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Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues: a
caracterização do personagem Ismael
Mayara Nunes da Silva
Para citar este artigo:
SILVA, Mayara Nunes da.
Anjo Negro
, de Nelson
Rodrigues: a caracterização do personagem Ismael.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0203
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Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues: a caracterização do personagem Ismael
Mayara Nunes da Silva
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-29, dez. 2022
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Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues
1
: a caracterização do personagem
Ismael
2
Mayara Nunes da Silva
3
Resumo
Este artigo tem como objetivo refletir sobre a caracterização do personagem Ismael,
na peça
Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues. De modo mais específico, a análise busca
demonstrar que Ismael, ao longo da peça, é construído por suas palavras e ações,
bem como pelas informações que os outros personagens apresentam sobre ele
como um “anjo negro”; imagem que evoca sentidos negativos, como a maldade, a
crueldade e a morte. Tal representação é construída, principalmente, em contraste
com a imagem de Elias, personagem que, na maioria dos atos, sobretudo para a
personagem Virgínia, reflete a bondade, a pureza e a delicadeza, e cuja aparência
física faz alusão à figura de um anjo comum do imaginário cristão.
Palavras-chave
:
Anjo Negro
. Questão Racial. Teatro Brasileiro.
Anjo Negro
by Nelson Rodrigues: the characterization of the
character Ismael
Abstract
This paper aims to reflect on the characterization of the character Ismael, in the play
Anjo
Negro
, by Nelson Rodrigues. More specifically, the analysis seeks to demonstrate that
Ismael, throughout the play, is constructed by his words and actions, as well as by the
information that the other characters present about him as a “black angel”; image that
evokes negative meanings, such as evil, cruelty and death. Such representation is
constructed, mainly, in contrast to the image of Elias, a character who, in most acts,
especially for the character Virgínia, reflects kindness, purity and delicacy, and whose
physical appearance alludes to the figure of a common angel in the Christian imagination.
Keywords
:
Anjo Negro
. Racial Issue. Brazilian Theater.
1
Este artigo é resultado do meu trabalho de conclusão da disciplina “Passo e descompasso entre a crítica e
o público na dramaturgia brasileira” (2021), ministrada pela Professora Doutora Maria Clara Gonçalves, no
Programa de Pós-graduação em Letras da UNESP, Campus de Assis.
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Isabela Cristina Fernandes, graduada em Letras,
habilitação Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), e mestranda no Programa de Pós-graduação em Letras da mesma
instituição.
3
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Graduada em Letras, habilitação Português
e Inglês, pela mesma instituição. mayara.n.silva@unesp.br
http://lattes.cnpq.br/1665601988102717 https://orcid.org/0000-0002-4365-5395
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Anjo Negro
de Nelson Rodrigues: la caracterización del personaje
Ismael
Resumen
Este artículo tiene el objetivo de reflexionar sobre la caracterización del
personaje Ismael, en la obra teatral
Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues. De
manera más específica, el análisis busca demostrar que Ismael, a lo largo de
la obra, es construido por sus palabras y acciones, así como por la
información que los demás personajes presentan sobre él – como un “ángel
negro”; imagen que evoca significados negativos, como el mal, la crueldad y
la muerte. Tal representación es construida, principalmente, en contraste con
la imagen de Elias, personaje que, en la mayoría de los actos, especialmente
para el personaje de Virgínia, refleja bondad, pureza y delicadeza, y cuyo
aspecto físico alude a la figura de un ángel común en la imaginación cristiana.
Palabras clave
:
Anjo Negro
. Cuestión Racial. Teatro Brasileño.
Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues: a caracterização do personagem Ismael
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Introdução
A peça
Anjo Negro
foi escrita em 1946, pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, e
encenada pela primeira vez em 02 de abril de 1948, no teatro Fênix do Rio de
Janeiro. Como outras peças do autor,
Anjo Negro
também sofreu interdição da
Censura e, até ser encenada pela primeira vez em uma produção de Sandro
Polloni, com direção de Ziembinski, gerou muita curiosidade e expectativa à crítica
e ao público brasileiro. Desde 1947, quando confirmada que sua apresentação aos
palcos estava sendo organizada, revistas e jornais vinham manifestando grande
interesse e expectativa pela nova peça de Nelson Rodrigues, a qual, segundo
Antônio Accioly Neto na crônica
Finalmente o Anjo Negro
, publicada em 13 de
dezembro de 1947, na revista
O Cruzeiro
proporcionaria “[...] uma grande
experiência para o público carioca” (p.49).
Antônio Accioly Neto (1947), por exemplo, nessa mesma crônica, opinava
sobre a peça e manifestava sua admiração por
Anjo Negro
. Segundo o autor, depois
de um ano e meio “[...] batendo de porta em porta” (p.49) e sendo rejeitada assim
como tinha acontecido com a obra
Vestido de Noiva
(1943) –, a peça
Anjo Negro
seria finalmente produzida em um espetáculo que se antecipava como
“monumental”. Conforme o crítico, esta vinha encontrando feroz resistência
porque tinha sido escrita em “[...] momento de regressão do teatro brasileiro”
(p.49), inspirando pânico, por exemplo, devido à “[...] sua forma cênica tão original,
moderna e ousada” e ao “[...] tema racial a que o autor deu um admirável
desenvolvimento dramático e poético” (p.49).
Além de elogiar o produtor Sandro Palloni, Antônio Accioly Neto (1947, p.49)
enalteceu também a escolha de Ziembinski para ser o ensaiador e diretor da peça,
pois ele teria todas as condições “[...] para recriar em termos cênicos ‘Anjo Negro’,
para fixar as situações de drama em imagens plásticas inesquecíveis e para
retransmitir a poesia que é essencial a toda peça” (p.49). Sobre a atriz que faria o
papel de Virgínia, Maria Della Costa, Antônio Accioly Neto (1947) disse que ela
apresentava condições ideais para desenvolver o papel, tendo características
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físicas que condiziam com a da personagem e sendo “[...] capaz de transmitir o
sentimento trágico das coisas e de se envolver a si mesma na mais pura e intensa
aura poética” (p.49). Já em relação a Orlando Guy, ator que foi selecionado para o
papel de Ismael, o crítico afirmou ser o único, de todos os que tinham sido
submetidos às experiências necessárias, que “[...] revelou as características do
papel” (p.49).
Ademais, ressaltando a discussão em torno de
Anjo Negro
e o processo de
censura enfrentado pela peça, os títulos de algumas reportagens diziam:
Anjo
Negro virá?
(Magno, 1948a, p.23);
Anjo Negro
,
de Nelson Rodrigues, a peça mais
discutida dos últimos dez anos
(O Cruzeiro, 1948, p.50); A
njo Negro, A Censura e
os escritores do Brasil
(Magno, 1948b, p.13);
A peça mais discutida do Brasil – Anjo
Negro – Estreia hoje, no Fênix
(Magno, 1948c, p.11).
A respeito da crítica teatral e literária recebida pela peça, Sábato Magaldi
(2004, p.59) afirmou que houve uma divisão “[...] apaixonadamente, com as defesas
irrestritas e as condenações inapeláveis”. A crítica
Anjo Negro Verso e reverso
,
publicada na revista
O Cruzeiro
, em 24 de abril de 1948, por Antônio Accioly Netto
o qual, como mostramos, aguardava ansiosamente pela encenação de tal obra
é um exemplo de manifestação favorável a
Anjo Negro
e à sua primeira
encenação. Ainda que a montagem de Ziembinski não o tenha agradado – porque,
segundo ele, o encenador “desvirtuou” o aspecto plástico da peça para uma
“encenação expressionista” marcada por uma “festa de cor” que em nada sugeriu
a atmosfera sombria da peça –, Antônio Accioly Neto não deixou de valorizar e
enaltecer
Anjo Negro
. Segundo o crítico, a peça não perdeu as características
essenciais que a individualizavam, principalmente, os diálogos, os quais, em sua
opinião, eram de “[...] uma vivacidade e de um apuro estilístico admiráveis” (p.25).
