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Notas sobre o conceito de representatividade
Conrado Dess
Para citar este artigo:
DESS, Conrado. Notas sobre o conceito de
representatividade.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0206
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Conrado Dess
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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Notas sobre o conceito
de representatividade
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Conrado Dess
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Resumo
Olhando para o recente movimento que tem lutado por representatividade nas artes
nos últimos anos, o artigo propõe algumas reflexões acerca das implicações éticas,
estéticas, políticas e sociais que atravessam a representação de grupos sociais
minoritários no teatro contemporâneo. A partir da construção de uma compreensão
do conceito de representatividade dentro do campo das artes cênicas e de uma
análise de alguns dos seus modos de operação dentro e fora da cena, objetiva-se,
também, apresentar e levantar propostas de enfrentamento para artistas que
desejam criar sob uma perspectiva representativa, plural e emancipatória.
Palavras-chave
: Representatividade. Representação. Ética. Cena contemporânea.
Diversidade.
Notes on the concept of representativeness
Abstract
Considering the emerging of a new movement that advocates for self-representation
in the arts, this article brings some reflections on the ethical, aesthetic, political and
social implications that permeate the representation of minority social groups in
contemporary theater. Starting from the construction of an understanding of the
concept of representativeness within the Brazilian performing arts field and an
analysis of some ways it can operate in and out of theater, the article also presents
proposals for artists who aim to create under a representative, plural and
emancipatory perspective.
Keywords
: Representativeness. Representation. Ethics. Contemporary scene.
Diversity.
1
Este artigo integra a pesquisa de mestrado “Representações e representatividade na cena contemporânea:
notas sobre um atravessamento estético, político e social”, orientada pela Prof.ª Dra. Sílvia Fernandes e
financiada pela Fapesp através do processo 2018/26186-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo (FAPESP).
2
Revisão ortográfica e gramatical realizada por Daniela Andrade Moraes. Bacharel em Letras pela Universidade
de São Paulo (USP).
3
Doutorando em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Mestre e Bacharel em Artes Cênicas pela mesma instituição. conradodess@usp.br
http://lattes.cnpq.br/1487255687395914 http://orcid.org/0000-0001-9360-306X
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Notas sobre el concepto de representatividad
Resumen
Teniendo en cuenta el reciente movimiento que lucha por la representatividad en
las artes en los últimos años, este artículo propone algunas reflexiones sobre las
implicaciones éticas, estéticas, políticas y sociales que impregnan la representación
de los grupos sociales minoritarios en el teatro contemporáneo. A partir de la
construcción de una comprensión del concepto de representatividad dentro del
campo de las artes escénicas y de un análisis de algunos de sus modos de operación
dentro y fuera de la escena, el objetivo es también presentar y plantear propuestas
de confrontación para los artistas que deseen crear bajo una perspectiva
representativa, plural y emancipadora.
Palabras-clave
: Representatividad. Representación. Ética. Escena contemporánea.
Diversidad.
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Bem, minha gente, onde há tamanha algazarra
alguma coisa deve estar fora da ordem.
(Sojourner Truth)
4
Introdução
Principalmente na segunda metade da última década, foram inúmeras as
ocasiões em que grupos historicamente subalternizados
5
se manifestaram contra
a maneira como eram representados ou não representados na cena teatral
brasileira contemporânea. Um desses eventos aconteceu por ocasião de uma
apresentação do espetáculo
A mulher do trem
(2003), do grupo Os Fofos
Encenam, que aconteceria no Itaú Cultural, na cidade de São Paulo, em maio de
2015. Na obra, uma empregada doméstica negra era representada de maneira
cômica através do
blackface
, artifício considerado racista nos dias de hoje.
Enfrentando forte oposição de artistas e espectadores negros, a apresentação foi
cancelada e deu lugar a realização de um debate no qual foi discutida a questão.
Em 2016, uma ação similar aconteceu quando diversos grupos e artistas
protestaram contra a exibição da obra
Exhibit B
(2014), do artista sul-africano
branco Brett Bailey, na edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Recriando imagens de violência racial com atores negros, o trabalho foi acusado
de racismo em diversas partes do mundo e teve sua apresentação no Brasil
cancelada, segundo os diretores do festival, por questões orçamentárias.
Outro acontecimento de grande impacto foi uma intervenção feita por um
espectador negro durante uma apresentação do espetáculo
Entrevista com Stela
do Patrocínio
(2005), no ano de 2017. Criado pelo Núcleo do Cientista, o espetáculo
foi criticado por trazer a atriz branca Georgette Fadel interpretando a poeta negra
Stela do Patrocínio, o que levou o grupo a encerrar a carreira do trabalho após a
4
Parte do discurso
E eu não sou uma mulher?
, proferido pela abolicionista estadunidense Sojourner Truth
durante a Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio, no ano de 1851.
5
O termo subalterno é utilizado aqui conforme propõe a crítica literária Gayatri Chakravorty Spivak, que
retoma o significado atribuído por Gramsci ao se referir ao “proletariado”, ou seja, àquele cuja voz não pode
ser ouvida. Para a autora, o termo “’subalterno’ descreve as camadas inferiores da sociedade constituídas
por modos específicos de exclusão de mercados, de representação político-jurídica e da possibilidade de
adesão plena nos estratos sociais dominantes’” (Spivak, 2000, p. 20).
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temporada. Condenada por uns e apoiada por outros, a intervenção se tornou
centro de um fervoroso debate que se estendeu por dias nos jornais, círculos de
conversa e redes sociais, suscitando temas como a censura nas artes e os limites
éticos do artista e da representação na linguagem teatral (Dess, 2020).
Não se limitando ao campo do teatro, movimentações desse tipo se
repetiram também em outras linguagens artísticas ao longo dos últimos anos,
como ocorreu na estreia do filme
Vazante
(2016), da diretora Daniela Thomas. Na
ocasião, a obra que se passa no Brasil escravista foi criticada por trazer
personagens negros sem grande desenvolvimento e que serviriam apenas como
suporte para narrativas brancas. Em 2018, pulularam críticas contra a escalação
da cantora Fabiana Cozza para viver a matriarca do samba, Dona Ivone Lara, nos
cinemas. Acusada de ter a pele clara demais para representar a sambista, Cozza
acabou renunciando ao papel.
Tais mobilizações, contudo, não se restringem à perspectivas étnico-raciais,
mas englobam, também, demandas de outras minorias sociais
6
. Exemplo disso
foram os protestos encabeçados por artistas transvestigêneres
7
contra a
representação da travesti Gabriela que era feita por um ator homem cisgênero no
premiado espetáculo
Luis Antônio Gabriela
(2011), da Cia. Mungunzá. Após intensa
mobilização desse grupo, o ator Marcos Felipe e a companhia decidiram ceder o
papel de Gabriela para a atriz
trans
Fabia Mirassos.
Diante desse cenário de embates e reivindicações, concretiza-se a
compreensão de que a cena contemporânea deve se constituir também sob uma
perspectiva ética, priorizando a construção de um novo tipo de representação que
é calcada na emancipação através da presença, principalmente quando se trata
6
A noção de
minoria
não significa aqui uma fração percentual minoritária, mas é utilizada conforme proposta
pelo sociólogo Muniz Sodré, que a define como “um lugar onde se animam os fluxos de transformação de
uma identidade ou de uma relação de poder. Implica uma tomada de posição grupal no interior de uma
dinâmica conflitual. [...] Minoria não é, portanto, uma fusão gregária mobilizadora, como a massa ou a
multidão ou ainda um grupo, mas principalmente um dispositivo simbólico com uma intencionalidade ético-
política dentro da luta contra-hegemônica” (Sodré, 2005, p.11).
