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Prometendo a cena online como acontecimento:
Uma análise de
Tudo que coube numa VHS
, do
Grupo Magiluth
Stephan Baumgärtel
Giórgio Zimann Gislon
Karine de Oliveira Cupertino
Para citar este artigo:
BAUMGÄRTEL, Stephan; GISLON, Giórgio Zimann;
CUPERTINO, Karine de Oliveira. Prometendo a cena online
como acontecimento: Uma análise de
Tudo que coube
numa VHS
, do Grupo Magiluth.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 41, set.
2021.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102412021e0123
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Prometendo a cena online como acontecimento:
Uma análise de
Tudo que coube numa VHS
, do Grupo Magiluth
Stephan Baumgärtel; Giórgio Zimann Gislon; Karine de Oliveira Cupertino
Florianópolis, v.2, n.41, p.1-32, set. 2021
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Prometendo a cena online como acontecimento: Uma análise de
Tudo que coube
numa VHS
, do Grupo Magiluth
Stephan Baumgärtel
1
Giórgio Zimann Gislon
2
Karine de Oliveira Cupertino
3
Resumo
Este artigo interroga de que maneira estrutural e temática
Tudo que coube numa
VHS
, do Grupo Magiluth, se endereça ao espectador dentro do contexto psicossocial
de pandemia de Covid 19. Indaga como os traços formais e temáticos do trabalho
se relacionam com modos atuais de sustentação do sistema capitalista através de
relações sociais instáveis e subjetividades exacerbadas. Dentro desse escopo, o
artigo analisa a oferta tecnovivencial feita por esse trabalho cênico online como
exemplo de uma produção tensionada de pseudo-acontecimentos escapistas e
acontecimentos transformadores.
Palavras-chave
: Acontecimento teatral. Performatividade
online
. Representação
online. Teatro na pandemia. Teatro online.
Promising the online stage as event: an analysis of
Tudo que coube numa VHS
by
Grupo Magiluth
Abstract
This article analyses how structure and topics presented in the online performance
Tudo que coube numa VHS
by Grupo Magiluth address the spectator regarding the
psico-social context created by the Covid-19 pandemia. It asks how these formal
and thematic traits relate to unstable social relations and excited subjectivities as
elements through which the capitalist system nowadays sustains its functioning.
Within this focus, the article analyses the tecnocomunal proposal that designs this
online performance as an example of a production of events and pseudo-events,
molded by the tension between escapist and transformative gestures.
Keywords
: Online performativity. Online representation. Online theatre. Theatrical
1
Pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes na Universidade de São Paulo (ECA/USP |2009-2010).
Doutorado em Literaturas da Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC - 2005).
Mestrado em Letras Inglês pela Ludwig-Maximilians-Universität München (1995). Professor associado da
Universidade do Estado de Santa Catarina na área de história do teatro, estética teatral e dramaturgia.
stephao08@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/8439378198120294 https://orcid.org/0000-0002-7769-1108
2
Doutorando em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Artes em
Estudos Latino-Americanos - Leiden University (2013). Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC - 2015). giorgiogislon@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3399458434426385 https://orcid.org/0000-0003-3744-5305
3
Graduada em Teatro pelo Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
cptkarine@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8076170573332170 https://orcid.org/0000-0002-4302-2344
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event. Theatre within the pandemia.
Prometer la escena online como acontecimiento: un análisis de
Tudo que coube
numa VHS
, del Grupo Magiluth
Resumen
Este artículo investiga de que manera estructural y temática
Tudo que coube numa
VHS
, del Grupo Magiluth, se dirige al espectador dentro del contexto psicosocial
pandémico de Covid 19. Se pregunta cómo los rasgos formales y temáticos de la
obra se relacionan con la forma actual de sustentación del sistema capitalista a
través de las relaciones sociales inestables y subjetividades destacadas. En este
ámbito, el artículo analiza la oferta tecno-vivencial que ofrece esta obra escénica
online como ejemplo de una producción rellena de pseudo-acontecimientos
escapistas y hechos transformadores.
Palabras-clave
: Acontecimiento teatral. Performatividad
online
. Representación
online. Teatro en la pandemia. Teatro online.
Prometendo a cena online como acontecimento:
Uma análise de
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4
Em meio à pandemia de Covid 19 que abalou os alicerces sócio-econômicos
e psico-afetivos de grande parte da humanidade no ano de 2020, os artistas de
teatro brasileiros escolheram buscar meios para continuar produzindo
artisticamente e garantir nesse ato de resiliência sua sobrevivência. As
possibilidades de criação por meio de plataformas digitais foram exploradas desde
por artistas pouco conhecidos dos mais variados lugares do país até por grupos e
companhias renomados. Nesse contexto, mais importante do que tentar resolver
a questão paradoxal que surgiu no primeiro momento sobre a pertinência de
nomear essas produções em plataformas digitais como teatro ou não
4
,
consideramos ser o debate do campo teatral sobre as escolhas estéticas dos
artistas que criam nessas plataformas Isso concerne, não por último, as maneiras
como essas escolhas com suas mediações simbólicas implicam o/a espectador/a
nesse processo performativo e atravessado não só por dimensões sensoriais, mas
também ideológicas.
