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A ocupação do Armazém da Utopia na área
portuária do Rio de Janeiro
Entrevista com Luiz Fernando Lobo
Concedida à Evelyn Furquim Werneck Lima
Para citar este artigo:
LOBO, Luiz Fernando; LIMA,
Evelyn Furquim Werneck
.
A
ocupação do Armazém da Utopia na área portuária do
Rio de Janeiro
. [Entrevista concedida à
Evelyn Furquim
Werneck Lima
].
Urdimento
- Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v.3, n.45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0501
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
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Entrevista concedida a Evelyn Furquim Werneck Lima
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A ocupação do Armazém da Utopia na área portuária do Rio de Janeiro
Entrevista com Luiz Fernando Lobo
Concedida a Evelyn Furquim Werneck Lima1
Resumo
O desafio para os grupos teatrais preocupados com o teatro socialmente
engajado é reduzir os impasses do capitalismo por meio de atividades de
artes cênicas em espaços alternativos para garantir o exercício da cidadania.
A apropriação dos armazéns do patrimônio industrial não originalmente
destinados ao teatro abriu novas possibilidades para as artes cênicas no Rio
de Janeiro, além de trabalhar em diferentes escalas e produzir arquiteturas
dramáticas. O entrevistado é o diretor teatral Luiz Fernando Lobo da Ensaio
Aberto e comprova que a ocupação desse galpão centenário e desativado por
um grupo teatral com longa trajetória na cena carioca é um ato de resistência.
Lobo atribuiu ao prédio ocupado uma função social, significando um território
de luta em um bairro histórico da periferia do Centro do Rio, como alternativa
à lógica do
city-marketing
e do mercado imobiliário.
Palavras-chave
: Ocupação artística. Patrimônio industrial. Teatro político.
The occupation of Armazém da Utopia in the port area of Rio de Janeiro
Abstract
The challenge for theatrical groups concerned with socially engaged theatre
is to reduce the impasses of capitalism through performing arts activities in
alternative venues to ensure the exercise of citizenship. The appropriation of
the industrial heritage warehouses not originally intended to be theatrical
opened new possibilities for the performing arts in Rio de Janeiro, besides
working at different scales and producing dramatic architectures. The
interviewee is the theater director Luiz Fernando Lobo of Ensaio Aberto who
proves that the occupation of this centenary and deactivated warehouse by
a theater group with a long trajectory in the carioca scene is an act of
resistance. Lobo gave the occupied building a social function, meaning a
territory of struggle in a historic neighborhood on the outskirts of downtown,
as an alternative to the logic of city marketing and the real estate market.
Keywords
: Artistic occupation. Industrial heritage. Political theater.
1
Pós-doutorado pela Université Paris X (CAPES-2003) e Estágio Sênior no Collège de France (CNPq-2011) além
de períodos como Visiting Scholar em universidades europeias. Doutora em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - 1997). Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ -1988). Pós-graduada em Urbanismo (UFRJ-1971). Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968). Docente concursada da UNIRIO em 1989 e aposentada em
2020 como Prof. Titular do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Docente permanente do PPGAC/UNIRIO. Coordenadora-adjunta do Laboratório de Estudos do Espaço
Teatral e Memória Urbana, que criou e dirigiu por 26 anos. Pesquisador 1-A do CNPq. Cientista do Nosso
Estado. evelynfwlima.unirio@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7357324433079681 https://orcid.org/0000-0002-2578-6180
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La ocupación de Armazém da Utopia en la zona portuaria de Río de Janeiro
Resumen
El desafío para los grupos teatrales preocupados por el teatro socialmente
comprometido es reducir los callejones sin salida del capitalismo a través de
actividades de artes escénicas en espacios alternativos para garantizar el
ejercicio de la ciudadanía. La apropiación de los almacenes del patrimonio
industrial que originalmente no tenían la intención de ser teatrales abrió
nuevas posibilidades para las artes escénicas en Río de Janeiro, además de
trabajar en diferentes escalas y producir arquitecturas dramáticas. El
entrevistado es el director de teatro Luiz Fernando Lobo de la Ensaio Aberto
que demuestra que la ocupación de este galpón centenario y desactivado por
un grupo de teatro de larga trayectoria en la escena carioca es un acto de
resistencia. Lobo dio al edificio ocupado una función social, es decir, un
territorio de lucha en un barrio histórico de la periferia del centro, como
alternativa a la lógica del city marketing y del mercado inmobiliario. (926
caracteres)
Palabras clave
: Ocupación artística. Patrimonio industrial. Teatro político.