Conforme o crítico, de todas as peças de Nelson Rodrigues,
Anjo Negro
foi a
de maior teatralização, não existindo nela “[...] qualquer poesia vaga, difusa,
inoperante” (p.25). Ainda de acordo com ele, embora tenha ocorrido um “erro de
montagem”, a ação de Ziembinski para com os intérpretes revelou-se “magnífica”.
Ademais, a atuação de Maria Della Costa como Virgínia foi construída com uma
potência emotiva, merecendo um lugar à parte no teatro brasileiro. Sobre Orlando
Guy, no papel de Ismael, Antônio Accioly Neto afirmou que sua atuação justificou
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“[...] plenamente sua inclusão num papel, que, por direito caberia a um ator negro”
(p.25), sendo esse o melhor elogio que poderia fazer sobre o ator. Tal fala, como é
possível perceber, revela um posicionamento, de certa forma, contrário ao fato de
um homem branco ter feito o papel de um negro em uma peça que, segundo o
próprio Antônio Accioly Neto, pela primeira vez não tinha retratado o negro de uma
forma amesquinhada pela “[...] piedade ou sob a forma caricatural, mas com seu
formidável valor humano” (p.25), elevando-o ainda à condição de herói e de
protagonista.
De acordo com Leal (2020, p.69), Nelson Rodrigues escreveu
Anjo Negro
,
porque considerava “[...] um absurdo o negro ser representando no teatro apenas
como o ‘moleque gaiato’ das comédias de costumes ou por tipos folclorizados”. A
autora ressalta também que Nelson Rodrigues, em várias ocasiões, afirmou ter
construído o personagem Ismael especialmente para ser representado por Abdias
do Nascimento, ator negro e fundador do TEN (Teatro Experimental Negro).
Contudo, apesar de liberar o texto para encenação, a Censura proibiu a
interpretação do personagem Ismael por um ator negro (Leal, 2020). Assim, a peça
estreou com Orlando Guy atuando como o negro Ismael, o qual se pintou de preto,
valendo-se, desse modo, da questionável prática do
blackface
.
Antônio Accioly Neto (1948) não foi o único crítico a reprovar a representação
de Ismael por um ator branco. Paschoal Carlos Magno (1948d), em um texto não
tão favorável à peça de Nelson Rodrigues, declarou ter estranhado ver Orlando
Guy no papel de Ismael. Segundo ele, “[...] num país cheio de artistas negros com
verdadeiro mérito, por que foram buscar um principiante branco, que tem todas
as qualidades, menos aquela que é de tornar seu herói verdadeiro, real, diante de
seus espectadores?” (Magno, 1948d, p.15). O posicionamento de Paschoal Carlos
Magno, o qual consideramos um pouco mais enfático e fervoroso, além de
demonstrar seu descontentamento com a peça de Nelson Rodrigues
4
, revela que
o ato discriminatório e racista cometido pela censura, provavelmente, não foi tão
divulgado e discutido na época da encenação da peça; o que evidencia o fato de
4
Paschoal Carlos Magno (1948d, p.15), nesse mesmo texto, reprovou veementemente a peça Anjo Negro. Em
uma de suas afirmações, ele escreveu: “O ministro da Justiça fez um grande mal ao sr. Nelson Rodrigues,
liberando sua peça ‘Anjo Negro’, que o sr. Sandro corajosamente produziu, o sr. Ziembinsky dirigiu e que se
estreou sexta-feira passada no Fênix”.
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que a discussão racial no Brasil era considerada um tabu.
Nesse sentido, os elogios tecidos por Antônio Accioly Neto (1947; 1948) à peça
Anjo Negro
são, sem dúvidas, muito pertinentes e válidos, pois mostram que
Nelson Rodrigues ousou abordar a questão racial, não apenas “denunciando”, de
certo modo, um tema social, mas elaborando uma obra necessária e altamente
simbólica com muita originalidade e poeticidade. Ademais, a partir das críticas do
próprio Antônio Accioly Neto (1948b) e de Roberto Brandão (1948), é possível
perceber que parte do público, em geral, também reconheceu a importância e as
qualidades de
Anjo Negro
. Roberto Brandão (1948), por exemplo, ressaltou que ao
final do espetáculo houve uma ovação que ele jamais tinha visto. Antônio Accioly
Neto (1948b, p.25) declarou que as “[...] palmas frenéticas da plateia que
superlotava o Phoexis”, na estreia da peça, confirmaram suas repetidas afirmações
de que estaríamos diante de uma “obra de arte”.
Em vista disso, buscamos neste artigo analisar a peça
Anjo Negro
e, mais
especificamente, a caracterização do personagem Ismael, com vistas a
demonstrar o aspecto simbólico e muito significativo que envolve a construção da
peça de Nelson Rodrigues. Acreditamos que o aspecto de ordem social, presente
em
Anjo Negro
, visto como parte integrante da obra e núcleo de elaboração
estética (Candido, 2006), é importante para a construção da singularidade e da
poeticidade dessa peça. Assim, na seção 1, apresentaremos a estrutura da obra e
o sentido de tragicidade apresentada por Medeiros (2010). E, na seção 2,
mostraremos que a caraterização do personagem Ismael, por suas palavras e
ações, bem como pelas informações que os outros personagens apresentam
sobre ele, nos direciona a considerá-lo como um anjo negro, em sentido negativo,
ao sugerir a maldade e a morte.
A estrutura da obra e o sentido de trágico
Denominada também como uma “tragédia em três atos”, a peça
Anjo Negro
,
assim como outras peças de Nelson Rodrigues, apresenta forma e conteúdo
semelhantes às tragédias do grande teatro grego (Prado, 2001). Na forma, Prado
(2001, p.52) afirma que essa semelhança pode ser percebida pela presença do coro
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e pela “[...] divisão nítida entre os protagonistas, portadores dos conflitos”. Quanto
ao conteúdo, essa correspondência pode ser identificada no fato de as famílias
serem sempre marcadas pelo sofrimento e “[...] designadas para o dilaceramento
interior, com a maldição que as obriga ao crime e ao castigo passando de pais a
filhos” (Prado, 2001, p.52).
Medeiros (2010, p.118) confirma que a estrutura de
Anjo Negro
, bem como de
outras peças consideradas “trágicas”, de Nelson Rodrigues, se assemelha à
estrutura das tragédias clássicas, porém, de acordo com a pesquisadora, esta é
uma semelhança às avessas que se abre à possiblidade de “[...] adaptação à
sociedade brasileira, repleta de tabus”. De acordo com a autora, embora alguns
estudiosos neguem a possiblidade de existir na modernidade um texto dramático
que pertença ao gênero da tragédia, nos moldes do grande teatro grego, “[...] fica
cada vez mais evidente a resistência do sentido trágico na sociedade moderna e
contemporânea, o que resulta em sua representação estética não apenas nos
textos dramáticos, mas em toda literatura” (Medeiros, 2010, p.72).
Assim, a partir da ideia da autora, é possível entender que, mais do que uma
tragédia engendrada nos moldes estritamente clássicos,
Anjo Neg
ro se configura
como uma obra marcada, sobretudo, pela presença de um forte “sentido de
trágico”, representado, especialmente, pela ideia de conflito. Nesse sentido,
podemos dizer que em
Anjo Negro
esse sentido de tragicidade é evidenciado,
principalmente, pelos conflitos vividos pelos personagens da peça.