Para contribuir para esse debate escolhemos
Tudo que coube numa VHS
do
Grupo Magiluth, por se tratar de uma criação que se propôs a utilizar as diversas
redes sociais e plataformas digitais como portadores de uma estratégia
dramatúrgica que pretende provocar no/na espectador/a uma relação de uma
intimidade inusitada com os artistas e com o material cênico apresentado de
forma online.
5
O fato de que, dentro dessa nova modalidade dramatúrgica, esse
foi um dos trabalhos mais bem sucedidos junto a seu público,
6
é outro aspecto
4
O debate, na verdade, é mais antigo que a pandemia. O teórico argentino Jorge Dubatti (2015, 2018)
diferencia convívio de tecnovívio, e afirma que o tecnovívio não é teatro, mas é uma forma de artes cênicas.
Em todo caso, acreditamos ser mais frutífero discutir o alcance estético-político das realizações do que
chegar a uma definição formal que se pretende conclusiva.
5
Assistimos a essa proposta a partir da compra online do ingresso para a peça integrante da 27ª edição do
Festival Porto Alegre em Cena, de 2020, em horários diferentes entre os dias 25 a 27 de outubro de 2020.
Sobre a intimidade inusitada, apresentamos ao longo do texto diversas citações dos artistas e da equipe
de divulgação. SYMPLA. Página do evento ‘Tudo que coube em uma VHS’. Disponível em https//
www.sympla.com.br/tudo-que-coube-em-uma-vhs---2310---20h__988633 Acesso em: 11 nov. 2020.
6
O trabalho, conceituado como um “experimento sensorial em confinamento”, iniciou sua temporada online
entre os dias 07 a 31 de maio, de quinta a domingo, e realizou o que era por enquanto sua última temporada
de 2020 entre os dias 04 a 15 de novembro, passando por uma temporada organizada pelo SESC Avenida
Paulista e um convite para apresentar dentro do festival Porto Alegre em Cena. O sucesso do trabalho fez
o grupo produzir uma segunda proposta, o Todas as histórias possíveis, que realizou sua segunda
temporada em setembro de 2020. Disponível em https://www.facebook.com/magiluth/posts/tudo-que-
coube-numa-vhs-experimento-sensorial-em-confinamento-um-trabalho-criado/1548813865273505/
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que confere à montagem uma exemplaridade em relação a trabalhos feitos online
durante a pandemia e uma dimensão sintomática no que diz respeito ao horizonte
coletivo de expectativas simbólicas e afetivas de seu público. Certamente, para
alcançar esse sucesso e garantir ao grupo uma sobrevivência financeira durante a
pandemia,
7
esse trabalho achou uma forma de responder a um anseio cultural e
socialmente relevante.
As questões que gostaríamos de colocar como condutoras da nossa reflexão
sobre Tudo que coube numa VHS dizem respeito aos modos como estrutura e
temática do trabalho se endereçam ao espectador e como ambas respondem
simbólica e estruturalmente, por um lado, à situação psicossocial durante a
pandemia: o medo, o isolamento, a transformação do convívio social e a alteração
na percepção do tempo. Por outro lado, indagamos como esses traços formais e
temáticos se relacionam com uma força construtiva mais profunda e duradoura
que a pandemia de Covid-19: o modo atual de produção capitalista que, entre
outros efeitos, restringe nossa agência social coletiva, ao mesmo tempo em que
nos relaciona por meio de um solipsismo, de uma competitividade instrumental;
modo que aliena as pessoas dos aspectos mais orgânicos ou naturais de sua
existência ao enquadrar as práticas sociais e profissionais num ritmo temporal
cada vez mais frenético e fragmentado; e que distancia os seres humanos de
ritmos afetivos de absorção mais lenta, além de oferecer o constante consumo
de mercadorias (sejam elas objetos mesmo, práticas sociais padronizadas,
tecnologias ou até identidades imaginárias) como panaceia comportamental para
as faltas e riscos existenciais ou sociais decorrentes.
8
Nesse contexto, autores
como Slavoj Žižek (2011, 2017), ou Mark Fisher (2020) nos alertam que aquilo que
Acesso em: 19 nov. 2020.
7
Como afirma o ator Mario Sérgio Cabral, em entrevista ao Canal Arte1, o Grupo Magiluth foi um dos poucos
grupos a conseguir sobreviver nesses tempos pandêmicos graças à venda de ingressos: “Com um trabalho
feito para esse momento, a gente está vendendo bem.” Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=NyV9Hj_niRo&ab_channel=CanalArte1, Acesso em 19 nov. 2020,
posição 4’20”. Os cinco atores do Magiluth atendiam, entre quinta e domingo, durante seis horas cada um
a 12 pessoas. De modo que 240 pessoas assistiam o trabalho em cada semana, com preços de 20 reais
por participação. Nessa entrevista, de junho de 2020, Mário Sérgio afirma que mais que 1300 pessoas já
assistiram ou agendaram sua entrada, oriundos de mais de 20 países no mundo. “Nosso primeiro trabalho
sem barreiras geográficas.” (4’25 4’45”).