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Figura 1 - Armazém da Utopia. Ocupado pela Cia Ensaio Aberto,
dirigida por Luiz Fernando Lobo. Foto: Milena Fernandes, 2022.
Introdução
Ao escrever o argumento do documentário “Patrimônio Industrial e Práticas
Artísticas.
O patrimônio industrial desativado da Área Portuária, sua potencialidade
para usos artísticos-culturais e os impactos sobre a população local
2, vinculado
ao projeto de pesquisa “Espaço, Memória e Projeto Urbano - 5ª etapa3, investiguei
junto à equipe do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral da UNIRIO três
experiências exitosas de grupos artísticos que tivessem estabelecido suas sedes
por meio de ocupações de estruturas industriais, entre eles a Ensaio Aberto,
dirigida por Luiz Fernando Lobo, que vem utilizando desde 2010 o Armazém da
Utopia (antigo Armazém 6 do Cais do Porto do Rio de Janeiro), com propostas
2
O documentário, que venceu o Edital de Patrocínio Cultural 2020 do CAU-RJ, será lançado em setembro de
2022.
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Projeto que desenvolvo apoiado com a bolsa de Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.
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inusitadas e significativas para as artes cênicas.4 Trata-se de um grupo teatral que
tem relevante papel para a História do Teatro Carioca na contemporaneidade e,
para melhor compreender o funcionamento desta companhia, entrevistei
remotamente o diretor Luiz Fernando Lobo, em abril de 2022.
Figura 2 Luiz Fernando Lobo
5
Evelyn F. W. Lima Sabe-se da dificuldade que têm os artistas para conseguir se
estabelecer em uma sede que seja local de preparação dos atores, de ensaios e
de exibição dos espetáculos ao público. Você poderia falar um pouco sobre como
ocorreu o processo de ocupação do Armazém n. 6 da Área Portuária pela Ensaio
Aberto?
O processo de ocupação do Armazém 6 se deu de forma longa no tempo. Na
verdade, um processo que começou cinco anos antes de realmente o ocuparmos.
Nós ocupamos o Armazém em outubro de 2010, mas, na verdade, iniciamos esse
4
Ver um dos espetáculos inovadores, A Mandrágora de Maquiavel, in: Lima, 2020.
5
http://aduff.org.br/site/index.php/notocias/noticias-recentes/item/3030-em-entrevista-diretor-luiz-
fernando-lobo-afirma-que-e-momento-politico-do-brasil-inspira-a-se-falar-de-luta-resistencia-e-
participacao-popular
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processo cinco anos antes, em uma reunião de planejamento estratégico da
companhia. As reuniões são um procedimento comum para avaliar onde
gostaríamos de estar nos próximos tempos e geralmente aconteciam anualmente
com projeções mais longas, chegando a planejar com três anos de antecedência.
Num determinado momento, Tuca, minha diretora de produção que também é
fundadora da companhia e eu precisávamos pensar em metas de longo prazo e
então nos perguntamos onde gostaríamos de estar em cinco anos.
Organizamos um seminário fora do Rio de Janeiro e tivemos três dias apenas
para pensar sobre esse assunto. Eu fui muito pragmático e disse “Olha, ou a gente
pensa nesse futuro de cinco anos, ou, em algum momento, a companhia vai
acabar como acabam todas as companhias brasileiras por motivos semelhantes.
São companhias de jovens e em geral dirigidas por jovens e isso tem a ver com a
total ausência de políticas públicas para esse segmento que envolve grupos,
companhias teatrais e espaços fixos, ou seja, para um trabalho estável”.
Como toda a produção cultural brasileira ainda está voltada para resultados
de curto prazo, o que vale é a lógica do mercado. Inexistem políticas estatais de
médio e longo prazo. Uma dessas coisas que avaliamos neste seminário foi que
tivemos, desde o primeiro ano de companhia, um trabalho muito forte com o
público, para fidelizar o espectador e buscar um público mais interessado do que
público habitual de teatro. Este é um princípio de Brecht e do Meyerhold, que ao
mesmo tempo em que trabalha a estética cênica precisa trabalhar a formação um
novo espectador. Este trabalho sempre teve grande força dentro da Companhia.