Anjo negro
mantém em sua estrutura um conflito centralizador,
sustentado por outros menores, mas que o encaminharão a atitudes
inevitavelmente trágicas. Inicialmente, a tensão é silenciosa, entre Ismael
e Virgínia, marido negro e mulher branca, como um jogo ambivalente de
duas forças opostas, mas inegavelmente dependentes. Essa dependência
anula a força trágica das personagens, só renascendo com o surgimento
do terceiro elemento do triângulo. E somente com a presença da filha
branca de Virgínia com Elias, irmão de criação de Ismael, haverá uma
tríade sobre a qual se sustentará o conflito trágico da peça: Ismael,
Virgínia e Ana Maria, pois assim haverá uma disputa entre mãe e filha pelo
mesmo homem (Medeiros, 2010, p.88).
Dessa forma, podemos compreender que na peça o conflito centralizador é
identificado, inicialmente, nessa tensão silenciosa entre Ismael e Virgínia, e, depois,
na relação formada entre os dois juntamente com Ana Maria. Portanto, é a partir
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desse conflito que as atitudes trágicas da peça se desenvolvem, culminando em
um fim trágico para os personagens.
Reconhecendo a importância dessa ideia para o entendimento do sentido de
trágico em
Anjo Negro
, buscamos demonstrar também que, de certa forma, o
conflito interno vivenciado pelo personagem Ismael, além de motivar suas ações
maldosas e cruéis, recai na potencialização e tragicidade desse conflito
centralizador ao resultar na morte de Ana Maria e na retomada da relação
“amorosa” entre Virgínia e Ismael, a qual continua a repetir, como em um círculo
vicioso, a maldição de morte na família.
Análise: a caracterização de Ismael
Como dito, esta análise está voltada, especialmente, para a caraterização
do personagem Ismael. Assim, as considerações que se seguem focam, sobretudo,
no primeiro ato da peça, pois o consideramos fundamental para a construção da
imagem de Ismael como um “anjo negro”. Nesse sentido, ainda que apresentemos
de forma mais detalhada os episódios dessa primeira parte, não deixamos de fazer
referências aos outros atos e seus acontecimentos, pois, sem dúvida, também
contribuem para a caracterização de Ismael e o entendimento da peça.
No primeiro ato, são apresentados os personagens principais e o ambiente
central da peça: a casa de Ismael, a qual, segundo a rubrica, “[...] não tem teto para
que a noite possa entrar e possuir os moradores” (p.125), e é rodeada por muros
grandes que crescem à medida que aumenta a solidão de Ismael. Dessa forma, a
rubrica inicial sugere que, mais do que um simples lugar para viver, a casa de
Ismael desempenha um papel importante na história: o de refletir, de certa
maneira, o estado emocional do personagem. A vida de Ismael e o ambiente em
que mora mantêm, assim, quase que uma relação de coexistência. Como exemplo
disso, vale considerar a passagem na qual Ismael é afetado emocionalmente com
a descoberta de que Virgínia o tinha traído e estava grávida de Elias, o que
corroborou para que uma noite angustiante e incessante pesasse sobre a sua casa.
Além de solitário, Ismael, na primeira rubrica, é descrito ainda como um
“Grande Negro” que, durante toda a peça, veste um terno branco engomadíssimo
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e sapatos de verniz. Inicialmente, Ismael está no andar térreo de sua casa, onde
ocorre o velório de seu filho pequeno, em e em posição rígida. Em volta do
caixão, círios “finos e longos acesos” e dez senhoras pretas sentadas em
semicírculo, as quais rezam “ave-marias” e “padre-nossos”, e têm “tristíssimos
presságios”, desempenhando “por vezes” uma função profética. No andar de cima
da casa, está a esposa de Ismael, Virgínia, uma mulher branca vestida de “luto
fechado”. No quarto há duas camas: uma com aspecto comum e outra quebrada
com a metade do lençol para fora e travesseiro no chão.
As primeiras informações mais detalhadas sobre a vida de Ismael e Virgínia
são apresentadas no primeiro diálogo da peça, o qual é estabelecido entre as dez
senhoras pretas que velam o caixão junto de Ismael. Segundo elas, o filho do
personagem principal era um menino forte, meigo, lindo e triste, que morreu de
repente afogado em um tanque “raso”, sem ninguém ter visto. Elas afirmam que
o menino era o terceiro filho de Ismael que tinha morrido. Lamentando a morte e
tentando encontrar a causa para o ocorrido, uma delas diz que era "Má vontade
dos anjos" (p.126); outra sugere que a criança morreu porque Deus gosta de
crianças e, por isso, mata as “criancinhas”; outra senhora diz que poderia ser o
“ventre da mãe” que não “prestava”, ideia complementada por mais uma delas
com a seguinte fala: “Mulher branca, de útero negro!” (p.126).
As senhoras ainda, ao caracterizarem a criança, se referem a ela por meio de
várias terminologias, tais como: mulato, moreno, preto, moreninho, mulatinho
disfarçado, de modo que parecem discordar umas das outras quanto ao termo
adequado para se referir à cor da criança. Uma em pânico chega a dizer “[...] Meu
Deus do Céu, tenho medo de preto! Tenho medo, medo” (p.125). Essa fala e outras
descritas acima demonstram que mais do que contextualizar a história e ter uma
“função profética”, as senhoras também emitem opiniões e manifestam
pensamentos sobre os acontecimentos da peça na posição de quem está do lado
de fora da história, fazendo declarações, muitas vezes, preconceituosas sobre os
personagens e dizendo até mesmo coisas duras e fortes, como nesta frase: “[...]
Mas seria tão bonito que um menino se matasse!” (p.126).
Além disso, as senhoras não colocam em dúvida a maneira como o filho
de Ismael morreu, mas também introduzem a questão racial presente na peça,
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considerada por nós como central e fundamental para o desenvolvimento da
história e, de modo particular, para a caracterização do personagem Ismael. Nas
frases finais do diálogo, elas afirmam:
SENHORA O preto desejou a branca!
SENHORA (
gritando
) Oh! Deus mata todos os desejos!
SENHORA: (
num lamento)
A branca também desejou o negro!
TODAS: Maldita seja a vida, maldito seja o amor! (Rodrigues, 1981, p.126)
É possível perceber que, em uma espécie de conclusão, as senhoras sugerem
que o relacionamento de Ismael e Virgínia seria responsável pela morte da criança,
ou seja, o casamento entre um homem negro e uma mulher branca motivado pelo
desejo; ideia que não expressa apenas um possível preconceito dessas senhoras,
mas também o conflito principal vivido por Ismael.
Logo após a fala das senhoras, aparece um personagem de extrema
importância para a caracterização de Ismael. Esse personagem é Elias, de início,
identificado apenas como o “cego” e o “jovem vagabundo”, que chega à casa de
Ismael, caminhando indeciso e carregando um “bordão”. Conforme a rubrica, Elias
tem “[...] os cabelos claros e anelados” e seu rosto exprime “[...] uma doçura quase
feminina” (p.126). Tal aparência nos remete à figura daqueles anjos presentes nas
igrejas católicas, os quais apresentam uma beleza vista como “delicada”.
Ao chegar à casa de Ismael, Elias encontra quatro negros seminus com
chapéus de palha e fumando charuto. Espantados com a presença de um “cego“
e “branco” no local, os negros alertam a Elias de que Ismael (chamado por eles de
“homem” e “doutor”) não gosta que branco entre na sua casa; fato que fez com
que ele construísse muitos muros em volta do imóvel. Segundo os quatro negros,
quando a “visita” insiste em entrar, Ismael "passa fogo", tanto que ele tinha
atirado em um branco que havia espiado sua casa uma vez. Após os negros
dizerem isso, Elias declara: “Então é ele” (p.127), indicando, assim, que já conhecia
Ismael e sabia do que era capaz. Os quatro homens acrescentam que só estavam
na casa de Ismael porque eram do cemitério e iriam carregar o caixão do filho
dele. Vamos percebendo, então, que Ismael não é um homem tão bom e que tem
atitudes violentas. O trecho abaixo revela mais algumas das características do
personagem:
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CEGO Diga ele se chama Ismael?