8
A descrição fenomenológica mais difundida dessa realidade é certamente a fórmula da modernidade
líquida” de Zygmunt Bauman (2001). Para reflexões que conjugam análises sociológicas, antropológicas e
estéticas, ver Fisher (2020), Jameson (1991, 1997, 2001) e Žižek (2011), sobretudo o capítulo Felicidade e
tortura no mundo atonal do referido livro.
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se apresenta como uma constante invenção de novas formas sociais de
relacionar-se por meios tecnológicos atualizados não passa de uma enorme
instabilidade social e de uma excitação temporal e afetiva que assumem de fato
o caráter de um pseudo-acontecimento constante
9
. É em relação a esse contexto
que nos chamou atenção a conexão de Tudo que coube numa VHS com
fenômenos que podem ser discutidos como acontecimentos.
A proposta de vivenciar um acontecimento como elemento
fundamental da estrutura de Tudo que coube numa VHS
Provavelmente não há nenhum ser humano que já não acordou de seu sono
com a nítida percepção de que esse sonho que ele acabou de vivenciar foi uma
importante mensagem que convoca a mudanças e ao reconhecimento da
possibilidade de realizá-las. Uma mensagem oriunda de uma dimensão de seu ser
inacessível a sua vontade consciente, ou seja, um encontro com nossa alteridade
dentro de nós mesmos. E, certamente, um bom número de pessoas que
saíram de um cinema, teatro ou
show
musical ou até de um tempo de leitura
abatidas pelo impacto das sensações que as atravessou e lhes causou a impressão
de não poder continuar ser a mesma pessoa que antes. Nesse caso, as diferentes
manifestações artísticas exercem o papel de uma alteridade que nos faz perceber
e desejar outras possibilidades para nossa vida. Alain Badiou nomeia esse encontro
com uma possibilidade que irrompe dentro de nós como acontecimento, e explica
que dele decorre um chamado de incorporá-lo no mundo:
Para mí, un acontecimiento es algo que hace aparecer cierta posibilidad
que era invisible o incluso impensable. Un acontecimiento no es por
mismo creación de una realidad; […] Nos propone algo. Todo dependerá
de la manera en que esta posibilidad propuesta por el acontecimiento
sea captada, trabajada, incorporada, desplegada en el mundo. Eso es lo
que yo llamo procedimiento de verdad(Badiou, 2013, p.21).
É por causa desse aspecto de revelar algo até agora impensável que o
9
Trata-se de uma promessa de acontecimento, de alteração e renovação das regras do convívio social, mas
que não passa de uma pseudo-fenômeno, pois não consegue produzir essa alteração. Apenas vampiriza
o desejo das pessoas por uma alteração e transformação das relações sociais em que vivem.
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acontecimento
comporta, para Badiou, um elemento de contingência. Žižek (2017,
p.7) concorda com esse aspecto ao dizer que um acontecimento é caracterizado
por produzir um “efeito que parece exceder suas causas e o espaço de um
acontecimento é aquele que é aberto pela brecha que separa o efeito das causas.”
Portanto, o modo de desdobrar o acontecimento no mundo não segue um
caminho predeterminado, embora Badiou alerte para o fato de que um
acontecimento verdadeiro nos confronta com a possibilidade de uma
transformação do mundo na qual um interesse subjetivo e um interesse universal
se juntam.
10
Em princípio, entretanto, trata-se nesse desdobramento de um agir
sobre o mundo no qual o sujeito decide o grau de fidelidade que ele quer ou que
ele se capaz de exercer em relação ao “chamado” do acontecimento. Talvez
não seja errado afirmar que os seres humanos se interessam pela arte tanto
quanto por esses sonhos significativos de ares transformadores, porque esses
fenômenos oportunizam vivenciar um acontecimento em suas vidas.