7
O termo
transvestigênere
foi criado pela transativista Indianare Siqueira com o intuito de englobar sob a
mesma discussão as identidades travesti, transexual e transgênero. Cunhado a fim de estabelecer um
espaço de trânsito para além de definições específicas de gêneros, roupas ou órgãos genitais, o termo abarca
todas, todes e todos os que se identificam nesse amplo espectro, estando ou não mais próximos de
determinadas especificações (Siqueira, 2015).
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da representação de grupos sociais minoritários. Tal demanda, por sua vez,
relaciona-se com aquilo que chamamos hoje de
representatividade
. É justamente
sobre a compreensão desse conceito e sobre o modo como ele pode operar no
campo da representação cênica que nos debruçaremos aqui.
Representatividade como conceito
De acordo com o dicionário
Michaelis
, o substantivo “representatividade”
significa “qualidade do que é representativo”. O adjetivo "representativo'', por sua
vez, tem como significados:
1. Que representa ou serve para representar; 2. Que envolve e tem relação
com representação; 3. Diz-se de organismo (sindicato, associação, etc.)
com direito reconhecido de representar um grupo, uma comunidade etc.;
4. Diz-se de sistema político em que a soberania é exercida por delegados
do povo, que este elege diretamente e que o representam (Michaelis,
2005).
8
Tais definições, no entanto, têm pouca eficácia no contexto das artes cênicas.
Quando se diz, por exemplo, que um espetáculo é importante para a
representatividade, do que estamos falando exatamente? O teórico e pesquisador
espanhol José A. Sánchez
9
(2017) destaca o conceito de representatividade como
um cruzamento das noções de “representação mental”
10
e “representação
mimética”, no qual alguém se torna imagem ou símbolo de algo. Para o autor, é:
O reunir os traços ou características que se consideram comuns de um
conjunto de coisas ou pessoas, ou que definem um grupo ou uma série
de coisas ou pessoas. Trata-se do alto grau de coincidência entre como
nos representamos mentalmente ou imaginariamente algo e a realização
dessa imaginação em um objeto, situação ou pessoa (Sánchez, 2017,
8
Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova geração, 2005. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php>. Acesso: 25 jan. 2021.
9
José A. Sánchez é professor, pesquisador, doutor em Filosofia e catedrático da Faculdade de Belas Artes de
Cuenca (UCLM). É diretor do grupo de investigação ARTEA e publicou diversas obras que tratam de temas
como ética e representação nas artes cênicas.
10
O autor destaca a expressão representação mental como o ato de “tornar algo presente com palavras ou
figuras que a imaginação retém. Trata-se de imaginar aquilo que não podemos sentir, conhecer ou
experimentar diretamente. Esse sentido de representação corresponderia a uma das possibilidades do
termo alemão ‘Vorstellung’’” (Sánchez, 2014, p.57).
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p.62).
A representatividade, nessa perspectiva, pode ser compreendida como um
conceito estético que se situa no âmbito da imaginação e da observação (Sánchez,
2017). Nesse entendimento, eu me imagino, represento-me mentalmente, e
minhas principais características nessa representação são encontradas,
coincidentemente, em um outro indivíduo. Esse indivíduo se torna, dessa maneira,
representativo da minha pessoa.
Quando falamos de uma coletividade, a representatividade se a partir
daquelas características que são percebidas comumente em um grupo, como, por
exemplo, a cor da pele. Nesse contexto, um ator negro pode ser visto como
representativo não por possuir todas as características da população negra, uma
vez que essa é plural e diversificada, mas apenas aquelas comuns ao grupo, sendo,
talvez, a mais significativa socialmente, a cor da pele. Do mesmo modo, quando
vemos uma atriz
trans
nos palcos, não estamos diante de alguém que traz todas
as características dessa população, mas, certamente, aquelas que interferem em
sua vida social de forma coletiva. Assim, aquilo que poderia, em primeira instância,
ser considerado essência, não passa, na verdade, da “condensação de um conjunto
de elementos significantes” (Sánchez, 2017, p.63). A particularidade desse processo
é que as características distintivas de tais grupos são justamente aquelas que
foram e são utilizadas para colocá-los em posição de subalternidade.
Paradoxalmente, são também as que hoje são reapropriadas e ressignificadas
através dos processos de luta e emancipação que são por eles empreendidos.
Nessa lógica, estamos diante de um processo estético no qual,
primeiramente, nos entendemos como coletividade a partir de certas
características comuns ao grupo do qual fazemos parte, como a cor da pele, o
gênero, a classe social ou o local de nascimento. Posteriormente, percebemos um
indivíduo que possui tais características e, desse modo, passamos a observá-lo
como representativo de nossa coletividade, ou seja, o modo como nos
representamos mentalmente coincide, de modo geral, com quem esse indivíduo
é.
No contexto brasileiro, entra também no âmbito da representatividade uma
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outra noção que não é um conceito estético, mas legal e político. Trata-se da
representação enquanto delegação, isto é, o falar pelo outro, o que se situaria no
âmbito da vontade e da ação (Sánchez, 2017). Na “representação delegada”
ninguém é representativo de um grupo, mas atua como representante. Esse
processo parte, primeiramente, de uma vontade: um grupo deseja eleger o seu
representante, o que pode acontecer por meio de votações, visibilidade social ou
do poder de liderança que um indivíduo adquire. Desse modo, um indivíduo pode
se tornar representante através de ações políticas propriamente ditas, como uma
eleição, ou de modo orgânico, a partir de um arranjo social. Em um segundo
momento, esse representante age, defendendo os desejos e necessidades desse
grupo. Como esse poder de “porta voz” é apenas delegado ao representante, essa
concessão, teoricamente, pode ser revogada caso ele pare de atuar em defesa de
seus representados.
A especificidade que envolve a questão da representatividade no Brasil é que
o uso coloquial e especializado do termo engloba tanto o âmbito estético quanto
o legal e político, situando-se próximo daquilo que Bobbio, Matteucci e Pasquino
(1998) chamam de representação como "espelho" ou representatividade
sociológica, sendo um conceito “mais sobre o efeito de conjunto do que sobre o
papel de cada representante. Ele concebe o organismo representativo como um
microcosmos que fielmente reproduz as características do corpo político” (Bobbio;
Matteucci; Pasquino, 1998, p.1102).
Partindo de tais perspectivas e considerando o uso cotidiano do termo,
podemos entender o conceito de representatividade, no contexto brasileiro, como
a qualidade que, ao mesmo tempo, gera e é gerada por um organismo
representativo quando esse adquire a capacidade de representar esteticamente,
politicamente e socialmente determinada coletividade, sendo essa coletividade,
na maioria das vezes, um grupo social minoritário. De outro modo, chamamos de
representatividade a operação que torna um representante, por exemplo, um ator
negro, capaz de representar a população negra, ou parte dela, em um espetáculo.
Nesse caso, observa-se que essa operação tem fundo sincronicamente estético e
político. Primeiramente, identifica-se nesse ator as características comuns dessa
coletividade e, depois, enxerga-se nele a legitimidade para falar por esse grupo, ou
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seja, para ali os representar.