Antes do processo de ocupação do Armazém n. 6 da Área Portuária a Cia Ensaio
Aberto também ocupou teatros tradicionais ou sempre trabalhou em espaços
alternativos?
Ocupamos espaços físicos tradicionais por muito tempo. De 1995 a 1998,
ficamos no Teatro da Aliança Francesa. De 1998 a 2001, trabalhamos no teatro
Glauce Rocha. Estávamos naquele momento sem um espaço fixo desde 2001,
momento em que a companhia mais viajava pelo Brasil e exterior. Sentimos que
nos faltava algo. Precisávamos voltar e vimos que precisávamos nos enraizar.
Havíamos feito a
Missa dos Quilombos
, criada em 2002, para o décimo aniversário
da companhia no Armazém. Na época, esses armazéns estavam completamente
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abandonados. Essa área estava totalmente degradada e apresentava o menor IDH
do município do Rio de Janeiro.
Então, dissemos: “Não vai ser muito difícil para nós conseguirmos esse
espaço”. Esses galpões pertenciam à Companhia Docas do Rio de Janeiro, que é
uma empresa estatal. Entramos em contato com o então presidente da Docas e
mostramos a ele um projeto, que ele gostou muito. Ele disse que íamos ocupar
aquele espaço. que isso foi no final de 2006, fim da gestão do governo federal.
Houve a mudança do governo federal e os cargos políticos mudaram, assim
como o presidente das Docas. O novo presidente tinha ligações com o mercado.
Eles nos avisaram que ele não seria simpático ao nosso tipo de projeto. Então,
fomos ao Ministro dos Portos, que era responsável pela Cia Docas.
Como a Companhia Docas era ligada ao ministro e ele gostou muito do
projeto, resolvemos levar adiante. Começou uma batalha que durou até termos o
direito provisório de entrar no Armazém. Acho que o governo errou nisso - um erro
que eles cometem às vezes -, ao pensar que desistiríamos rapidamente se nos
colocassem aqui. que eles não sabiam que éramos organizados e que não
íamos desistir.
A partir daí começamos a lutar pela posse da terra. Essa posse oficial da
propriedade aconteceu em 2016, seis anos depois de termos ocupado o
armazém. Tivemos nosso direito de posse reconhecido. Quem era prefeito do Rio
na época era o Eduardo Paes, no final do governo Dilma. Começou uma nova etapa
na nossa luta.
Como são organizados e com que tipo de suporte são desenvolvidos os projetos
sociais que você coordena, em especial o Teatro do Trabalhador?
Nossos projetos são organizados de uma forma muito dinâmica. Por quê? A
companhia nunca mais foi a mesma em seus 30 anos de existência, comemorados
este ano. Sempre fomos inventando e descobrindo novas formas de ser, o que
sempre nos deu muita vitalidade.
O Teatro dos Trabalhadores, em especial, é um projeto muito importante para
a companhia e pelo qual temos muito carinho. Começou em 2013, 2014, sem
qualquer tipo de apoio econômico, apenas com a decisão coletiva da direção da
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companhia e dos atores de que estaríamos em estado de estudo permanente, o
que significava estudar juntos pelo menos três vezes por semana, seis horas por
dia.
Isso muda tudo na história da Ensaio Aberto. Desde o seu primeiro ano,
sempre fizemos estudos, mas eram estudos pontuais. Estudos, seminários,
palestras... estudos específicos relacionados a um espetáculo, a um tema.
Por que motivo vocês intitulam o projeto de Teatro dos Trabalhadores?
O Teatro dos Trabalhadores está sempre mudando. Por que inventamos esse
nome? Essa é uma parte importante da minha resposta.
Na verdade, nunca gostei do nome “teatro político”, pois parto do pressuposto
que todo teatro é político. Para mim, chamá-lo de teatro político era uma
tautologia. Todo teatro é político, o que acontece é que um teatro se assume como
político e o outro não.
O teatro que não se assume como político é o teatro do entretenimento, o
teatro de mercado; o teatro hegemônico no Brasil hoje.
Em contrapartida, existia um teatro cuja origem as pessoas costumam ver
em Brecht. No entanto, Brecht não é filho de chocadeira, nem do nada. O Brecht
nasce de uma realidade construída com muito suor, labuta e até um pouco de
sangue, ou seja, o teatro socialista do século XIX, especialmente a partir da
fundação do Volksbühne em 1890.
