.
Na quinta parte, intitulada “Pode o teatro nos ensinar sobre o real?”,
aprofundam-se ideias que já foram expostas nas partes anteriores. Para a autora,
no
happening
, o ator desaparece como autor da cena e torna-se um corpo
executor. Sua dimensão orgânica se objetiva, se enrijece na forma de uma
imagem que necessita representar. E, ainda, torna o espectador um corpo
passivo ou exposto a explicações estéticas. Nesse sentido, Ribeiro entende que é
preciso apostar em um regime estético do acontecimento, que acrescenta a arte
do convívio e do contágio na produção de um corpo-teatro. Partindo da ideia de
que teatro é corpo e que o corpo é uma forma de escritura com língua própria e
plural, a autora recomenda a criação de realidades não submissas por via do que
chama “a metáfora do realismo sedutor”. uma tendência em denunciar os
happenings
por executarem ações e expressões pré-determinadas, que
respondem a uma ordem do “o que fazer?”, algo que deveria ser substituído por
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uma questão mais ampla e flexível, que refere ao “como fazer?”
O corpo-teatro é convidado a se lançar como promessa à derrubada dos
modelos hegemônicos, abrindo rasgos, fissuras e brechas em um real forjado por
um biopoder. Molière e Luigi Pirandello são citados. Ambos os dramaturgos são
revisitados e suas criações são destacadas como exemplos de uma ausência de
limites entre arte e a vida. A força vital de quem está em cena é investigada,
provocando um teatro instável, fluido, que não pretende substituir as respostas
prontas de ontem por efeitos imediatos, mas que se interessa pelos afetos e
pelos desejos que entrelaçam individualidades e subjetivações no território da
cena. Dobragens do real em busca de esgotar uma vida besta. Pirandello,
submetido ao controle do Estado fascista, propõe um teatro esgotado, que
busca uma língua própria para dizer de um corpo em frangalhos. Ambos
Molière, com sua doença, e Pirandello ao inventar modos de sobreviver ao
fascismo apontam para o real da máscara que se inscreve no corpo da/o
atriz/ator. A invenção ficcional do real passagem a um teatro emancipador,
que cria uma língua para expressar sua verdade. Ficção e real embaralham
realidades e semblantes na busca de um ponto de fuga próprio à arte.
Na sexta parte, Ribeiro traz “O pacto com a invenção: sedução, contradição,
mestiçagem e antropofagia”, que “[...] conhecer o mundo como matéria-força
convoca a sensação, engendrada no encontro entre o corpo e as forças do
mundo que o afetam” (Rolnik, 2003, p.79). Aqui, nos encontramos com um
corpo-teatro como fábrica dos sonhos; ou seja, com as possibilidades de que a
ação da arte teatral seja capaz de forjar saídas para realidades intimidantes. A
autora aponta que tanto o realismo teatral como o teatro performativo, acusado
de hiper dimensionar o real, não absorvem certa dimensão do sonho, aqui
entendido como uma intensidade de absorção das forças que se perfazem entre
a realidade circundante e os fragmentos do real com os quais o corpo da/o
atriz/ator busca se emancipar, se descolar da desolação realista. Propõe partilhar
o sensível, apostando na sedução como ordem do artifício. A cena do real se faz
de contraditórios e estes podem ser entendidos como binariedades que se
impõem através da linguagem e do sistema de representação, convencendo o
sujeito de um compromisso semântico que se estabelece na construção de sua
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subjetividade; nisso, favorece que a absorção de uma experiência artística e
cênica se ordene pela
mimesis
, o que as submete à semelhança. Para romper
com a forma como a
mimesi
s distribui modos de ser, lugares e ocupações
sociais na absorção, criação e pertencimento do evento artístico, a autora usa o
princípio ou o gesto antropofágico, que é uma espécie de devoração da cultura
que nos devora.
Na sétima parte, aparece um chamado de atenção: “‘Eis-me aqui’ Realismo
sedutor, qual sua língua?”. Aqui, o realismo sedutor investe no contraditório
como desdobramento e desborda do real quando indica desconstruir cisões
dicotômicas ou padrões binários que estabelecem um jogo de submissão ao real.
Deixando-se seduzir mais pelos sentidos do que por slogans racionais e
moralizantes, levanta certa suspeita de viés pós-estruturalista em relação ao que
se passou a chamar de “teatro performativo”, por entender que essa conexão
entre teatro e performance afasta a invenção (ou a mentira) de possibilidade de
ficcionalizar o real de modo insubmisso. A autora também destaca que, na
história do teatro, pode haver uma mudança de paradigma ao se substituir o
regime da representação pela experimentação, ao mover-se da sensibilidade do
fazer para a sensibilização do ser, o que se pode denominar como um novo
Regime Estético preconizado por Jacques Rancière.