PRETO O doutor? Sim. E que médico!
CEGO Preto, não?
PRETO Mas de muita competência! (
para os outros
) Minto?
PRETO Não tem como ele!
PRETO Doutor de mão cheia!
PRETO Mas tome um conselho: não fale em preto que ele se dana!
CEGO – (
para si mesmo
) - Quer ser branco, não perde a mania.
(
mudando de tom
) Morreu quando o guri? (Rodrigues, 1981, p.127)
Assim, Elias, ao confirmar que Ismael era realmente a pessoa a quem os
quatro homens se referiam, descobre que ele era um médico, descrito como um
doutor “preto”, mas de muita competência. Tal pensamento expressa, de certo
modo, uma ideia racista comum na nossa sociedade: a de que um negro
dificilmente pode se tornar um médico de excelência. Os quatro homens negros
ainda aconselham Elias a não falar em “preto” perto de Ismael, visto que ele
provavelmente se zangaria. Elias, então, diz para si mesmo que Ismael não perdia
a mania de querer ser branco.
Respondendo a mais perguntas de Elias, os quatros homens dizem que
Ismael tem muito dinheiro, de modo que não precisa nem mais consultar, e que
sua esposa é branca e nunca é vista por ninguém. Ao saber a cor da esposa de
Ismael, Elias mais uma vez fala para si próprio: “Eu sabia, só podia ser branca!” (p.
128), demonstrando conhecer Ismael como ninguém a ponto de saber que ele
podia se casar com uma mulher branca.
Nesse primeiro momento, a caracterização de Ismael se restringe às palavras
de Elias e dos quatro negros, bem como às informações da primeira rubrica. Assim,
inicialmente, constatamos que Ismael é um médico negro e solitário, que deseja
ser branco e não gosta que homens brancos entrem em sua casa, podendo até
matar quem, porventura, insistir em contrariá-lo, como já havia feito uma vez. Tal
comportamento revela, assim, o conflito de Ismael em relação à sua cor, o qual
pode ser entendido como o resultado de um “complexo de inferioridade”, por
vezes, existente entre os negros (Fanon, 2008). De acordo com Fanon (2008, p.59),
esse sentimento de inferioridade é marcado por um caráter compulsivo,
semelhante a um comportamento fóbico, bem como por “[...] uma incapacidade
de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável”. A saída para
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esse sentimento, frequentemente, é encontrada no mundo branco, acessado,
muitas vezes, pelo casamento entre um homem negro e uma mulher branca
(Fanon, 2008), como acontece com Ismael. Nesse sentido, o desejo do médico em
ser branco era tanto que ele arruma um meio de casar-se com Virgínia, mesmo
que de um modo violento, para sentir-se branco e até poderoso.
Percebemos ainda que esse complexo de inferioridade conduziu Ismael
também a se afastar de tudo o que remetia ao universo negro. Segundo o
personagem Elias, Ismael não bebia “cachaça” porque a considerava bebida de
preto. Além disso, certa vez, o médico teria atirado São Jorge pela janela porque
achava que este era santo de negro e, por último, abandonado e desprezado a
própria mãe por acreditar que esta era responsável pelo infortúnio dele ter nascido
negro.
Essas características de Ismael se tornam ainda mais evidentes após o
diálogo mantido entre Elias e os quatro homens negros, quando o médico começa
a ser caracterizado também por suas ações e palavras. Depois de conversar com
os funcionários do cemitério, Elias decide falar com Ismael, pois, de acordo com
ele, era seu irmão caçula. A conversa entre os dois é marcada por acusações,
violência e súplicas. Quando Ismael encontra Elias, aparenta não demonstrar
sentimento algum em relação a ele, como indica uma das rubricas: “Ismael,
impassível, em silêncio deixa que o cego venha ao seu encontro” (p.130), e
imediatamente pergunta quem o tinha mandado ir até a casa dele. Inicialmente,
Elias diz que ninguém o tinha mandado à casa de Ismael, porém, com a insistência
e “severidade” do “irmão”, afirma o seguinte momentos depois:
Foi ela quem me mandou (
abaixa a voz
) tua mãe! (
muda de tom
) Eu
não ia dizer isso, não ia dizer, já, porque teu filho vai ser enterrado hoje.
Mas você continua duro (
pega a mão de Ismael, que continua impassível
),
até tua mão, os nós dos dedos, parece de pedra! (p.129).
Elias, mesmo que um pouco incerto, parece querer se aproximar do irmão e
saber sobre o filho de Ismael que tinha morrido. Ele chega a suplicar ao médico
para que o deixasse beijar a criança morta ou que pelo menos contasse a ele o
que tinha acontecido. De acordo com Ismael, ninguém sabia como tinha sido a
Anjo Negro
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morte, pois em um momento de distração de sua esposa, a criança desapareceu
e não foi encontrada em lugar nenhum. Então, ele se lembrou do “tanque” e,
quando chegou ao local, o filho estava pousado no fundo do reservatório.
Confirmando o que as senhoras do coro disseram, Ismael também compartilha da
opinião de que o filho não poderia ter se afogado em um tanque tão raso e, caindo
em abstração, diz: “Deus marcou minha vida, eu sei que é Ele, pode ser Ele”
(p.130).
Depois de contar também que era seu terceiro filho que morria, Ismael diz a
Elias que não o deixaria ver a criança e o expulsa definitivamente da casa. Ao ter
o pedido negado e, após a expulsão, Elias resolve contar o que a mãe de Ismael
tinha pedido a ele que dissesse: “Ismael, tua mãe mandou sua maldição!” (p.130).
Com isso, percebemos que Ismael muito tempo não matinha contato com a
mãe e parecia não se importar com ela. Tanto que, ao receber as palavras da mãe,
Ismael diz que independente de ser um “recado” ou “maldição”, o que ele queria
mesmo é que Elias fosse embora. Porém, Elias se recusa a sair e diz que não tinha
para onde ir. Os dois, então, estabelecem o seguinte diálogo:
ISMAEL Preferes que eu te expulse daqui? Que te leve de rastos? Ou
perdeste o medo?
ELIAS Tive medo quando era menino. Naquele tempo, você me batia
porque eu não era filho de sua mãe, porque era filho de uma mulher
branca com homem branco. Mas hoje, não. Talvez amanhã o medo volte...
[...]
([...] Ismael apanha um relho)
ISMAEL - (
batendo com o relho num móvel
) - Sabes o que é isso?
(Elias volta-se instintivamente, na direção certa. Seu rosto exprime
terror.)
ELIAS Sei. Aquele chicote, curto, trançado, que meu pai te deu.
ISMAEL Queres que use isso na tua carne?
ELIAS (
com uma coragem desesperada
) - Num cego não se bate. Você
não teria essa coragem!
ISMAEL - Deixe a minha casa!
ELIAS Vou, mas cedo ou tarde prestarás contas a Deus!
(Rodrigues, 1981, p.130-131).
Nessa conversa, Ismael se mostra um homem extremamente violento e
ameaçador, que agredia Elias quando este era um menino e, naquele momento,
ainda era capaz de bater nele com um “relho”, instrumento que nos remete ao
tempo da escravidão. Elias justifica tais atos de violência afirmando que Ismael o
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batia porque ele era filho de “uma mulher branca com um homem branco”. Assim,
constatamos, novamente, que a questão racial está relacionada às ações do
personagem Ismael.
Apesar de parecer irreversível em sua decisão, Ismael, ao ver Elias
caminhando até a porta, resolve deixá-lo ficar somente até o outro dia, em
consideração à morte do filho. No entanto, Elias não poderia sair do quarto dos
fundos e nem falar com Virgínia, pois era como “[...] se ela fosse do céu” e Elias
“da terra, da terra, não, da lama” (p.132).