6
A certa altura, o Partido Socialista Alemão, o SPD, tinha seis milhões de
membros filiados e decidiu gerir um teatro que seria um teatro não burguês. Esse
movimento se desenvolveria e seria fortemente afetado, na Primeira Guerra
Mundial, com o fim da Segunda Internacional e pela criação da Terceira
Internacional, em que os trabalhadores passaram a se organizar mais claramente
para fazer um teatro que tivesse influência decisiva no principal combate da luta
de classes.
Assim, o Teatro dos Trabalhadores é um capítulo da luta de classes para
emancipar o proletariado e a frente, para formar intelectual e artisticamente uma
6
O Freie Volksbühne ou “Teatro do Povo Livre" foi fundado em 1890 em Berlin e propunha-se exibir as peças
naturalistas da época a preços acessíveis para o trabalhador comum.
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classe que deu um salto e passou, como Marx gostava de dizer, de uma classe
“em si” para uma classe “para si”.
Em que momento da trajetória do grupo começou o projeto Teatro dos
Trabalhadores na Cia Ensaio Aberto?
Em 2014, iniciamos esse estudo, que vai durar muitos anos e onde estudamos
essa tradição que muitos chamaram de “teatro político, que, como expliquei,
preferimos chamar de “teatro dos trabalhadores.
São vários capítulos de estudo: Brecht, Piscator,
Agitprop Theatre
, Meyerhold,
Mayakovski, e, andando no tempo, Peter Weiss, Heiner Müller, Teatro de Arena,
Centro Popular de Cultura, etc. Em 2017, demos um passo à frente e o estudo
passou a ser pago, ou seja, os atores começaram a ganhar por seu estudo. Foi um
momento de forte estabilização da Companhia, alcançada por meio de emendas
parlamentares.
Então, agora temos recursos de Emendas Parlamentares, vinda
prioritariamente dos partidos de esquerda, que pagam para que nossos atores
possam se dedicar ao estudo.
Isso, como você pode imaginar, muda o nosso teatro, nossas peças já que os
atores agora têm outro instrumental teórico. O principal pressuposto para fazer um
bom teatro político, reconhecidamente, é trabalhar a argumentação dos atores.
Esse teatro politico não se consegue com a técnica, mas com argumentação.
Precisamos desenvolver, também nos espectadores, a capacidade de
argumentação. Como diz Brecht, “não acho difícil escrever a verdade. A primeira
tarefa é descobrir a verdade, a segunda, escolher a quem contar e a terceira, como
contá-la.7
Esse foi um momento muito importante em nossa luta política, tanto externa
quanto interna, pois mudamos o nível de atores e acabamos formando-os muito
melhor como atores e seres políticos. Não podemos fazer teatro político sem
pessoas que pensam a vida politicamente, que pensam a partir da luta de classes.
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Berthold Brecht, 1935. Five Difficulties in Writing the Truth. Available in
https://www.idcommunism.com/2017/08/bertolt-brecht-five-difficulties-in.html. Access on 10 june2022
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Como você o papel da Companhia Ensaio Aberto na valorização das
comunidades existentes na Área Portuária?
Como vejo o papel da companhia na agregação de valor à Área Portuária? Eu
dividiria essa luta em duas partes. Em primeiro lugar, eu diria que conseguimos
pagar um enorme tributo à região. É o berço de uma série de coisas, é o Porto em
que desembarcaram os escravizados. A ilha em que desembarcavam chama-se
Santa Bárbara e fica em frente ao Armazém. Lá, eles seriam colocados em
quarentena antes de irem à cidade para serem vendidos. Este é um espaço de
triste memória.
Em segundo lugar, este é o berço do anarquismo brasileiro, do socialismo, do
comunismo e da luta antifascista no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial.
Portanto, toda a Área Portuária foi um lugar muito forte de memória e luta dos
trabalhadores, mas como nós sabemos, essa memória foi em parte apagada. Esse
esforço para apagar a memória existe e persiste.
Por isso, nosso repertório é um tributo a essas lutas e memórias. Como disse
Walter Benjamin, isso é muito importante porque as pessoas morreram por essa
luta e nós não permitimos que elas tenham o que ele chamou de uma segunda
morte, que é a morte da memória, o apagamento do motivo pelo qual as pessoas
lutaram.