Para além dessa pressuposição geral, há sobretudo dois motivos para evocar
esse conceito de acontecimento como horizonte crítico para uma discussão do
trabalho
Tudo que coube em uma VHS
do Grupo Magiluth. Primeiro, as declarações
dos artistas e do material de release de que se busca em e por meio desse
trabalho uma proximidade fora do comum, um encontro com o/a espectador/a, e
consequentemente a questão de como esse encontro se relaciona
estruturalmente, em forma de procedimentos estéticos performativos, com a
compreensão de que o termo “encontro” implica numa relação com uma
alteridade, e assim com o fenômeno de acontecimento, tal como conceituado por
Badiou. Além disso, encontramos as temáticas centrais do enamoramento, da
duração do amor, da separação e da morte que atravessam a narrativa ficcional
do trabalho e que são temas que se apresentam claramente na vida humana como
questões de abrir-se para acontecimentos e de seguir seu chamado
10
Badiou (2013a; 2013b) usa o exemplo do amor (em cada relação amoroso articula-se a dimensão universal
do amor), mas Žižek (2011, p. 123- p. 130; p. 384 - 395) o segue, quando explica que os momentos de
levantes revolucionários são acontecimentos que mobilizam uma paixão universal por um potencial
universal da humanidade (na Primavera Árabe ou no Occupy Wall Street por exemplo). Parece que na visão
desses dois intelectuais, um acontecimento abre uma realidade objetiva cujo potencial crítico e utópico
evoca aspectos universais na vida humana.
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transformador.
11
De maneira significativa, o momento atual da pandemia coloca em cheque a
possibilidade de vivenciar a própria vida como acontecimento. Entramos nesse
momento pandêmico como se fosse um acontecimento, para logo perceber que
na maneira como a sociedade lida com ele, esse se assemelha mais a um
congelamento da experiência temporal, ou a uma intensificação abrupta e brutal
de uma normalidade social homicida interminável. Dessa maneira, a pandemia se
apresenta como fenômeno que oscila entre acontecimento e
pseudoacontecimento, entre impulso que clama por transformação e outro que
provoca e encena apenas um ativismo de conformismo e assim um gesto
normalizante.
À luz dessa situação, a questão é como esse trabalho artístico, feito em seu
formato técnico para esses tempos pandêmicos, configura, incorpora em si
mesmo e propõe desdobrar no mundo essa potencialidade de acontecimento, de
encontro humano enquanto acontecimento. Como ele evoca a irrupção de uma
alteridade, de uma transformação, em seu interior processual ou ficcional, e assim
realiza (ou não) uma fidelidade para com o acontecimento evocado. Antes de
entrar em detalhes acerca desses dois aspectos cênicos (performatividade e
representação ficcional), vamos apontar concretamente alguns elementos que
evocam o fenômeno do acontecimento como parte integral do tecido funcional e
simbólico desse trabalho, aproveitando essa análise para apresentar a construção
geral desse, conforme o subtítulo da peça, “experimento sensorial em
confinamento”.
O primeiro contato entre um dos atores do Grupo Magiluth e um/a
espectador/a é feito pouco antes do horário marcado para o início da apresentação
por meio de uma ligação telefônica. O artista se apresenta com seu nome social e
se direciona a nós, nos chamando também por nossos nomes sociais. Nesta
ligação ele nos convida para entrar numa “outra realidade”, uma “realidade
paralela”
12
, estabelecendo dessa maneira a costumeira linha divisória, como se
11
Badiou (2013a e 2013b) usa em vários momentos o fenômeno de apaixonar-se e logo o de dar duração a
essa paixão a Dois, para explicar o que quer dizer com acontecimento e com procedimento de verdade.
12
Os termos são usados em cada apresentação, também são usados no trecho que está no referido vídeo
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fosse uma quarta parede, entre ficção e vida empírica, da mesma maneira que na
relação teatral em espaços físicos quando se estabelece com essa separação
também um convite para vivenciar uma presença compartilhada. Trata-se de uma
proposta de identificação complexa, que reconhece a separação (entre realidade
e ficção, entre ator e espectador), e que a partir disso instaura uma situação de
intimidade cativante que, primeiro, aproxima o espectador do ator, e em segundo
lugar, nos aproxima da ficção e nos convida a uma entrega dupla: à destreza
composicional sensorial (sobretudo vocal) do ator enquanto narrador e ao encanto
da ficção, essa “realidade paralela”. Em ambos os casos, evoca-se uma possível
entrega mais ou menos apaixonada à alteridade, a uma realidade parecida, mas
diferente, ou seja, prepara-se a expectativa e a confiança de logo vivenciar uma
apresentação cênica que se constituiria como acontecimento duplo na
dimensão performativa e na dimensão ficcional.
13
Os próximos contatos são feitos pela plataforma do
WhatsApp
. Um vídeo em
que um personagem fala em primeira pessoa e se endereça a um você é enviado
diretamente para o/a espectador/a. Esse vídeo gera, nos primeiros segundos, a
dúvida se ele se dirige a mim, o/a espectador/a, ou a um outro você ficcional. Na
sequência do vídeo fica mais evidente ainda a busca da dramaturgia de instaurar
um pacto performativo-ficcional: esse você é alguém que era próximo da figura
filmada, e agora, com esse destinatário que o vídeo oferece, o/a espectador/a é
convidado/a ou a identificar-se com esse você personagem e seu ponto de vista
ou, mantendo uma posição de testemunha, relacionar-se com a composição
ficcional, a “realidade paralela” como um todo, adotando um olhar mais
estrutural.