Depois da conversa com Elias, Ismael sobe as escadas de sua casa e vai até
o quarto de sua esposa. O diálogo estabelecido entre os dois revela fatos
importantes sobre a vida deles. Descobrimos que Virgínia e Ismael viviam
praticamente distantes de todos e que ele não a deixava ver outras pessoas. De
acordo com Ismael, os muros altos de pedra ao redor de sua casa tinham sido
construídos porque Virgínia disse que queria fugir de todos e que ninguém mais a
visse. Ela, por sua vez, afirma ter dito isso, depois do que ele tinha feito com ela,
na cama de solteiro, descrita na rubrica inicial (nas cenas posteriores, descobrimos
que Virgínia tinha sido violentada por Ismael a pedido da tia dela e que a cama
onde tudo tinha acontecido havia sido mantida do mesmo jeito). Para Virgínia o
que ocorreu a deixou com muita vergonha, de modo que ela queria viver em um
mausoléu, mesmo estando “viva”. Em certo momento, ela diz: “[...] Já me esqueci
dos outros homens, sinto como se no mundo existisse uma fisionomia a
sua – todos os homens só tivessem um rosto o seu. (
muda de tom
) Ismael, teus
filhos têm o teu rosto!” (p.133).
Com essa fala, percebemos que Virgínia não gostava de viver isolada e, por
um momento, afirma que os filhos que teve com Ismael não eram dela, mas
apenas dele. Quando questionada por Ismael porque havia dito “teus filhos”,
subitamente Virgínia muda de tom e diz que as crianças também eram filhos dela,
mas que eram tão semelhantes a ele, que pareciam estar espiando-a com os
olhos de Ismael. Entrando, de repente, em um total desespero, Virgínia, então,
pede que Ismael arrume para ela um retrato de Jesus, porque assim ela poderia
ver outro rosto além do dele. O médico nega o pedido e, segurando-a, diz o
seguinte:
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Não quero, não deixo! Se eu quis viver aqui, se fiz esses muros; se juntei
dinheiro, muito; se ninguém entra na minha casa é porque estou
fugindo. Fugindo do desejo dos outros homens. Se mandei abrir janelas
muito altas, muito, foi para isso, para que você esquecesse, para que a
memória morresse em você para sempre. (
com uma paixão absoluta
)
Virgínia, olha para mim, assim! Eu fiz tudo isso para que existisse eu.
Compreende agora? Não existe rosto nenhum, nenhum rosto branco!
o meu, que é preto... (Rodrigues, 1981, p.134).
A partir desse trecho, compreendemos que Ismael não prendia sua esposa
em casa apenas para cumprir, de certa forma, uma “vontade” dela, mas,
sobretudo, para que ela não fosse “desejada” por outros homens e não se
lembrasse de mais nenhum rosto, a não ser do dele, que era preto. Virgínia,
insistindo, questiona o marido se o motivo de não arranjar o retrato era porque ele
tinha medo de que a imagem de Cristo olhasse para ela. Como Ismael não
responde, ela afirma “Se fosse um Cristo cego, não tinha importância. Mas não há
Cristo cego!” (p.134). Mais uma vez, Ismael nega o pedido dizendo: “Não deixo, nem
quero... (
espantado
) Esse Cristo, não; claro, de traços finos...” (p.134).
Com essas falas e atitudes, Ismael se mostra um esposo autoritário e cruel,
que impede a esposa de ter um “simples” retrato de Jesus. A crueldade aumenta
quando, no fim do diálogo mantido entre os dois (já no final do primeiro quadro
do ato 1), Ismael expressa seu desejo de ter mais um filho com Virgínia, um que
não morresse. Como o diálogo entre os dois sugere, Ismael tentaria “ter esse filho”
após sua chegada do enterro, não respeitando, assim, nem o “luto” da esposa.
Logo depois que Ismael vai para o sepultamento do filho, desesperada e
trancada no quarto, Virgínia cai de joelhos com as mãos no rosto. Em seguida, pega
um pequeno sino e toca-o em uma espécie de frenesi. Tal atitude parece anunciar
a chegada daquele que viria salvá-la das maldades do marido e impedir que ela
tivesse outro filho “preto” de Ismael, pois, como veremos, Virgínia não gostava dos
filhos pelo fato de serem negros.
Quando descobre por sua empregada, Hortência, que o irmão de seu marido
estava em sua casa e que este era branco e cego, Virgínia imediatamente
chantageia a funcionária para que ela abra a porta do quarto e traga Elias até a
sua presença. Espantada com a situação, ela diz para si própria: “Eu falando de
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um Cristo cego, e o irmão tinha chegado, de longe, não sei de onde, mas
estava aí...” (p. 139). Assim, podemos perceber que, nessa fala, há uma insinuação
de que Elias seria o próprio Cristo cego de que Virgínia falava ao marido. Nesse
sentido, entendemos que o pequeno sino, tocado por ela na abertura do quadro,
ao evocar, simbolicamente, “[...] a posição de tudo que está suspenso entre o céu
e a terra [...]” (Chevalier e Gheerbrant, 2001, p.835) e, por isso, estabelecer uma
comunicação entre ambas as dimensões, prenuncia a vinda de Elias, o qual, na
visão de Virgínia, traria uma espécie de “salvação” à vida dela.
É importante ressaltar que, nessa peça, é possível constatar que a
religiosidade de Virgínia – e de outros personagens, como a tia dela – e as marcas
desse mundo religioso cristão não podem ser consideradas expressões de e
manifestações da vontade divina, mas sim o reflexo de uma crença hipócrita que
se baseia mais no discurso do que nas ações (Medeiros, 2010), que é como se
Virgínia se apoiasse em certa religiosidade para justificar suas ações também
maldosas. No fim do primeiro ato, por exemplo, descobrimos que foi Virgínia quem
assassinou os próprios filhos.
Assim, é justamente no encontro com Elias que uma nova imagem de Virgínia
também vai sendo construída. De uma “pobre” mulher que sofria atrocidades do
marido, Virgínia passa a ser também vista como aquela que não suportava o
cônjuge e odiava os filhos apenas pela cor da pele deles. Quando Elias, uma das
primeiras coisas que diz é:
VIRGÍNIA (
com sofrimento
) Se você soubesse a saudade que eu tinha
de outro rosto que não fosse o dele? E branco?!...Graças a Deus, não sou
cega, posso ficar assim, olhando, até me fartar; e acho que não me
fartaria nunca! (
súplice
) Deixa eu passar a mão pelo seu rosto? É um
capricho meu. (
passa a mão no rosto
) Estou tateando você, como se eu
é que fosse cega! Seus traços finos! (Rodrigues, 1981, p.140).
Assim, em sua fala, Virgínia enfatiza seu desejo de ver outro rosto além do
de Ismael, principalmente um rosto de “traços finos”; características ditas comuns
de pessoas brancas e que manifestam um padrão de beleza, de certa forma, mais
“aceitável” na sociedade. Durante todo o diálogo com Elias, Virgínia manifesta sua
aversão ao marido e à cor de sua pele e, sua preferência, assim, por homens como
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Elias, de lábios finos e rosto branco.
O contraste, então, entre Ismael e seu irmão, fica mais evidente ainda com o
diálogo entre Virgínia e Elias, de modo que a imagem do médico como uma pessoa
cruel e maldosa também é acentuada. Segundo Elias, ninguém poderia gostar de
Ismael, pois desde pequeno ele tinha vergonha e ódio da própria cor. Um dia, antes
de desaparecer da casa da família, Ismael chegou a dizer para a mãe que era negro
por causa dela; fato que explica a maldição que sua progenitora teria lançado
sobre ele. Para Elias, um homem que renega sua própria cor é maldito, uma vez
que nem um leproso deveria “[...] renegar a própria lepra” (p.141), tendo que assumir
a sua condição.