8
Esta parte do nosso retorno eu avalio como tendo sido 100% cumprida. Tem
uma outra parte. várias comunidades muito antigas por aqui, pessoas que
voltaram da Guerra de Canudos e ocuparam o Morro da Favela. Esta é uma área
de forte adensamento. Esse público, surpreendentemente, raramente visita o
Armazém. Temos ações para trazê-los aqui, mas elas ainda estão mais fracas do
que gostaríamos. Esta é uma ação para a qual, a cada ano, buscamos novos
mecanismos para que a população perceba que este é um espaço de sua memória
e luta do trabalhador. conseguimos isso com os estivadores e com os
portuários, mas ainda há muito a ser feito.
Temos um projeto focado nisso que acontece todos os anos. Valorizamos
muito a ideia de que desenvolver essa relação umbilical favorece ambos os lados.
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Walter Benjamin, 1987, p.222-232.
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Ou seja, ainda é um trabalho em construção.
De que forma o trabalho desenvolvido pela Companhia Ensaio Aberto promove a
inclusão social da população local?
Como nossa produção promove a inclusão da população local? Esta é uma
parte importante do nosso trabalho. Uma parte de nossa companhia que
atualmente conta com cinco pessoas trabalhando permanentemente nela,
chama-se “Ciência do Novo Público”. O nome pode parecer pernóstico, mas não
é, pois vem de escritos das chamadas vanguardas históricas, que falavam da
necessidade de um novo público e de um novo teatro que precisávamos buscar.
Em parte, essa busca vem a partir dos menos favorecidos pelo sistema burguês
de espetáculos.
A gente tem isso muito desenvolvido. Temos espectadores fiéis desde o
nosso primeiro espetáculo. Hoje, alcançamos todas as áreas do município e todas
as regiões, mas não todos os municípios do Estado do Rio de Janeiro. Portanto,
nosso sistema de inclusão e democratização não funciona apenas para os
espectadores locais. Trabalhamos muito próximos às comunidades, a da Maré, a
da Mangueira, a do Alemão, trazendo todas as formas de organizações populares,
sindicatos, associações de moradores, estudantes, faculdades, mulheres e
crianças em conflito com a lei, mulheres vítimas de violência. Temos um forte
trabalho com as minorias, que a gente sabe que são maiorias. Eles constituem a
base do nosso público, extremamente popular e em contato direto com
especialistas, ou seja, historiadores, professores universitários como você, Evelyn,
que nos acompanham e oferecem reflexões sobre nosso tipo de trabalho. Nesse
sentido, nossos espetáculos se tornam um encontro muito interessante e
heterogêneo composto por um público com a cara do Brasil e uma postura de
várias classes e segmentos sociais diferentes.
Portanto, quem frequenta nosso teatro, nosso galpão, não apenas assiste a
um espetáculo, mas também vivencia um momento politico de inclusão,
democratização, acesso e conscientização. Esta é uma parte básica e integrante
do nosso trabalho.
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Em síntese, a entrevista revela que a ocupação desse galpão industrial -
anteriormente sem uso - pela Ensaio Aberto, dirigida por Luiz Fernando
Lobo, diretor que atua na cena carioca mais de 30 anos, é um ato
de resiliência, visto que o Grupo imprimiu neste espaço uma função
social, ampliando a plateia das comunidades adjacentes e estabelecendo
um território de luta na Área Portuária do Rio de Janeiro, apesar das
reiteradas tentativas de afastamento por parte do poder político-
econômico (Evelyn Furquim Werneck Lima).
Referências
LIMA, Evelyn Furquim Lima. Dos galpões industriais aos espaços públicos da
cidade: alguns processos de configuração espacial nas artes da cena
brasileira.
Urdimento
- Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n.
38, p.1-31, 2020. DOI: 10.5965/14145731023820200023. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/18005.
Acesso em: 28 ago. 2022.
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história, In: Obras escolhidas. Vol. 1.
Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura
. São
Paulo: Brasiliense, 1987, p.222-232.
BRECHT, Berthold. 1935. Five Difficulties in Writing the Truth. Available in
https://www.idcommunism.com/2017/08/bertolt-brecht-five-difficulties-in.html.
Access on 10 june2022
Recebido em: 28/08/2022
Aprovado em: 15/09/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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