É evidente, no entanto, que a posição do representante é algo que deve ser
cuidadosamente observado. Ainda que, em primeira instância, imagina-se que o
“possuir características de uma coletividade” garanta automaticamente algum
poder de representação, a legitimidade desse poder político parece depender de
outros fatores. Suponhamos, por exemplo, que um negro assuma a liderança de
uma instituição que visa combater o racismo, porém, ao invés de defender os
direitos e interesses da população negra, ele passa a fomentar e disseminar
práticas racistas. Nesse caso, esse líder possui características comuns dessa
coletividade, afinal de contas ele tem a pele preta e, possivelmente, experienciou
o racismo ao longo de sua vida. Suas ações, contudo, não servem à emancipação,
mas à opressão da população que ele deveria representar. Do mesmo modo,
vemos, muitas vezes, o poder hegemônico deturpando a ideia de
representatividade ao transformar, oportunamente, qualquer negro ou opinião
individual em uma representação da raça. Percebe-se que não é o “possuir as
características representativas de uma determinada coletividade” aquilo que
outorga a legitimidade para representá-la, mas os compromissos éticos e morais
que o organismo representativo assume com a emancipação da coletividade que
ele representa.
Quando falamos em coletividade talvez a primeira questão que caiba colocar
seja o fato de que, na prática, a representatividade se constrói “a partir da
hierarquização dos indivíduos em sua visibilidade social” (Sánchez, 2017, p.62). Na
sociedade, como a percebemos, os indivíduos dentro de qualquer grupo não
podem ser percebidos nas mesmas condições sociais. Mesmo quando falamos de
grupos historicamente subalternizados, como a população negra brasileira,
falamos de um grupo heterogêneo, formado por indivíduos mais ou menos
vulneráveis, com maior ou menor grau de visibilidade social e ocupando maiores
ou menores espaços de poder. Na prática, aqueles que se tornam o organismo
representativo tendem a ser os que ocupam algum grau de hierarquização
dentro da sociedade e desse coletivo, sendo a representatividade um fenômeno
que acentua ainda mais essa distinção.
Outro ponto a ser levado em conta é a dificuldade de se identificar com
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clareza quais seriam os critérios que definem as características comuns de um
grupo e que seriam levadas em consideração na constituição do organismo
representativo. Na prática, percebemos que essa operação costuma levar em
conta justamente as características pelas quais esses indivíduos são discriminados
e subalternizados, justamente por serem elas a origem dos pontos de conflito
social e político que mobilizam tais organizações. Ainda assim, esses critérios se
mostram bastante abstratos e subjetivos, estando muitas vezes sujeitos à
volatilidade das movimentações políticas e sociais e implicando em diferentes
modos de atuação dentro do sistema político:
Quais as características do corpo social que merecem ser espelhadas no
organismo representativo é naturalmente o primeiro quesito que se
coloca. Além das que são estritamente políticas e ideológicas, podemos
indicar as características socioeconômicas, profissionais, religiosas,
culturais, étnicas e raciais, e até as diferenças de sexo e o elenco poderia
continuar. Os sistemas eleitorais proporcionais foram um eficaz
instrumento institucional para realizar uma reprodução bastante fiel das
primeiras características. Quanto às outras, o grau de representatividade
que podemos encontrar nas instituições representativas é, de uma
maneira geral, bastante baixo. Os representantes tendem a ser diversos
dos representados em relação a estas outras características, salvo
quando uma delas se torna ponto fulcral de conflito político e é tomada
como bandeira por uma organização partidária. Neste caso, nascem os
partidos operários, agrários, confessionais, étnicos, feministas; mas estas
caracterizações bem marcadas no início, com o tempo sofrem
geralmente forte desbotamento (Bobbio; Matteucci; Pasquino, 1998,
p.1103).
Percebemos, assim, que, mesmo que ainda bastante imprecisa de modo
geral, a questão da representatividade é melhor esclarecida dentro do sistema
político do que no campo das artes. Isso acontece, porque na representação
política os limites desse fenômeno são mais facilmente vislumbrados. Aquele que
atua como representante não é, necessariamente, representativo do grupo que
está representando. Em teoria, um homem branco pode perfeitamente
representar os interesses de um grupo de mulheres negras, pois ele não é
representativo desse grupo, mas apenas está atuando nessa função. Atualmente,
contudo, tem-se entendido que características e vivências comuns podem se
tornar importantes ferramentas de luta também na representação política, o que
tem confundido a figura do organismo representativo com a do representante
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delegado. É o que acontece quando vemos a eleição para cargos executivos de
mulheres negras, pessoas
trans
, indígenas, que propõem defender as causas de
seus grupos. Nesses casos, sobrepõem-se a representação política e a
representatividade, visto que entra também em jogo o efeito estético que a
presença desses corpos causa nos regimes de visibilidade.
11
Pensar a representatividade dentro do contexto político e social é, nesse
sentido, uma ação que também demanda que olhemos para o modo como o
conceito de representação se instalou no ocidente nos séculos XIX e XX, isso é,
dentro de um projeto de modernidade que se baseava no humanismo, na civilidade
e na realização individual, mas que fracassou ao apostar em uma concepção de
humanidade que excluiu grande parte dos habitantes do globo (Borges, 2019). Na
ordem do capitalismo neoliberal e de seus tentáculos, não são todos os que
poderiam, conseguiriam ou mesmo teriam tempo para ocupar os espaços e, por
isso, necessitariam de alguém que os representasse. Nessa compreensão
eminentemente política, o conceito de representação carrega em seu cerne o
pressuposto da exclusão. Tal perspectiva, contudo, é a que se problematiza na
atualidade.
Hoje, aqueles “terrivelmente outros” (Borges, 2019, p.10) - negros, indígenas,
asiáticos, africanos, imigrantes, LGBTQs antes despojados da condição de
humanos, passam a reivindicar sua participação em todas as formas de
representação. Se são as representações que definem o vetor hegemônico do
mundo, são novas ordens desse fenômeno que agora são recobradas,
possibilitando a reconstrução dos imaginários que sustentam nossa vida social.
Falar de representação do modo como se deseja aqui é, assim, algo que faz
sentido se a considerarmos uma operação do tempo presente capaz de abarcar
corpos e visibilidades outras. É um conceito que, portanto, suporta a
possibilidade da pluralidade sem, inclusive, recorrer à ideia de representatividade.
Quando trazemos essa discussão para o campo das artes, e, mais
11
A expressão
regimes de visibilidade
é utilizada aqui em alinhamento com Foucault (1987), que a utiliza não
apenas para designar o que é visto, mas, sobretudo, o modo como algo se torna visível a partir de jogos de
poder. Dessa forma, quando analisamos elementos de um regime de visibilidade, analisamos os modos
como as práticas sociais, as instituições, os códigos morais, as relações de poder, atuam de maneira a
determinar a visibilidade de um grupo, estabelecendo aquilo e aqueles que são ou não vistos, bem como os
pontos de contato entre a vida política e social.
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especificamente, das artes cênicas, entramos em um território ainda mais
desestabilizador, justamente pelo fato de que a linguagem cênica tem como raiz
o fenômeno da representação estética. As formas contemporâneas de teatro, por
sua vez, adicionam a essa camada outras formas de representação, como a
representação política e a delegada, embaralhando os quatro âmbitos em que o
conceito de representação se instala: o âmbito da ética, da política, do
conhecimento e da estética (Sánchez, 2017). Soma-se, ainda, a esse panorama, as
novas configurações políticas e sociais que emergem da sociedade brasileira do
século XXI. Nesse cenário de incertezas e transformações, o papel do artista
adquire também força política e social, fazendo emergir os dilemas que têm
envolvido a representação do outro na cena nos últimos anos.