14
O uso ambíguo desse você produz uma oscilação importante na
percepção do/da espectador/a entre personagem e observador/a, pois essa
própria oscilação funciona como espaço de instabilidade perceptual. Sabemos
para o Canal Arte1. YOUTUBE. Canal Arte 1. TUDO QUE COUBE NUMA VHS - MAGILUTH | ARTE1 EM
MOVIMENTO. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NyV9Hj_niRo Acesso em: 19 nov. 2020.
13
Sobre a intencionalidade dessa estrutura, ver, por exemplo, as explicações do ator Pedro Wagner no
programa Bom Dia PE, do dia 12/06/2020, 2’28’2’50’’; o vídeo está publicado em 13 jun. 2020 no
Facebook
do Grupo Magiluth. Disponível em https://www.facebook.com/watch/?v=2668210176730980 Acesso em: 3
de jan. 2021.
14
O fenômeno mostra que a chamada dupla enunciação teatral (Ubersfeld, 2005) é implícita em qualquer
apresentação cênica ao vivo. Nesse ponto estrutural, não uma linha divisória entre teatro em espaço
físico e cena
online
.
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desde as vanguardas modernistas, mas também pelos experimentos brechtianos,
que essa instabilidade constitui potencialmente um acontecimento perceptual, no
sentido de propor – contra a percepção habitual e padronizada de uma realidade
objetiva e dada - que a realidade não passa de um fenômeno estético instável e
que tanto a ficção quanto a performatividade cênicas, portanto, possuem uma
força agencial pragmática.
Em outras palavras, o trabalho se baseia aqui numa disjunção entre realidade
empírica e ficção, para quase simultaneamente questionar e seduzir-nos a uma
identificação dominante com a ficção.
15
Mas o próprio procedimento de enviar
sequencialmente o material audiovisual sempre nos lembra dessa ficção como
montagem performativa, ou seja, da disjunção entre performatividade e ficção.
Uma dimensão pode funcionar como alteridade desestabilizadora da outra e o jogo
entre ambos como experiência de alteridade para nossa percepção padronizada.
16
Logo depois desse convite pessoal, antes ainda de entrar no campo das
memórias desse personagem com o você amado, recebemos outro vídeo que
serve como uma fundamentação ontológica das atribulações amorosas
posteriores. Nesse vídeo, referenciado via
WhatsApp
com seu link no
YouTube
,
uma voz em off, sob uma música elegíaca, faz um exercício explicativo de
rememoração, afirmando que “[é] impossível dizer o que havia antes, como
éramos, o que fazíamos, como olhávamos para as coisas,” e, após uma longa
enumeração de atividades cotidianas, avisa que “na verdade nada disso existia até
o dia do estrondo, da explosão, da batida de átomos” que fez com que “daqui para
frente, seríamos corpos voando pelos espaço [...] e ficando a cada momento mais
distante um do outro”
17
.
15
Para os produtores e meios de divulgação, o aspecto mais relevante (por ser o mais atraente) é claramente
essa identificação com a história ficcional e o abandono de uma atitude distanciada e crítica. O SESC
Avenida Paulista, por exemplo, enfatizou em sua divulgação a proposta de que “um dos atores faz com
que você vivencie uma história como se fosse a sua”. O próprio subtítulo “experiência sensorial” escolhido
pelo grupo enfatiza o aspecto vivencial e identificador. Facebook. Perfil do Sesc Avenida Paulista. Disponível
em https://www.facebook.com/sescavpaulista/posts/3037332699647334 Acesso em: 20 jul. 2020.
16
Importante perceber que aqui não se afirma que não haja diferença entre realidade empírica e ficção, ou
seja, em termos pós-modernos, que o mundo seja apenas “texto”. A relação instável entre ambos, a força
agencial de ambos, é a dimensão importante, o que garante a essa estrutura a potência de acontecimento
também em contextos pós-modernos atuais nos quais a meta-ficção é muitas vezes empregada como
um pseudoevento narrativo.
17
O deo está publicado no canal do ator do Grupo Magiluth Bruno Parmera no YouTube. Disponível em
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Esse texto e as imagens intergalácticas que o acompanham localizam o
motivo fundamental da sensação de isolamento não num fator pandêmico, nem
num arranjo socioeconômico específico, mas na condição humana existencial:
fruto de um acontecimento de separação radical, na consciência de nossa
individualidade, somos como esses átomos. O nascimento do eu e do mundo, da
relação sujeito e objeto como uma relação marcada pela disjunção, é
consubstancial. Trata-se de uma versão secularizada da fundamentação teológica
da vida humana sob os efeitos da queda
18
. Com o antes paradisíaco inacessível
pode surgir a consciência humana, o que instaura a vida como uma cena de luta
possível contra os efeitos da separação (mas também de sua aceitação). Ou seja,
a queda torna possível o desejo e o amor.