Elias afirma também que quando Ismael era rapaz,
[...] não bebia cachaça porque achava cachaça bebida de negro. Nunca se
embriagou. E destruiu em si o desejo que sentia por mulatas e negras
ele que é tão sensual. A mim, nunca perdoou que eu fosse filho de
brancos e não de negros como ele. Quando fui morar na casa de Ismael,
ele era rapaz, e eu, menino. Ismael me maltratava, me batia. Eu tinha
medo dele; (olhando em torno ou, antes, virando a cabeça de um lado
para outro, como se pudesse enxergar) e ainda hoje tenho medo um
medo de animal, de bicho! (Rodrigues, 1981, p.141).
Com essa fala, percebemos que Ismael era tão violento com o irmão que
provocava em Elias um sentimento de medo permanente, um medo de “bicho”,
se caracterizando, assim, nas palavras de Elias, também como um animal. Depois
de contar ainda como tinha ficado cego (o cunhado acrescentou que Ismael, por
uma fatalidade, havia trocado os remédios que ele estava tomando devido a uma
enfermidade), Elias pergunta à Virgínia se ela gostava de Ismael. Ela prontamente
diz que não, que tinha ódio, e que certamente Ismael tinha trocado os remédios
de propósito para cegar Elias. Então, os dois conversam nos seguintes termos:
ELIAS Tem medo dele?
VIRGÍNIA
(incerta
) Medo? (
mudando de tom, levantando-se, anda,
enquanto Elias se desorienta, sem saber em que direção virar-se
) A
transpiração dele está por toda a parte, apodrecendo nas paredes, no ar,
nos lençóis, na cama, nos travesseiros, até na minha pele, nos meus seios
(
aperta a cabeça entre as mãos
). E nos meus cabelos, meu Deus!
(
Cheira as mãos em concha, como se quisesse encontrar nelas o cheiro
três vezes maldito
.)
ELIAS Então, por que se casou com ele? Me disseram que você é
branca, nem morena, mas branca, muito branca.
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VIRGÍNIA (
num transporte
) Muito branca, muito alva. (
muda de tom
)
Quem ama mistura suor com suor. (
pergunta, com avidez
) Diga se o suor
dele ficou em mim, se está na minha carne? ou se é imaginação minha?
[...]
ELIAS É imaginação!
(
Virgínia baixa a cabeça, numa súbita vergonha
.)
ELIAS (
agressivo
) Mas se você tem horror...
VIRGÍNIA (
interrompendo, brusca afirmativa
) Tenho! (Rodrigues, 1981,
p.142).
Assim, esse diálogo demonstra que não era apenas Elias que tinha medo e
horror de Ismael, mas também Virgínia. Para ela, a transpiração de seu marido
estava por toda parte e em todo seu corpo, o que a aterrorizava. Diante disso, Elias
quis saber o motivo de ter se casado então com Ismael. Virgínia explica que tudo
aconteceu depois que ela foi vista beijando o noivo de sua prima, a qual, após o
ocorrido, se enforcou e morreu. A tia, com o propósito de vingar a morte da filha,
chamou Ismael para violentar a sobrinha. Virgínia descreve a cena nestes termos:
[...] De noite, Ismael veio fazer quarto. Era o único de fora, ninguém mais
tinha sido avisado. De madrugada, senti passos. Abriram a porta era ele
mandado pela minha tia. Eu gritei, ele quis tapar minha boca gritei como
uma mulher nas dores do parto... (
muda de tom
) Se pudesses ver, eu te
mostraria...
(
Cai em penumbra o resto do quarto; a luz incide apenas sobre a cama
em que Virgínia foi violada. Veem-se todos os sinais de uma luta
selvagem; a extremidade inferior da cama está caída; metade do lençol
para o chão, um travesseiro no assoalho; um pequeno abajur quebrado
.)
VIRGÍNIA – (
indicando a cama
) - Ninguém mais dormiu ali... A cama ficou
como estava; não mudaram o lençol, não apanharam o travesseiro, nem
o crucifixo de cristal, que se partiu naquela noite... Tudo como 8 anos...
Ismael não quer que eu, nem ninguém, mexa em nada... Depois, veio a
outra cama, de casal. Mas a minha, de solteira continua, sempre, sempre...
E continuará, depois da minha morte (Rodrigues, 1981, p.144).
Tal descrição demonstra a extrema violência sofrida por Virgínia, a qual não
ficou marcada apenas em sua memória, mas também mantida no cenário do
quarto. Segundo Virgínia, após o acontecimento, a tia foi embora com as filhas e
voltou trinta dias depois para o casamento dela com Ismael. Ao ouvir isso, Elias
diz que poderia salvá-la de Ismael se ela fugisse com ele. Porém, Virgínia afirma
que fugir não resolveria, pois dessa forma ela não conseguiria se libertar de Ismael.
VIRGÍNIA Não posso. Se eu fugisse, a transpiração dele não me
largaria; está entranhada na minha carne, na minha alma. Nunca poderei
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me libertar! Nem a morte seria uma fuga!
ELIAS Maldito seja o negro!
VIRGÍNIA (
doce
) Você pode-me salvar, mas não assim. Há outra
maneira. E se fizer o que eu espero, eu agradecerei de joelhos, eu
beijarei no chão a marca dos seus passos.
ELIAS (transportado) Sabe, não sabe? Que eu farei tudo, tudo?
VIRGÍNIA - Sei. Sinto isso em você.
(
Virgínia acaricia-o no rosto, nos cabelos. Caem de joelhos os dois, um
diante do outro
.)
ELIAS Você está quase louca.
VIRGÍNIA Se já não estou.
ELIAS Quer de mim o quê?
VIRGÍNIA Lembra-se do que eu lhe disse? que seus lábios eram finos
e meigos? Dá-me um beijo?
(
Os dois beijam-se apaixonadamente
. [...]) (Rodrigues, 1981, p.145-146).
Desse modo, verificamos que para Virgínia, Elias poderia salvá-la de outra
forma, a qual tinha relação com os lábios finos dele e, consequentemente, com a
cor de sua pele. Segundo Virgínia, os três filhos que ela teve com Ismael tinham
morrido porque eram pretos e não brancos, de modo que, se o seu próximo filho
nascesse preto, este seria outra criança que ela “daria” à morte. Com essa fala,
compreendemos as reais intenções dela para com Elias; ou seja, ela queria ter um
filho branco dele como um modo de se vingar de Ismael. Além disso, sua fala nos
indícios de que, certamente, foi ela mesma quem matou seus filhos, o que é
confirmado no segundo ato, quando Ismael descobre que ela está grávida de Elias.
Assim, se por um lado, Ismael demonstra certo sentimento de ódio pelos
brancos, de modo a não querer que um retrato de Cristo branco entre em sua
casa e a manifestar o desejo de fugir do mundo ao enclausurar-se com a esposa
em uma casa totalmente murada; por outro, Virgínia também demonstra
preconceito racial em relação aos filhos pretos e ao marido. O filho branco, que
desejava ter com Elias, seria, então, não apenas o melhor meio de vingar-se de
Ismael, uma vez que ele tinha aversão a brancos, mas, principalmente, uma forma
de ver um rosto branco que se sobrepusesse ao do marido, o que evidencia seu
preconceito.
O primeiro ato termina, assim, com Virgínia e Elias subindo para o quarto,
beijando-se, abraçando-se, e, por conseguinte, concretizando a ideia vingativa de
Virgínia. Consideramos esse primeiro ato importantíssimo para a caracterização do
personagem Ismael. É, a partir dele, que descobrimos que o médico é agressivo,
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violento, uma espécie de “animal” amedrontador, alguém “maldito” por renegar
sua cor, e um homem descrito por várias rubricas como “impassível” e “pétreo”.