Representatividade em cena
A discussão que envolve a questão da representatividade nas artes cênicas
no Brasil de hoje se liga, em parte, à atual prevalência de uma compreensão do
teatro como prática social, isso é, como um fenômeno particular em sua essência,
mas indissociável da realidade social que o cerca. Tal compreensão, que já se fez
preponderante em outros momentos da história, coloca a cena não apenas como
algo que é atravessado pela sociedade, mas que também a atravessa, tornando as
representações que ali se constroem objeto de julgamento, crítica, reiteração ou
contestação pública, dependendo dos anseios ou demandas de um povo em um
determinado momento. Além disso, vemo-nos, também, diante de um modo de
organização cênica que tem se caracterizado pela desestabilização do modelo de
representação dramático e pela inserção da ação, da situação e das temáticas
sociais.
Tais modos de organização foram identificados e conceitualizados por
diversos teóricos da área ao longo das últimas décadas, como Maryvonne Saison
(1998), Hans-Thies Lehmann (2008) e Josette Féral (2015); e compreendidos dentro
de noções como teatro pós-moderno, teatro pós-dramático, teatros do real, ou,
mais recentemente, teatro performativo. O impasse que daí decorre se centra
justamente na capacidade de tais noções de, através de seus temas e dispositivos,
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embaralhar e desestabilizar instâncias do ato da representação, bem como o papel
do artista cênico, o que, por sua vez, acaba alimentando uma discussão que
sobrepõe conceitos que, em primeira instância, não possuem modos de atuação
similares.
Sánchez (2017) destaca a ocorrência de uma ambivalência de significados que
coloca sob o conceito de representação tanto a ideia de produção quanto a ideia
de reprodução. Nessa perspectiva, ao representarmos algo, tornamos novamente
“presente” algo ou alguém que realmente existiu no passado ou, então, uma ficção
que foi codificada de modo verbal ou visual previamente. Nesse caso, estamos
realizando uma operação de “re-presentação”, ou seja, uma reprodução. Em
outros casos, ao representarmos algo, não estamos repetindo ou atualizando
coisas do passado, mas produzindo mentalmente imagens, ideias ou situações
imaginadas que não aconteceram e que, portanto, não tem correspondência com
referentes anteriores. Estaríamos, então, fazendo uma “presentação”.
Para o autor, tal ambivalência se faz particularmente evidente em uma
modalidade específica de representação mimética na qual “o que se representa
não é um objeto, imagem ou ideia, mas uma pessoa, um conjunto de pessoas ou
um evento protagonizado por pessoas” (Sánchez, 2017, p.59). No teatro, é
justamente o corpo do ator que se coloca como veículo dessa representação, o
que estabelece um processo em que a representação de uma pessoa é construída
a partir do corpo de outra. É o que Sánchez define como “representação
dramática”. A ambivalência destacada “se acentua quando o corpo subjetivo do
ator resiste a qualquer tentativa de transparência da representação: o ator não
pode ser apagado para ser personagem, sua presença não pode ser eliminada em
benefício da representação” (Sánchez, 2017, p.60). Segundo o teórico, é daí que se
originam grande parte dos dilemas e polêmicas que envolveram a representação
no campo das artes cênicas durante o século XX, muitas delas ligadas diretamente
à ética da representação.
Quando falamos a respeito da representatividade no contexto das artes, é
necessário pontuar que estamos falando sobre os dilemas da presença e da
materialidade do corpo. Nessa perspectiva, não é possível, por exemplo, reclamar
representatividade em uma pintura na qual um pintor branco retrata uma mulher
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negra, justamente pelo fato de que o corpo da mulher negra não está
materialmente presente ou ausente ali. Sua representação se faz presente em
nível subjetivo, a partir de um objeto criado por meio do movimento dos pincéis e
da organização das tintas sobre uma tela. Ao observarmos esse corpo na pintura
concluída, vemos uma representação “transparente”, sem entraves, uma
representação que se completa e se encerra, uma vez que a materialidade que a
sustenta a tinta e a tela permite plenamente ao observador tornar esse corpo
presente em nível subjetivo. É evidente que poderíamos contestar os modos como
a mulher negra foi representada pelo artista branco, mas, neste caso, não
estaríamos mais falando exatamente de representatividade, embora ainda
estejamos no domínio da representação. Se, no entanto, deixássemos de olhar
para a obra e começássemos a questionar a presença de artistas negras em uma
exposição, entraríamos novamente no âmbito da presença e, portanto, da
representatividade.
Quando falamos do espetáculo
Entrevista com Stela do Patrocínio
, no qual
uma atriz branca representa uma poeta negra, adentramos em um campo no qual
a mediação se a partir da materialidade do corpo. Assim, quando observamos
a atriz Georgette Fadel representando Stela do Patrocínio, vemos presente a
materialidade de seu corpo, de sua pele branca, bem como de seu corpo subjetivo.
A presença do corpo subjetivo, isso é, de seu ser, de suas ideias, de sua ideologia,
de sua história, de tudo aquilo que a torna humana, entra também no jogo da
representação, criando “obstáculos” e “ruídos” que, por exemplo, não existem
quando falamos de uma representação construída a partir de tintas e papéis. O
corpo físico e subjetivo de Fadel interfere, dessa maneira, no processo de
determinação do “objeto” Stela pelo espectador, ou seja, a representação
dramática da poeta nunca se estabelece plenamente, pois o público não consegue
suprimir o corpo da atriz que está ali na sua frente.
Nessa perspectiva, não seria possível falar de representatividade se a
representação de Stela do Patrocínio se construísse plenamente, no entanto, a
partir do momento em que vemos também o corpo físico e subjetivo de Fadel
produzindo novas representações, voltamos ao campo da presença, da
materialidade do corpo, e, portanto, da representatividade.
Notas sobre o conceito de representatividade
Conrado Dess
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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O teatro contemporâneo tem se caracterizado, justamente, por possibilitar
que o artista atue simultaneamente nos campos da produção e da reprodução,
tornando-se um
ator/performer/representante
que navega pela representação
dramática, como quando falamos de personagens ou fábulas; pela representação
estética, quando falamos de imagens ou de ação; ou pela representação política,
quando ele resolve denunciar mazelas sociais, propor situações ou abordar as
complexidades do sujeito contemporâneo a partir de suas vivências. Estamos,
desse modo, diante de um modelo cênico no qual a representatividade passa a
ser mais ou menos compatível, dependendo do tipo de representação que se
propõe.
Na ocasião em que as representações propostas no espetáculo sobre Stela
foram contestadas, muitos afirmaram que aquilo era incoerente, pois a essência
do teatro estaria justamente no ato da representação do outro, como exemplifica
o comentário abaixo retirado de uma rede social:
Será que esta voz dada por Georgette Fadel à Stela do Patrocínio deve
ser calada simplesmente porque ela não tem a cor certa na pele? Então,
não mais no teatro um homem poderia representar uma mulher, quando
ele fala de injustiça? E quem dará voz a estas figuras que não são
representadas? [...].
12
Esse questionamento ignora o fato de que estamos falando de
representações que, no atual contexto sociopolítico, adquirem a capacidade de
extrapolar o universo da personagem e, até mesmo, do teatro, uma vez que elas
produzem novos e importantes significantes para a sociedade. Falamos de uma
representação que se torna política ao minimizar a perspectiva racial que
atravessa a existência de Stela, ao apagar a cor da pele de uma figura histórica
que é capaz de representar toda uma coletividade. Trata-se, portanto, de uma
representação que usurpa justamente a principal característica representativa da
população negra, aquilo que a mobiliza coletivamente. Nesse contexto, a pergunta
apontada no comentário se mostra essencial: no atual momento, quem teria
legitimidade para dar voz às figuras que não são representadas? Talvez, elas
12
Comentário retirado de uma postagem que discutia o acontecimento na rede social
Facebook
. Jul. 2017. O
nome do autor e o endereço da publicação foram suprimidos por razões de confidencialidade. Acesso: 21
fev. 2021.