Tanto a vida amorosa e sexual quanto a atividade simbolizante podem ser
vistas como expressões dessa simultaneidade dentro de nós. A instauração da
consciência de levar uma vida “cada momento mais distante um do outro” é o
acontecimento da separação ou da negatividade (em seu sentido filosófico) que
se desdobra na percepção do/da espectador/a. É a pressuposição lógica e a
preparação afetiva para poder vivenciar intensamente o que Badiou (2013b) chama
o encontro da cena do Dois, a atração de dois seres que suspendem (mas não
superam definitivamente) num esforço constante a entropia da disjunção.
19
Ou seja, a referida rememoração de um acontecimento (nesse filme, o da
“explosão e batida de átomos”) salienta a possibilidade de viver esse
https://youtu.be/ccLZYCuhUmA Acesso em: 9 dez. 2020. Ver 0’03’’ - 1’52’’.
18
Žižek dedica um capítulo de seu livro Acontecimento à queda como acontecimento não no campo
religioso, mas também científico e sobretudo semiótico, articulando a entrada do universal e informe no
tempo das particularidades e formas específicas: “O principal acontecimento é a própria queda, a perda
de uma unidade e uma harmonia primordiais que nunca existiram, que são apenas uma ilusão retroativa.
O fato surpreendente é que esse tema do acontecimento também ressoa fora do campo religioso, na
versão mais radical da ciência de hoje, a cosmologia quântica […]: coisas surgem quando o equilíbrio é
destruído, quando algo dá errado” (2017, p. 31 e p.32).
19
“Temos no amor um primeiro elemento que é uma separação, uma disjunção, uma diferença. Temos um
Dois. […] O segundo aspecto é que, justamente por tratar de uma disjunção, no momento em que esse
Dois vai se mostrar, entrar em cena enquanto tal e experimentar o mundo de um jeito novo, ele só pode
assumir uma forma aventurosa ou contingente. É o que chamamos de encontro. […] E a esse encontro
atribuo o status […] de evento, ou seja, de algo que não se insere na lei imediata das coisas. […] O amor
não é simplesmente o encontro e as relações fechadas entre dois indivíduos, e sim uma construção, uma
vida que se faz, á não mais pelo prisma do Um, mas pelo prisma do Dois. E é isso que chamo de ‘cena do
Dois’” (Badiou, 2013b, p.23-24).
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acontecimento novamente, não para resignar-se com o distanciamento crescente,
mas para tirar da repetição desse afastamento no interior da performance
narrativa uma força pulsante para a vida presente, ao menos para esse presente
em que a apresentação durar. Essa força pulsante pode vir da radicalização dessa
negatividade do encontro explosivo ou das tentativas de sua suspensão,
constantemente reencenadas. A atração
acontecimental
do trabalho se em
grande parte pela oscilação entre as duas possibilidades: negatividade da
vida/morte e afirmação positiva/amor.
Não surpreende, então, que logo estamos sendo levados para os episódios
da relação amorosa ficcional entre o narrador e o personagem você. O material
visual e os áudios enviados via
WhatsApp
recebem agora datas mais concretas,
mas numa ordem não sequencial, e cobrem um tempo entre novembro e
abril/maio, possivelmente estendido ao longo de dois anos. Não sabemos por
certo, pois não recebemos os anos para as datas, mas como o primeiro vídeo (que
anuncia a morte do narrador ou de seu próprio personagem) é datado de 07/05,
e outro material audiovisual referente ao desenvolvimento da relação recebe
datas, entre outras, de 09/07, de 25/04 e de 08/11, sendo que os últimos momentos
documentados da relação dizem respeito aos dias 25 e 26/04, concluímos que a
relação de fato terminou em abril. Mas o jogo temporal aqui nos parece secundário,
mesmo que essa ordem não-linear das memórias possa ser interpretada como
uma representação intencional para evocar o próprio processo de lembrar-se
como acontecimento: lembrar-se é sempre em boa parte uma reinvenção. Mais
importante parece ser o fato de que esses episódios documentam um drama, i.e.,
o processo de apaixonar-se e dentro dele uma lenta, mas gradual abertura de um
para o outro. Ou seja, evoca-se o acontecimento do apaixonar-se e o
comprometimento (em graus diferentes) dos dois personagens para com esse
acontecimento inaugural de seu amor. Ou, em palavras de Badiou (2013, p.21): “Na
verdade, existe a meu ver o encontro de um outro, mas, é que está, um encontro
não é uma experiência, é um acontecimento que permanece inteiramente opaco
e só tem realidade em suas consequências multiformes num mundo real”.