Ou seja, um homem que concentrava em si uma extrema maldade e crueldade
sem fim. Tal imagem se apresenta como totalmente oposta à de Elias, cuja
aparência evocava a beleza de um anjo, de um ser celestial, o qual estava
predestinado a salvar Virgínia do marido cruel.
Em suas ações, Elias deixava, na maioria das vezes, transparecer a doçura, a
delicadeza, a súplica e a meiguice. Para Virgínia, Elias era quase um “Cristo”, um
homem santo. Como ela mesma disse, quando Ismael descobriu sua gravidez: o
“amor” vivido pelos dois era de tamanha inocência que se Elias a “possuísse” todos
os dias, ela ainda continuaria pura, podendo se “entregar” sem culpa. Em outras
palavras, como o próprio Ismael afirma, com base no que a esposa havia dito e
com certa ironia, Elias era o homem que amava como um “anjo”, cujo desejo não
era triste e nem vil.
Nesse sentido, entendemos que as principais características de Elias
contribuem para que na peça e, principalmente, para Virgínia, ele seja visto,
realmente, como um “anjo”, no sentido comum da palavra e do imaginário cristão.
Elias, então, era como um “anjo” porque, além da bondade, pureza e delicadeza,
tinha os cabelos claros e anelados, e, sobretudo, os traços finos, como Virgínia
enfatizou várias vezes. Assim, nessa mesma linha, Ismael, por ser o oposto de
Elias, seria como um “anjo negro”, não apenas em razão da cor de sua pele, mas
também devido à sua crueldade, violência e maldade. Entendemos que o adjetivo
“negro”, acrescentado à palavra “anjo”, sugere, assim, muitos sentidos negativos
que são concretizados pela ação de Ismael. Podemos dizer que na peça os termos
“negro” e “preto” (pela grande relação sinonímica que mantêm) adquirem
significados muito simbólicos.
Do ponto de vista da análise psicológica, nos sonhos diurnos e noturnos,
bem como nas percepções sensíveis no estado de vigília, o preto é
considerado como a ausência de toda a cor, de toda a luz. O preto
absorve a luz e não a restitui. Evoca, antes, o caos, o nada, o céu noturno,
as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e a Morte
(Chevalier e Gheerbrant, 2001, p.742).
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Assim, considerando o caráter irreal e a atmosfera sombria da peça, podemos
perceber todos esses sentidos simbólicos da cor preta manifestados na imagem
de Ismael como um “anjo negro” e, consequentemente, em todo o ambiente da
peça. Dessa forma, é como se Ismael, enquanto portador desses sentidos
negativos, propagasse, de certa forma, por meio de suas ações, a morte, as trevas
e o mal que envolvem a história.
Além disso, se pensarmos na questão da morte e, em certa religiosidade que
permeia a história, a ideia de “anjo negro”, apresentada até aqui, pode adquirir
significados mais profundos.
O preto como evocação da morte está presente nos trajes de luto e nas
vestes sacerdotais das missas de mortos ou da Sexta-feira Santa. Junta-
se às cores diabólicas para representar, com o auxílio do vermelho, a
matéria em ignição. Saé chamado de Príncipe das Trevas, o próprio
Jesus é às vezes representado de preto, quando é tentado pelo Diabo,
como se estivesse recoberto com véu negro da tentação (Chevalier e
Gheerbrant, 2001, p.742).
Tal citação evidencia uma frequente associação existente entre a cor preta e
as ideias de maldade e tentação provocadas pela figura denominada acima de
“Satã”, o príncipe das trevas, o qual, popularmente, é chamado ainda de Diabo,
Satanás, Lúcifer e Demônio. Nesse sentido, podemos dizer que a imagem do “anjo
negro”, construída na peça, está permeada, de certo modo, pela figura do diabo, o
qual é comumente visto no imaginário religioso e popular como uma entidade das
trevas responsável por causar medo e terror (Camargo; Halda; Kühl, 2020). Esse
pensamento é ainda mais reforçado quando levamos em consideração a
representação do Diabo como o “anjo caído”, o qual “[...] com suas asas roídas,
quer partir as asas de todo criador [...]” (Chevalier e Gheerbrant, 2001, p.194). Ou
seja, o Diabo como a representação de Lúcifer
5
, aquele que era portador da luz,
5
É importante ressaltar que embora a história da queda de Lúcifer se trate de uma construção cristã em
virtude de algumas passagens bíblicas que fazem referência ao banimento de Satanás, conforme pode ser
verificado nos livros de Isaías (14:12-15) e de Ezequiel (28:12-15), o termo “Lúcifer”, propriamente, não consta
no livro sagrado (Ferraz, 2014). Na realidade, o anjo decaído costuma ser referenciado como diabo, satanás
e demônio no antigo e novo testamento. Aliás, os pormenores acerca da revolta de Lúcifer contra Deus
também não são informados na bíblia, de modo que parte considerável do que se sabe sobre essa figura
mística procede do imaginário cristão, o qual contribuiu para a nese de diferentes representações do
diabo não na cultura popular, mas também em produções literárias (Souza, 1986). No campo da literatura,
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mas que por se rebelar contra Deus, querendo ser como Ele e, também, como
podemos entender, negando sua condição de anjo, foi expulso do céu. Nesse
sentido, entendemos que Ismael, de modo semelhante, por renegar a sua cor e
querer ser branco, foi amaldiçoado pela mãe, tornando-se um homem maldito e
condenado a viver nas trevas de seu próprio conflito interior, o qual levou o
personagem a agir de forma completamente maldosa e violenta.
Assim, Ismael, como já dito anteriormente, na estreita relação que mantinha
com o ambiente em que morava, quanto mais solitário ficava, mais os muros de
sua casa aumentavam e, da mesma maneira, a escuridão do lugar; chegando ao
ponto de, no fim da história, pesar sobre a casa do personagem uma noite
incessante. Ou seja, é como se Ismael, ao fechar-se cada vez mais em sua solidão
e, em seu conflito interno, murasse a si próprio, privando-se e fugindo, não apenas
do mundo, mas, sobretudo, das relações conflitantes da sociedade entre negros e
brancos, da qual decorre várias atitudes preconceituosas e cruéis.
Consideramos que o conflito interno vivido por Ismael (o qual, como
dissemos, estava relacionado à cor de sua pele e motivava suas ações na peça)
reflete, certamente, os conflitos raciais e preconceituosos que ele enfrentava na
sociedade, que “[...] detrás das motivações individuais dos personagens em
conflito, frequentemente, é possível discernir causas sociais, políticas ou
filosóficas” (Pavis, s.d., apud, Pallottini, 1989, p.86).
É no momento final da peça que Ismael, pela primeira vez, afirma
explicitamente ter sofrido preconceito racial, revelando, assim, as relações
conflitantes entre negros e brancos. Ao descobrir, no segundo ato, que Virgínia
estava grávida, Ismael resolve esperar a criança nascer para matá-la e se vingar
da esposa. No entanto, como não nasce um menino (que era o que Virgínia queria,
pois sua vingança só seria possível se ela vivesse o “amor” de uma mulher com o
por exemplo, pode-se considerar tal contribuição e influência a partir do poema épico
Paraíso Perdido
(1667),
do poeta inglês John Milton, o qual narra as consequências e os desafios enfrentados pelos anjos decaídos
após a rebelião liderada por Lúcifer no céu, bem como as armações engendradas por este com o propósito
de conduzir Adão e Eva à desobediência. Vale considerar ainda que além do imaginário cristão, o mito
luciferiano também se constituiu por meio das influências da mitologia grega, o que demonstra a sua
configuração pré-cristã. Dessa forma, é possível aproximar Lúcifer das seguintes figuras mitológicas:
Prometeu, Eósfero, Héspero e Hespérides (Ferraz, 2014). Assim como o anjo de luz, estes personagens se
empenharam em buscar uma sabedoria que lhes era superior e proibida, o que culminou em muitos
infortúnios sobre eles.