Notas sobre o conceito de representatividade
Conrado Dess
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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mesmas.
Sánchez pontua que as sociedades radicalmente democráticas serão aquelas
em que as representações não terão o privilégio absoluto da verdade, mas serão
concebidas como “modos transitórios de ser ou como meios temporais de
comunicação” (2017, p.27). Assim, a legitimidade das representações não
dependerá de um critério de verdade ou transcendência, mas de acordos políticos
posteriores a debates e conflitos. As propostas de acordo que se apresentam
atualmente são justamente aquelas que reivindicam que corpos historicamente
subalternizados tenham a possibilidade de contar suas próprias histórias,
reescrever suas próprias narrativas, representar os personagens que trazem
características representativas de suas coletividades. Isso acontece,
primeiramente, pois começa-se a compreender que as representações
construídas a partir da presença têm maior poder de emancipação, uma vez que
elas fomentam processos de humanização e desestabilizam regimes de
invisibilidade e imaginários subalternizantes. Em um segundo momento, falamos
também de uma ação afirmativa, na qual minorias podem encontrar
oportunidades de trabalho e formação, visto que esses grupos têm o acesso
estruturalmente dificultado a tais espaços.
Encontramo-nos, portanto, diante de um momento histórico no qual ecoam
as percepções de Rancière (2012) de que a política e a emancipação só começam
verdadeiramente quando aqueles destinados a permanecer na invisibilidade
começam a se afirmar como coparticipantes de um mundo comum. Tendo em
vista que, nas últimas décadas, o teatro contemporâneo tem se aproximado cada
vez mais das temáticas sociais, buscando denunciar injustiças e propor formas de
enfrentamento estético e político, começa a se esboçar um cenário no qual essa
discussão se tornará cada vez mais presente. Nesse debate, mostra-se
determinante uma compreensão das representações como instrumentos a partir
dos quais se constroem ou se destroem as relações de poder. Se, de um lado, elas
podem ser utilizadas para a manutenção dos sistemas dominantes, de outro, elas
podem ser também “um procedimento que possibilita as simbolizações dos
outros invisibilizados por presenças totalizadoras” (Diéguez Caballero, 2016, p.182).
Nesse contexto, é a decisão ética do artista que determinará como as
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representações que ele propõe serão percebidas dentro do contexto sociopolítico
que se impõe.
Ética e moral na representação do outro
Para Sánchez (2017), a ética é algo que se insere no campo da ação. É aquilo
que se coloca em jogo quando devemos tomar decisões que afetam outros e está
intrinsecamente ligado à liberdade e à capacidade individual de escolha de um ser
humano sobre seu modo de agir em relação ao outro quando se encontra diante
de uma situação. A moral, por outro lado, se ligaria à dimensão normativa, aos
códigos, relacionando-se com o comportamento humano diante de juízos do bem
e do mal formulados e condicionados socialmente por instituições, como a igreja
ou a academia.
Nesse entendimento, encontramo-nos diante de uma decisão ética quando
temos que decidir como agir em uma situação em que nossas escolhas afetam
outras pessoas. Nesses momentos, não somos amparados por um código exterior
que sinaliza o que é certo e errado ou que define o modo como deveríamos agir
perante a sociedade. A moral, por outro lado, é necessária para estabelecer os
parâmetros da nossa convivência social sem que as liberdades individuais sejam
anuladas. Sem limites morais estabelecidos e compartilhados, estaríamos diante
de comportamentos que impossibilitariam a relação e a comunicação efetiva.
Assim, “os códigos morais são necessários naqueles âmbitos em que os atores-
representantes trabalham em relação com pessoas (ou interesses de pessoas),
em que não atuam em representação, mas são eles mesmos” (Sánchez, 2017,
p.28). A ética, por outro lado, “opera nas decisões de ação e atuação não
determinadas por limites morais ou legais ou quando os limites morais e legais
entram em conflito com situações específicas que requerem ações urgentes”
(Sánchez, 2017, p.28).
Levando essas reflexões para o teatro, percebemos que os códigos morais
podem organizar ou direcionar o que é produzido na cena apenas naqueles
momentos em que o
ator-performer-representante
se situa fora do âmbito da
representação dramática, isso é, quando ele, por exemplo, não interpreta um
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personagem. No campo da representação dramática aceitamos que personagens
tenham comportamentos imorais, no entanto, o mesmo não é tolerado de um ator
que se coloca em cena como ele mesmo, que, ao invés de representar, apresenta-
se. A ética, por sua vez, constrói-se justamente nesse entremeio, nessas fissuras,
nas quais o artista não é “protegido” pela representação, nem guiado por um
código moral, ou seja, quando ele não pode contar com ninguém além de si
mesmo para definir como vai agir em relação ao outro.
O modelo cênico contemporâneo, como destacado, tem se caracterizado
por situar o
ator-performer-representante
nesse terreno instável, no qual se
navega entre a representação estética, política e social; em que se deseja
denunciar opressões, injustiças e mazelas sociais; em que se atravessa
personagens, mas também a si mesmo; em que se aposta na ação, mas também
na situação. Por se apoiarem nesses “cenários liminares” (Diéguez Caballero, 2016),
obras e artistas de teatro contemporâneo tendem a se colocar mais
frequentemente em situações de fissura, nas quais a ética entra em jogo, o que
os impossibilita de se utilizarem da “salvaguarda da representação” ou dos códigos
morais para rechaçar uma percepção ética de suas ações.
A isenção de uma dimensão ética nas ações do campo da arte é a base do
discurso que vem sendo bastante utilizado quando um artista é criticado pela
forma como agiu na condução de um trabalho. Esse discurso pertinentemente
sublima o fato de que a forma como você decide representar o outro no âmbito
da prática é uma decisão ética. A escolha de um tema para a produção de um
espetáculo também é uma decisão ética, assim como a maneira como você reage
quando alguém interrompe o seu espetáculo, a decisão entre alterar ou não uma
cena, ou a escolha entre encerrar ou não uma temporada de um determinado
trabalho. Não existe código moral que possa nortear essas decisões, mas apenas
a ética que se manifesta na ação de uma pessoa ou de um grupo diante de uma
situação que afeta outras pessoas.
Quando falamos de ética, é necessário pontuar que, por se manifestar no
campo da ação, falamos também do corpo. No teatro, é justamente a dimensão
do corpo em cena, do indivíduo em relação com o outro, da capacidade de afetar
e ser afetado através da presença, que imbricam a esfera da ética, pois “a presença
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se constrói na esfera social, no espaço das representações e da linguagem, no
triplo ato (eu para mim, eu para outro e outro para mim), onde se constrói a ética”
(Diéguez Caballero, 2016, p.187), como reforça também o pesquisador Óscar
Cornago:
Corpo e ética aparecem como dois espaços intimamente ligados. O ser
se encontra definido em termos éticos devido à sua capacidade de afetar
e ser afetado, uma abordagem sensorial paralela à da filosofia do diálogo.
[...] Ao contrário do transcendental da lei moral, a ética se refere a uma
tipologia de modos de existência imanentes, de atitudes decorrentes da
relação real com o outro, da capacidade de afetar e ser afetado por
alguém que se encontra aí, fisicamente. [...] A capacidade de ser afetado
nasce da dimensão ética de si mesmo, e [...] isso se traduz na potência
de atuar (2008, p.20).