Numa linguagem visual-oral confessional, os episódios desenvolvem em uma
bela simplicidade cotidiana essas consequências tal como se apresentam para
Prometendo a cena online como acontecimento:
Uma análise de
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esses dois amantes. Certamente cumprem com uma das tarefas e potências mais
relevantes do amor que é, para Badiou (2013, p.43): “mostrar que existe de fato
uma força universal do amor, mas que essa força é simplesmente, para nós, a
possibilidade de realizarmos uma experiência positiva, afirmativa e criadora da
diferença”. Os episódios realizam, então, ao menos parcialmente, para o fenômeno
do amor o que Badiou, em relação ao acontecimento, chamou de
procedimento
de verdade
: o conjunto de ações que buscam mostrar-se fiel ao acontecimento
inaugural desse comprometimento mútuo na cena do
Dois
. Entretanto,
também nas lembranças (e não no processo de lembrar) um movimento de
controlar essa paixão e de certa maneira de comodificar a si mesmo e a esse
outro, de tornar a pessoa um espetáculo, por exemplo, quando os encontros são
propulsionados pela troca de sequências de fotografias.
Por último, nos deparamos com o sumiço do narrador amado, sua morte (real
ou simbólica, suicídio ou acidente de modo que o primeiro vídeo é ou um tipo de
mensagem pregravada ou uma volta espectral da figura amada), anunciada desde
o início a ponto que aquilo que poderia ser o acontecimento mais impactante se
torna quase um anticlimax. Sobretudo porque é representado por um áudio que
não consegue chegar ao seu destinatário e que fica condenado a uma existência
fantasma na caixa postal de um celular. Mas como o vídeo inicial anuncia que a
apresentação dos episódios com seu material audiovisual deve servir quase como
um ritual de despedida para que esse outro, o você, possa sentir novamente a
própria vivacidade, ainda outra mensagem necessária que redime ambos dessa
situação espectral e cumpre com o objetivo revitalizante. Essa intenção surge
quase como objetivo principal do trabalho na postagem final, já após do envio dos
agradecimentos finais, de certa maneira como uma moldura de anti-
acontecimento quando o ator empírico, por meio de seu Instagram, nos informa
que chegou bem e ficou sem sinal de celular, além de um
link
para o vídeo da
música
It’s okay
da banda Land of Talk que o você teria mencionado para ele. Um
recado final que ostensivamente atenua o impacto frustrante ou doloroso tanto
da separação ficcional dos protagonistas quanto do fim abrupto do contato com
o ator enquanto mestre de cerimônias da narração,
20
mas que também estende o
20
O recado enfatiza a importância do título da música, ao repetir três vezes “É isso...tá tudo bem! Está Tudo
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enigma e a banalidade dessa separação à vida empírica. Dessa forma, o uso dessa
música nos sugere que a morte do início fosse um truque retórico, um modo de
falar, ou a retórica fosse um truque para evitar um dissenso entre a personagem
ficcional e o você acerca do impacto doloroso desse sumiço. Como se esse você
e nós espectadores junto com ele não devêssemos encontrar respaldo no material
do trabalho quando queremos insistir que “por fim a um amor é sempre
desastroso, até quando se aceita ou inclusive deseja esse desastre” (Badiou, 2013b,
p.72).
21
Uma atenuação da dor que se encontra também na linha do
post scriptum
desse recado que é apenas superficialmente consolador: “Tem histórias que nunca
tem fim…”. Acrescentemos, entretanto, a partir de ensinamentos psicanalíticos,
que essas histórias que nunca tem fim são aquelas que a imaginação do sujeito
não quer (ou não pode) terminar, por conter em si um conteúdo não-resolvido.
Caso contrário, seria uma outra história com os mesmos personagens envolvidos.
Esse recado, então, é um último aviso sintomático de que, em relação à
oscilação entre o empírico e o ficcional, mesmo após declarar que “está tudo
Bem”, ainda não se saiu do campo de forças da realidade ficcional paralela, embora
essa leitura num primeiro momento contradiga a mensagem da música. Pois o
envio dessa música It’s okay pode ser lido também como sintoma confessional de
que a relação não é bem terminada, de que ainda é necessário se convencer. E de
que essa persuasão é a função principal da realidade paralela de cujo campo de
força o espetáculo de fato não nos quer liberar.
duas soluções possíveis para essa contradição. A primeira seria aceitar a
proposta da vida paralela e conformar-se na própria vida com a experiência do
abandono e do “tudo bem”. E a segunda seria elaborar no mundo empírico uma
repetição-rememoração (por meio da criação de um acontecimento igual, mas
que ganha outro rumo) que liberta esse você da dor traumática da separação ou
da morte da pessoa amada como também do fim abrupto do trabalho cênico
Bem Está tudo bem”. Disponível em https://www.instagram.com/p/Bn4reQqBl6c/?igshid=zllrkk88zm1y
Acesso em: 26 nov. 2020.
21
Žižek vai chamar esse processo de atenuar os choques da paixão uma tendência cultural de “renormalizar
a violência de se apaixonar, a violência simpaticamente indicada por um termo basco
maitemindu
,
que, literalmente traduzido, significa ‘ser ferido pelo amor’” (2017, p.47). Sustentamos que esse trabalho do
Magiluth evoca essa ferida, mas ele mesmo não a expõe nem a realiza seja em sua performatividade seja
em sua camada ficcional.