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filho), Ismael decide cuidar da menina, cujo nome era Ana Maria, como se fosse
sua “filha”, a qual cresceu tendo “adoração” e certo fanatismo por ele. Isso
aconteceu porque o médico, quando Ana Maria era bem pequena, a havia cegado
com ácido para que ela não o enxergasse e soubesse que ele era preto, o que
favoreceu o seu propósito de educá-la para acreditar que, no mundo, todos os
homens eram pretos e maus, com exceção dele que era o único branco.
No terceiro ato, Virgínia se rebela contra o marido e pede a ele que a deixe
falar com Ana Maria, pois queria contar a verdade a ela, ou seja, que Ismael não
era branco e que sempre a privou de demonstrar o “amor” que tinha pela filha.
Ismael, então, dá três dias para a esposa, pois, segundo ele, ela poderia falar o que
quisesse, que Ana Maria nunca acreditaria nela. Apesar da tentativa, Virgínia não
consegue convencer a filha de que havia sido enganada durante muito tempo, e,
depois de descobrir que Ana Maria se relacionava amorosamente com Ismael,
constata e demonstra que, na verdade, nutria ódio pela filha em razão de desejar
um filho homem.
Terminados os três dias, Ismael revela o que tinha planejado e qual era a sua
intenção ao permitir que Virgínia conversasse com a filha: durante esse período,
ele estava construindo um mausoléu – um grande túmulo de vidro semelhante ao
caixão da Branca de Neve para que ele e Ana Maria pudessem se esconder do
desejo dos brancos. Segundo Ismael, ele encontrou o lugar que tinha dito que
queria viver com Virgínia, mas, como ela o desprezou e se relacionou com Elias,
Ana Maria era quem entraria com ele. Então, Virgínia, a qual, com o
desenvolvimento da história, também mostrou ser uma pessoa manipuladora, má
e cruel, cuja personalidade era ambígua, consegue fazer com que Ismael mudasse
de ideia e ficasse com ela, deixando apenas Ana Maria entrar no mausoléu, e,
assim, morrer sozinha. Para convencer o marido, Virgínia diz a ele que todas as
coisas que tinha falado anteriormente eram mentiras, afirmando que o amava
como ele era: “preto”; diferentemente de Ana Maria que o amava porque pensava
que ele era branco. Conversando, então, sobre Ana Maria, os dois dizem:
ISMAEL [...]
(exultante
) Se ouvisse o que ela me disse verdadeiras
loucuras, como se eu fosse Deus...
VIRGÍNIA (escarnecendo) E pensa que você é branco, louro!
Anjo Negro
, de Nelson Rodrigues: a caracterização do personagem Ismael
Mayara Nunes da Silva
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(
triunfante
) Se ela soubesse que és preto!... (
muda de tom
) Ela te ama
porque acha que és o único branco... Ama um homem que não é você,
que nunca existiu... Se ela visse você como eu vejo se soubesse que o
preto é você (
ri ferozmente
) e os outros não; se visse teus beiços, assim
como são, ela te trocaria, até, por esse homem de seis dedos...
(
Agarra-se mais ao marido, envolve-o
)
VIRGÍNIA Agora, eu não!... Eu te quero preto, e se soubesses como te
acho belo, assim como os carregadores de piano!... De descalços,
cantando!
ISMAEL És meiga como uma prostituta!
VIRGÍNIA Sou, não sou?
ISMAEL (
apaixonado
) E ela, não! (
com rancor
) Ela se como o pai
possuía com tanta pureza!... (
exalta-se
) Não seria como tu... Não teria o
medo que sempre tiveste... Não gritaria... Ama sem sofrimento e sem
pavor... E não sabe que eu sou preto, (
tem um riso soluçante
) não sabe
que sou um “negro hediondo”, como uma vez me chamaram... me
ama porque eu menti tudo o que eu disse a ela é mentira, tudo, nada
é verdade! (
possesso
) Não é a mim que ela ama, mas a um branco
maldito que nunca existiu!
VIRGÍNIA Vem comigo, vem! (Rodrigues, 1981, p. 189-190).
Assim, Virgínia diz a Ismael que se Ana Maria visse que ele era preto, se visse
os “beiços” dele, com certeza o trocaria por outro homem – indicando, assim, um
pensamento preconceituoso, por vezes, presente na sociedade, de que os lábios
dos negros, comumente “grossos”, não são “belos”.
Ismael, envolvido pelas palavras de Virgínia e fisicamente por ela, em uma
mistura de sentimentos (com rancor, possesso e apaixonado), apesar de tentar
relutar, concorda com a esposa e acaba revelando que uma vez foi chamado de
“negro hediondo” expressão extremamente cruel e racista que demonstra
explicitamente o preconceito sofrido por ele, como tínhamos dito mais acima. Tal
expressão parece concentrar em si todas as palavras e frases preconceituosas
usadas, principalmente, por Virgínia para descrever Ismael, que o vocábulo
“hediondo”, relacionado à palavra “negro”, sugere alguém que tem a aparência
repulsiva, que causa horror, considerado desprezível e até mesmo fétido – como
podemos entender ao considerar os vários significados que o termo “hediondo”
pode ter, com base nas definições do dicionário
on-line Michaelis
.
Dessa forma, apenas com uma frase, Ismael, no final da peça, confirma o
preconceito racial do qual foi vítima, e, assim, o conflito interno que vivenciava.
Consideramos que foi justamente esse conflito que levou Ismael a violentar e a se
casar com uma mulher branca (movido pelo desejo de ser branco); a maltratar,
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, de Nelson Rodrigues: a caracterização do personagem Ismael
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bater e a matar Elias; e, no auge de sua obsessão, a construir a imagem de um
homem branco para si, ao convencer Ana Maria de que ele era o único branco do
mundo. Assim, quando fez Ana Maria odiar os negros, Ismael demonstra que uma
pessoa não nasce odiando a outra pela cor, mas que esse ódio é construído e
formado histórica e socialmente, por exemplo, pela perpetuação de palavras e
pensamentos preconceituosos que estão presentes na estrutura de nossa
sociedade e que são manifestados, na peça, por atos, ações, palavras e gestos dos
personagens.
Considerações finais
Neste artigo, refletimos sobre a caraterização do personagem Ismael,
demostrando que suas ações e, sobretudo, as informações que os outros
personagens apresentam sobre ele, nos conduzem a vê-lo como um "anjo negro",
ou seja, como um homem mau e cruel que causava medo e terror; o oposto, assim,
de Elias, que na peça ganha contornos de um “anjo” bom e puro.
Mesmo que no final da história uma das senhoras do coro afirme que,
novamente, com o relacionamento de Virgínia e Ismael, nasceria um novo filho do
casal, um “Futuro anjo negro” que morreria como os outros, acreditamos que a
imagem de um “anjo negro”, na peça, pode apresentar outros sentidos, não se
restringindo, assim, apenas à ideia de uma criança negra, que por morrer de forma
inocente e precocemente, poderia ser representada pela figura de um “anjo negro”.
A análise mostrou também que o conflito interno de Ismael em relação à sua
cor, além de motivar suas ações maldosas e cruéis, também conduziu, de certa
forma, ao desenvolvimento e resultado do conflito centralizador da peça,
identificado, inicialmente, na tensão silenciosa entre Ismael e Virgínia, e, depois, na
relação formada entre os dois juntamente com Ana Maria (Medeiros, 2010),
culminando em um fim trágico para os personagens.
Além disso, como fizemos a análise de apenas um aspecto da história, outros
tópicos e situações da peça foram deixados, de certa forma, de lado. Por isso, é
necessário ressaltar que reconhecemos a percepção, construída em
Anjo Negro
,
de que a maldade e a crueldade independem da cor da pele, que Virgínia, assim
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como sua tia, suas primas e o próprio Elias, agem com violência e crueldade ou
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