Entrar em cena representando dramaticamente uma figura ou personagem
que traz marcações sociais como gênero ou raça se configura como uma ação
ética que toca a representatividade, pois o corpo do ator ou da atriz acaba
afetando um outro que representa uma coletividade. Nessa perspectiva, quando
Georgette Fadel entra em cena como Stela, a ética se constrói no corpo da atriz
em relação com o espectador, na troca que acontece durante a prática, nos afetos
que são construídos e compartilhados durante esse encontro. Nessa operação, no
entanto, o corpo de um espectador que carrega marcadores sociais passa a atuar
representativamente, convertendo-se em um corpus político que torna “presente”
todo um coletivo. A prática e, portanto, a ética, passa a se construir, então, entre
o corpo de Georgette e o
corpus
político representado por esse espectador, entre
a representação construída pela atriz e os corpos de uma coletividade que se
ou não representada ali.
Percebemos, dessa maneira, que quando falamos de corpos socialmente
marcados, minorias sociais ou grupos historicamente subalternizados, falamos de
uma condição ética, estética, política e social muito específica, na qual o “atuar
representativamente” tende a estar sempre atrelado. Diante desse cenário, não
parece ser possível, neste momento, que uma atriz branca interprete uma
personagem negra sem que essa personagem atrele representativamente toda
uma coletividade. Do mesmo modo, não parece ser possível que um ator negro
entre em cena, considerando que a cena é um espaço de poder e visibilidade, sem
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atrelar o poder representativo de seu corpo e de sua voz. Assim, a ética deixa de
ser um processo que se apenas entre um corpo e outro, para se construir,
também, entre um corpo e um
corpus
.
Intuo que essa é uma condição transitória, uma particularidade do momento
histórico que estamos vivendo, no qual o subalternizado tem finalmente
começado a ascender a alguns espaços de enunciação e, por conseguinte, quebrar
o lugar da subalternidade. Considerando que é através de um modo de
organização coletivo, de uma mobilização pública, que esse processo tem se
construído, torna-se impossível que a dimensão coletiva que impulsiona o
processo representativo seja obliterada.
Na ocasião em que o espetáculo
Entrevista com Stela do Patrocínio
foi
criticado, esses foram alguns comentários sobre o ocorrido que foram postados
na rede social
Facebook
13
:
[...] Concordo total com Georgette Fadel e ativistas: o movimento negro
tem todo direito de voz neste momento. É chegada a hora de fazer justiça
a direitos do negro neste país. Mas a quem devemos reclamar essa
justiça? Não será aos detentores do poder? Foi dito ali que Georgette
Fadel detém "privilégios". Acho que ela detém "talentos", acima de tudo.
Atacar Georgette Fadel e Lincoln Antonio porque são brancos e decidiram
representar a vida de uma mulher negra? treze anos eles se
dedicaram a reconstituir teatralmente a trajetória dessa poeta negra
internada na Colônia Juliano Moreira, em parceria com o livro de
Stela/Viviane Mosé. Uma ativista chegou a dizer ao final que "apesar de
tudo, o espetáculo não é uma merda". Não, não é..., é somente genial.
Outro questionou sobre Fadel pintar a cara de branco. Ela explicou então
que Stela fazia isso também, de uma maneira xamânica. Outro
interrompeu a cena para bradar do palco que "O EGITO É NEGRO". Sim,
mas que exemplo deslocado e infeliz, pois o império egípcio fez trabalhar
até a morte milhões de escravos judeus e de outras etnias, a fim de
erguer aqueles monumentos. VOZ AO MOVIMENTO NEGRO, MAS NÃO À
CENSURA, SEJA ELA DE ONDE VIER.
Isso é um atentado à liberdade de expressão, e não uma causa
consistente. É passível de punição nos termos da lei, no Brasil como em
qualquer país civilizado.
Pra mim, não cabe "NÃO" à arte. Cabem consequências, inquietações que
partem dela ou trazem à ela. O escutar deve sempre acontecer,
constantemente, mas nunca deve interromper a arte. Sempre que um
artista é interrompido, perdemos. E isto é cada vez mais constante. É
13
Os excertos, todos do mês de julho de 2017, consistem em publicações ou comentários de publicações que
discutiam o acontecimento. O nome dos autores e o endereço das publicações foram suprimidos por razões
de confidencialidade. Acesso: 21 fev. 2021.
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preciso também se atentar a isto.
Para além do modo como a interrupção do espetáculo aconteceu, das
acusações de censura ou da discussão se Georgette pode ou não representar uma
mulher negra, o que essa polêmica revela é a persistência de uma visão que não
concebe o teatro como prática ou, mais especificamente, como prática social. É
justamente por inserir-se no campo da prática, por situar-se em um momento de
transformação social; por trazer à cena temas conflituosos e pertinentes a grupos
sociais minoritários, como o racismo e saúde mental; por colocar sua identidade
e seu corpo subjetivo em cena, que Georgette e os demais artistas envolvidos no
trabalho lançam o espetáculo à esfera social, ao lugar onde a representação se
torna “um momento do pensamento, da produção ou da ação, e não o lugar onde
pensamento, produção e ação são confinados” (Sánchez, 2017, p.19).
Nessa perspectiva, o teatro volta a ocupar um lugar semelhante ao da ágora
grega, alcançando um alto grau de conexão com a sociedade. É exatamente esse
o lugar onde a ética se faz presente. Dessa forma, não deveria ser um espanto o
fato de as ações dos artistas passarem a ser “julgadas” por uma perspectiva ética.
O primeiro ponto dessa discussão é que caberia sim um NÃO à arte, como caberia
a qualquer outra manifestação política, estética ou social, caso os representados
considerem que um ato serve à sua opressão ou que um artista não atuou
eticamente. Tal ponto, primeiramente, valida a discussão e a própria contestação
de obras teatrais que se inserem nesse entremeio.
Um segundo ponto que a discussão levanta são os limites das
responsabilidades éticas dos artistas:
Os artistas têm manifestado posições diversas a respeito da
responsabilidade ética. Para alguns, a prática artística é incompatível com
a responsabilidade ética, porque essa interditaria a liberdade do indivíduo
em sua experimentação com o sensível. Para outros, o artista,
precisamente por manifestar publicamente a singularidade, deve
defender uma posição ética, confrontada com a moralidade
convencional, mas também com a amoralidade (Sánchez, 2017, p.31).
No entendimento de Sánchez, essa primeira perspectiva, que é muito
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reproduzida nesse tipo de debate, parte do pressuposto que toda reflexão ética
na atualidade é condicionada pela religião ou pela ideologia política, o que se
aproxima mais, na verdade, do conceito de moral. Tal posicionamento, contudo,
parece tentar mascarar a dimensão social da prática artística. É evidente que uma
obra de arte constitui um arranjo particular em sua essência. Esse arranjo, no
entanto, é atravessado por representações subjugadas a uma sociedade da qual
ele faz parte, tornando-o indissociável de uma dimensão ética. De fato, a ética, ou
mesmo a moral, condicionada pela religião ou pela ideologia política são
plenamente capazes de limar da obra de arte sua capacidade de produção de
novos e próprios significantes, uma vez que não remeteriam à transitoriedade da
representação, mas à verdades transcendentes que não foram elegidas
voluntariamente pelos sujeitos envolvidos na prática. No entanto, assim como a
arte requer liberdade, a ética pressupõe liberdade, sendo ambas refratárias a
códigos e limites que não sejam estabelecidos através de acordos e debates
conduzidos de maneira democrática (Sánchez, 2017). Se os acordos antes
estabelecidos excluíam grande parte da humanidade do direito à representação e
da própria noção de humano, são eles os que agora são revisados, reclamando
uma readequação dos limites éticos e morais necessários para uma convivência
igualitária no século XXI.