A oitava parte nos convoca a observar “O corpo como um escultor de
afetos! Em busca de uma língua para o contraditório ou o que aprendemos com
Antonin Artaud”. Entendendo o corpo como inteligente, Ribeiro ousa pensar,
através do realismo sedutor, uma reorganização estratégica desse corpo, capaz
de desestabilizar a estrutura da lógica de mercado que hierarquiza e subdivide o
sensível e a comunidade que o configura. Traz o gesto micropolítico do biodrama
e dos experimentos autoficcionais como ações capazes de ampliar os sentidos,
investindo em sensibilizações singulares e comuns, numa partilha que se
interessa pelo encontro contra a espetacularização do teatro que apagaria a cena
retirando sua controvérsia; sugere um teatro do irrepresentável, um teatro como
acontecimento. A autora diz ainda que a arte do teatro atua na busca de um
espaço comum entre mundos, espacialidade extrapessoal que se dobra ao outro,
mas não de forma submissa, e sim enquanto interação de afetos. Fica clara uma
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busca de outros saberes, olhares e perspectivas que procurem subverter um
saber-teatro que se configura na crise da modernidade; que revelem a
necessidade de borrar as fronteiras com as quais um construto histórico faz do
teatro um conceito de mundo e de civilização. Para tanto, faz-se necessário
trilhar as frestas do dentro e do fora da representação, habitar as frestas dessa
imagem de teatro que reverbera o que se sabe sobre a arte da cena. O corpo
como lugar da ação cênica precisa se reinventar em uma geografia da
impessoalidade, abrindo caminhos para a transformação e transvalorização da
sua potência de corpo político; corpo que se constitui e se reconstitui como um
território de forças que se conflitam.
Na nona parte vem um novo questionamento: “Como fazer no teatro uma
nanopolítica dos corpos? Descobrir fora de nós alguém que nos é
completamente íntimo”. Ao pensar que o teatro opera resistências e,
pontualmente, resiste aos arranjamentos biopolíticos de um capitalismo
neoliberal e à chamada revolução pós-dramática, Ribeiro pontua que se
fortalecem os processos de autorregulação e de desumanização. Contra tudo
isso, a filosofia, a arte e a ciência atuam criando ressonâncias “como espécies de
linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir
entre si” (Deleuze; Guattari, 2010, p.160). Essa ressonância pode ser utilizada para
deslocar movimentos que se fazem em prol de um real extremo, uma vez que a
arte performativa trouxe ao teatro a tendência dos espetáculos narcísicos nos
quais os corpos são carne violentada, exposta, rasurada. Esse excesso de
exposição não escapa à representação, e sua negação “completa” não favorece o
desafio atual de não subsumir com a atriz e o ator — inclusive, vale destacar que
Ribeiro optou pela escrita clássica no masculino. O realismo sedutor apresenta
as narrativas do contraditório como estratégia para ações por vir. O que se faz no
esforço de reinvenção do sujeito, e não apenas em sua utilização por via do
corpo em choque ou de sua superestima num voyeurismo. uma crítica ao
naturalismo cênico, por seu viés acrítico, alienado do real que pretende
representar.
Nas quatro últimas partes, nas chamadas Cenas 1, 2, 3 e 4, a autora traz
análises de obras assistidas e ponderadas. Nessas cenas, diretoras/es,
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autoras/es, personagens, cenários e dispositivos estéticos são nomeados e
afetivamente analisados. O texto ressoa a proposta de um realismo sedutor,
conceito-metáfora que quer fundar um modo de pensar a ação teatral na dupla
tensão entre corpo e teatro, realidade e ficção.
A primeira cena retoma a função ética-estética-política do teatro que se
inscreve na metáfora-conceito do realismo sedutor, daquilo que irrompe e
escapa ao controle ou à representação, como no exemplo da palavra livre de
Medeia. É interessante notar como a autora abarca em seu texto referências
vindas de diversas cosmovisões, citando autorias indígenas e africanas, para
além do território do teatro. a segunda cena trata do método em si, tanto no
biodrama quanto na autoficção, ainda que mantendo a discussão entre a
modernidade e a ideia aristotélica de representação. Nesse movimento, o texto
passa também pela performatividade pós-moderna com a exacerbação do real
pelo choque. Aqui, as narrativas de intimidade vão sendo esmiuçadas, assim
como seus efeitos subversivos no teatro contemporâneo; apoiando-se nas
análises foucaultianas, o texto investe na noção de biopolítica. Além disso, a ideia
de mapa dos afetos apresentada inicialmente vai se valer da estratégia de criar
novas cartografias, novas circulações para os corpos postos em cena. Numa
terceira cena, disposta em seguimento fluido em relação às cenas anteriores, no
exemplo vivo prático em Pippo Delbono, as palavras quase saltam pois
provocam nossos sentidos em conexão com o corpo; mobilizam os gritos
relatados num mosaico com outras sensações, intensidades e movimentos. Por
final, realismo sedutor convoca o corpo-teatro, filosofias, pensamentos e
experiências cênicas que nos revelam a prática da impertinência ou pacto
biográfico contra arranjamentos do biopoder.
Referências
ARTAUD, Antonin.
Linguagem e vida
. São Paulo: Perspectiva, 2004.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.
O que é a filosofia?
3. ed. São Paulo: Editora 34.
2010.
RIBEIRO, Martha. Textualidades Contemporâneas: o realismo sedutor e sua
O realismo sedutor como metáfora para uma re-educação do corpo-arte
Cláudia Madruga Cunha | Thais Adriane Vieira de Matos
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-15, dez. 2022
15
configuração na dramaturgia brasileira.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 20, p.131-140, 2013.
RIBEIRO, Martha.
Realismo sedutor: o corpo-teatro e a invenção de realidades
.
São Paulo: Hucitec Editora, 2022.
ROLNIK, Suely. O caso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua
separação da resistência.
ARS
, São Paulo, v. 1., n. 2., p. 79-87, 2003.
Recebido em: 07/12/2022
Aprovado em: 11/12/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br