Diante dos inúmeros protestos que ocorreram nos últimos anos, fica evidente
que estamos diante de um movimento de transformação social, do qual a arte
evidentemente não consegue escapar. Se um grupo que é representado diz que
um artista não deveria estar na posição de representante, talvez seja o momento
de agir eticamente e atender às demandas desse grupo. Afinal de contas, qual é o
fim de um artista que decide abordar um tema de profunda nevralgia social em
sua obra? Contribuir para o fim da injustiça social? Trazer visibilidade? Combater
a discriminação? Provocar a reflexão? Pura experimentação estética? A questão
tem fundo intencional, pois o desejo ou a necessidade de abordar um determinado
tema, através de uma determinada linguagem, nasce de algum lugar. Para um
artista cuja verdadeira intenção é apenas mostrar sua atuação virtuosa ou lograr
dinheiro e prêmios, a perspectiva ética não faz a menor diferença. Ele pode
perfeitamente ignorar os protestos e seguir em frente com seu objetivo. Para o
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artista que deseja colocar sua arte como objeto de transformação social, capaz de
mover a sensibilidade e mobilizar o pensamento de maneira emancipatória,
certamente a percepção daquele que é representado deveria importar.
Se no sistema político, no qual os limites dessas funções são mais bem
estabelecidos, grupos minoritários escolhem seus representantes considerando
a importância de que o organismo representativo seja um microcosmo que carrega
as características do corpo político, é importante que os artistas que desejam
representá-los levem em consideração essa abordagem. No sistema político,
esses grupos ainda têm o poder do voto para eleger aqueles que irão representá-
los. No caso das artes cênicas, a responsabilidade do
artista-performer-
representante
é ainda maior, pois a fruição da experiência teatral demanda uma
relação de afeto com o público. Ao decidir criar uma obra, mesmo nas ações ditas
meramente estéticas, o artista gera afetos e ações que implicam na vida social,
estabelecendo, necessariamente, vínculos éticos com o espectador. A isso, soma-
se, ainda, a dimensão ética que emerge da obra em si, visto que, no teatro
contemporâneo, as obras tendem a colocar em cena “a atitude pessoal dos
artistas, suas considerações a respeito do trabalho que estão realizando, sua
condição de criadores e sua relação com o entorno social e político” (Cornago,
2008, p.4).
É notório que o medo de protestos, ataques nas redes sociais e
“cancelamentos” tem mudado a percepção dos artistas a esse respeito. Seja por
medo ou por consciência, seriam poucos os artistas/atores/atrizes brancos que
arriscariam representar uma figura histórica negra nos dias de hoje. Isso não
sinalizaria uma vitória da censura, uma vez que grupos subalternizados não têm
essa capacidade de atuação, justamente porque a censura pressupõe uma relação
de poder. Indica, por outro lado, a construção de novos acordos éticos e morais.
Acordos não mediados pela religião ou pela ideologia política, mas legítimos e que
se constroem como resultado de debates políticos efetivados.
Imaginando futuros possíveis
Diante da emergência das discussões que envolvem pautas identitárias e
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questões da representatividade, crescem também aqueles que se apresentam
críticos a essas perspectivas. Na esteira de um pensamento universalista derivado
de uma certa percepção do marxismo, são muitos os que hoje reacendem uma
improfícua dualidade entre universalismo e particularismo, como pontua a
jornalista e pesquisadora Rosane Borges:
Presos a uma concepção (decadente) legada pela modernidade, os que
caem nessa armadilha (universalistas versus identitaristas) reduzem as
reivindicações de grupos historicamente discriminados a uma questão
específica, identitária, como se identidade fosse coisa pouca. Pior:
acusam esses grupos de desviarem a luta fundamental (contra o
capitalismo, contra as estruturas) para caminhos curtos, adiando ou
inviabilizando as mudanças necessárias, que ganhariam força quando
levadas adiante por sujeitos indistintos, sem marcadores de raça, gênero
ou orientação sexual, entre outros (2019, p.10).
O que essas perspectivas tendem a não levar em consideração são as
condições sociais muito distintas em que os indivíduos se encontram na
sociedade. É evidente que essa disparidade é, antes de tudo, fruto do capitalismo,
do patriarcado, do colonialismo. No entanto, é urgente combater também as
diferenças e opressões que colocam determinados grupos em um grau de
extrema vulnerabilidade, no qual o que está em jogo é a sobrevivência imediata
diante da incerteza de estar vivo ou morto, não em um futuro distante, mas daqui
a cinco minutos, quando, por exemplo, um jovem negro precisa sair de casa para
ir ao mercado.
É diante desse panorama que recai sobre os “intelectuais pós-coloniais”
(Spivak, 2010)
14
, aqui materializados na figura do artista cênico contemporâneo, a
necessidade de ampliação da capacidade de escuta e reflexão. Não é exatamente
que os artistas tenham seu direito de livre criação interditado, mas é que agora se
materializa um movimento que almeja deixar claro que as representações que
cada um produz têm impactos na vida do outro. E ocorre que esse outro pode não
estar feliz com tais impactos e resolve utilizar seu direito de se opor a eles
14
Gayatri Chakravorty Spivak é teoria, crítica literária e considerada uma das intelectuais pós-coloniais de
maior influência na atualidade. É professora da Universidade de Columbia e membro fundadora do
Institute
for Comparative Literature and Society.
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publicamente.
Ignorar esse fato utilizando-se da falácia da “liberdade da arte” nada mais é
que tapar os ouvidos diante da fala do outro, diante de quem o outro é, o que
certamente não é proibido, mas incompatível com os modelos de arte que visam
transformações éticas, estéticas, políticas e sociais. Tal modo de atuação resvala
na precariedade de um pensamento intelectual que se autoatribui a tarefa de falar
pelo outro como forma de construir um discurso de resistência. Ao transformar o
outro apenas em objeto de conhecimento e investigação, esses intelectuais não
estão realmente oferecendo ao subalterno um espaço de enunciação ou escuta,
mas, sim, reproduzindo mecanismos de silenciamento e estruturas de poder e
opressão (Spivak, 1990).
Ignorar o fato de que uma obra de arte em teoria emancipadora pode
reproduzir estruturas de opressão é um luxo que artistas em posição de
privilégio podem se dar. E muitos não se envergonham de fazê-lo. Nesse contexto,
é a decisão ética de cada um que está em jogo. Ao se utilizar da potência do outro,
que tipo de diálogo é possível estabelecer? Ao me utilizar dos privilégios da minha
própria condição de representante, que tipo de afetividade é possível propor? É o
que questiona Sánchez ao refletir sobre a legitimidade da arte dramática:
Um ator profissional pode contar a vida de uma pessoa qualquer melhor
que essa pessoa. E isso outorga ao ator uma representatividade que
deriva da condição de ser ele um profissional da atuação. Mas é uma
representatividade falsa [...], pois está geralmente baseada no artifício e
na aparência e, muito poucas vezes, em consenso e acordo. O ator
representa o outro, mas representa, em geral, também a si mesmo.
Contribui sua representação para o empoderamento da pessoa
representada e do coletivo que representa ou do qual é representativo?
Contribui, de algum modo, para produzir as condições sensíveis para um
potencial empoderamento? [...] Pode-se ser representativo sem
representar politicamente? Pode-se exercer a representação sem
assumir um poder não outorgado? A legitimidade da arte dramática,
como a legitimidade da política, baseia-se em uma decisão ética, em uma
devolução constante do poder àqueles cuja potência se usa. Isso é assim,
pois nem as artes cênicas nem a política existiriam sem os outros
(Sánchez, 2017, p.97).
Talvez a dimensão que hoje esteja enfraquecida, não apenas no campo das
artes, mas na sociedade de modo geral, seja justamente a dimensão do outro.
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Somos seres sociais. Necessitamos de relações, trocas e afetos. E tendemos a
fazer essas trocas com aqueles que estão perto de nós, com quem nos
relacionamos e que possuem o nosso afeto. Na experiência de um espetáculo,
porém, nos dispomos a estabelecer relações com pessoas que, a princípio,
desconhecemos. A cada apresentação, novos afetos são construídos entre público
e público, público e artistas e artistas e artistas. É um tempo curto, porém no qual
as camadas sensíveis são afetadas e transformadas de modo profundo,
interferindo de maneira muito mais intensa em nossa sensibilidade. O resultado
disso é que as representações e as relações construídas nesse breve instante
acabam tendo poder de afetar de modo infinitamente maior todas as outras
camadas de nossa vida social. A moldura da teatralidade, da experiência coletiva,
das relações que se estabelecem de maneira fulminante têm, assim, o poder de
potencializar, como uma lupa, as questões que ali se manifestam. É por essa razão
que tanto as experiências de consenso como as de dissenso tendem a atingir
níveis tão inflamados quando falamos da arte da representação.
Hoje, são muitos os movimentos que condenam, criticam e protestam contra
representações que os afetam de maneira negativa. Cabe àqueles que estão do
outro lado do prisma refletir efetivamente sobre o que se deseja construir ou
destruir com sua arte, porque, no fim, criar algo que agride ou não outras
pessoas é uma decisão que está nas mãos de cada um.
Muitas críticas direcionadas a tais protestos alegam que eles se baseiam na
censura, no cerceamento e na divisão. Certamente esses movimentos ainda não
se estabeleceram de maneira perfeita. Tampouco já encontraram seu modo mais
efetivo de atuação. Por outro lado, é necessário pontuar que eles são justamente
uma resposta à censura, ao cerceamento e à divisão e, talvez por ainda estarem
em seu estágio inicial, tendam a espelhar, de algum modo, a forma do inimigo. Por
mais que possam parecer violentas as manifestações que agora acontecem, elas
não podem ser compreendidas senão como resultado de uma violência maior.
15
15
Em
A força da não violência
(2021), Judith Butler empreende importantes reflexões acerca das contradições
que atravessam o uso instrumental da violência como meio para combate da própria violência. Para a autora,
tal modo de atuação circunscreve a luta por igualdade dentro do campo da violência, provocando
decorrências capazes de gerar, justamente, mais violência estrutural e sistêmica. Empreendendo uma crítica
ao individualismo e resgatando a relacionalidade que permeia nossos laços sociais, Butler defende, como
contraponto, a não violência como um modo de resistência ativo, calcado na ética e fundado no cerne do
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Por outro lado, muitas das manifestações em prol da representatividade
tendem a tratá-la como uma espécie de representação qualificada ou moralmente
superior, o que pode culminar na interdição do diálogo e, por conseguinte, na
construção de novas hierarquizações e relações de poder. Do mesmo modo,
de se atentar também para o uso instrumental desse conceito, visto que tal
abordagem poderia abrir brechas para que ele seja utilizado como ferramenta de
opressão. Poderíamos dizer, por exemplo, que um presidente racista, machista e
LGBTfóbico pode atuar representativamente, empoderando uma camada da
população que se enxerga nele representada.
Estabelecendo aqui um paralelo com a discussão da violência como
instrumento trazida por Judith Butler em
A força da não violência
(2021), pensar a
representatividade como um meio para a emancipação requer que estejamos
sempre atentos para não torná-la um fim em si mesmo. Pensá-la como um
instrumento da emancipação, pressupõe que ela seja orientada por uma intenção
clara e permaneça dessa forma durante todo o curso da ação, que
necessariamente deve ter um fim. Tal compreensão nos indica que olhar para a
representatividade é algo que necessariamente requer que consideremos outras
ações emancipatórias que devem estar agregadas, além de diversos outros
fatores, como: quem é o representante, o modo como ele age, a maneira como
suas ações podem permitir o acesso de outros e quais futuros poderemos
construir e imaginar através desses processos. Assim, como um fenômeno em
constante transformação, a luta por representatividade deve ser compreendida
como uma estratégia de curto prazo, como algo que se manifesta em caráter de
urgência, visando modificar rapidamente um cenário de violência e
desumanização.
No campo da prática, é inegável que esse movimento tem obtido resultados
concretos que são de suma importância. Hoje, começamos a ver mais atores
negros nos palcos, atrizes travestis em novelas e
reality shows
e, mesmo, família
negras nos comerciais de margarina. O que para alguns significa apenas uma
simples inclusão na esfera do consumo, para outros representa uma revolução no
modo de se ver, agir e pensar. É, assim, a dimensão humana desse outro
debate político.
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subalternizado que se faz presente, afinal, até mesmo a possibilidade do consumo
é algo que nos caracteriza como humanos nos dias de hoje. Passado esse período
de turbulência, de reajuste, será inevitável que essa discussão evolua.
Quando propomos ações de enfrentamento dentro desse contexto de
intensa agitação social, agimos e pensamos de maneira próxima daquilo que o
filósofo Jonathan Lear
16
(2006) chama de esperança radical (
radical hope
). Para o
autor, a esperança radical é aquela que emerge no limite da existência humana,
uma que se faz radical justamente por apontar para um futuro que transcende a
habilidade daquele que sente esperança de compreendê-lo. “A esperança radical
antecipa um bem para o qual aqueles que ainda têm esperança carecem dos
conceitos adequados para compreendê-lo” (Lear, 2006, p.103).
Como seria um mundo onde as pessoas não são oprimidas por serem quem
são? Como seria um teatro onde todos os atores e atrizes podem representar
todos os papéis sem prejuízos éticos e sociais? Como seria uma sociedade na qual
as representações abrangem toda a pluralidade e potencializam a plena existência
humana? Essas são questões que fazem parte de um mundo que aspiramos, mas
que ainda não conseguimos compreender ou imaginar. É algo que nos guia, nos
direciona, sem que saibamos exatamente como iremos chegar lá. É algo para o
qual agimos, sem ter certeza de estarmos usando os procedimentos ou estratégias
mais adequadas. Valemo-nos, portanto, dessa esperança radical para continuar
atuando, escrevendo, performando, em prol de um futuro que, um dia, esperamos
encontrar. Mais do que apenas denunciar a falta de representatividade, talvez
estejamos nos aproximando do momento em que precisaremos pensar em
formas de atuar e nos relacionar a partir dela, imaginando juntos novas formas de
atuação, novas relações possíveis, novas gramáticas de conhecimento, novos
modos de organização da sensibilidade e, sobretudo, novos futuros. Futuros,
talvez, utópicos, nos quais as representações servirão apenas para emancipar; em
que a violência, o horror e a barbárie estarão confinados nos calabouços do
passado; em que tanto Eu quanto o Outro poderemos caminhar juntos sobre
16
Jonathan Lear é filósofo, psicanalista e professor John U.
Nef Distinguished Service
no Comitê de
Pensamento Social e no Departamento de Filosofia da Universidade de Chicago. Seu trabalho enfoca a
compreensão filosófica da psique e as implicações éticas da existência humana.
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pontes construídas entres os abismos que antes nos separavam.
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Recebido em: 04/10/2021
Aprovado em: 09/02/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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