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enquanto acontecimento. Nessa interpretação, o vazio relacional que o trabalho
não consegue (e talvez nem queira) superar estimula a percepção de que é
necessário e possível criar na vida empírica dos/das espectadores/as um outro
acontecimento, outra explosão inicial. Esse evento retomaria a sensação de
abandono afetivo e do controle do acontecimento no interior da vida paralela para
na própria vida reencenar essa estrutura e dar a ela um outro rumo.
Seja como for a percepção de cada um/a sobre esse chamado “utópico” do
trabalho, não temos dúvida que o impacto instigante da proposta está relacionado
ao modo como evoca e inscreve, em seu processo de apresentação e de
ficcionalização, os traços de diversos acontecimentos. Evocar-los atende, no
mínimo, a um anseio por transformação e, no caso dos acontecimentos amorosos,
simultaneamente, por uma cumplicidade: entre ator e espectador, entre narrador
e espectador implícito, entre os personagens num processo de identificação.
Elementos bastantes ausentes para quem vive os efeitos de uma quarentena
prolongada.
Nesse contexto, não parece casualidade que
Tudo que coube numa VHS
se
endereça ao espectador em três níveis diferentes nem sempre claramente
separáveis: num nível que pertence à vida empírica (a relação ator pessoa
empírica) que forma uma espécie de moldura da apresentação; outro nível que
pertence ao processo de narrar uma história, ou seja à performatividade do
trabalho (narrador espectador implícito) e um terceiro nível que pertence à
ficção (personagem 1, denominado ‘eu’ personagem 2 denominado ‘você’). Três
níveis que correspondem àquilo que podemos chamar de três tipos de
acontecimentos artísticos: validar a vida empírica como obra de arte, validar a
experiência estética de uma diferença relacional entre ambos, o que constitui uma
potência de hibridez oscilante entre eles s, e validar o esquecimento da vida
empírica numa obra de arte, construir a experiência estética como refúgio.
Correspondem a esses três níveis de interação ou endereçamento (empírico,
empírico-performativo-ficcional, e ficcional) três propostas de identificação e
engajamento afetivo e crítico por parte do/a espectador/a: engajar o espectador
afetivamente num ambiente social empírico; estabelecer performativamente um
espaço híbrido no qual realidade empírica e mundo ficcional se interseccionam
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num aqui e agora cênico; e marcar a separação entre esse ambiente e o espaço
ficcional, conduzindo a atenção para esse mundo ficcional e fixá-la sobre ele.
Como mostramos, o trabalho se engaja a evocar acontecimentos em cada
uma dessas três dimensões, como se não houvesse contradições insuperáveis
entre eles (como por exemplo entre o engajamento e o escapismo da primeira e
da terceira dimensão). Nas configurações performativas e ficcionais escolhidas,
encontramos simplesmente maneiras diferentes de lidar com a separação e de
buscar possibilidades, por meio de diferentes acontecimentos na estrutura do
trabalho, de “que o mundo possa ser encontrado e experimentado de outra forma
que não seja por uma consciência solitária” (Badiou, 2013b, p.30). Não é só por isso
que “amamos o amor”, mas é também por isso que amamos (quando amamos)
Tudo que coube numa VHS.
Entretanto, será que o trabalho de fato entrega uma fidelidade para com o
acontecimento, por meio de seus “procedimentos de verdade” ficcionais e
performativos? Por que motivo, a dramaturgia termina o espetáculo com esse fim
curiosamente tímido? Dando impressão de não querer radicalizar a experiência do
acontecimento, mas sobretudo consolar seus espectadores em relação às
incertezas, carências e instabilidades de sua vida. Nas próximas duas seções deste
artigo, vamos analisar e interpretar esses dois procedimentos, de verdade ficcional
e de verdade performativa, mais a fundo.
A performatividade cênica como condução individual para uma
proximidade, ou: de que encontro entre ator e espectador
estamos falando?
O site de venda de ingressos para o Festival Porto Alegre em Cena 2020
descreve o trabalho da seguinte maneira:
Em “Tudo que coube numa VHS”, o público é conduzido por um percurso
em que se torna cúmplice das memórias de um personagem,
cristalizadas em torno das recordações sobre um relacionamento. A ação
é acompanhada via web, por meio de uma série de plataformas virtuais
de comunicação e entretenimento, numa experiência individual que
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transporta a uma nova esfera as relações de proximidade entre ator e
espectador, recorrentes na obra do Grupo Magiluth.
22
Embora essa descrição não evoque explicitamente uma proposta
participativa ou interativa - no sentido, por exemplo, de possibilitar uma conversa
e assim uma invenção conjunta das memórias dessa personagem, pois fala em
um “público conduzido por um percurso” que o acesso às memórias de um
personagem - ela não obstante suscita algumas expectativas no “público” em
direção a uma participação especial. A descrição promete uma experiência até
certo ponto singularizada, pois, enuncia construir “uma experiência individual que
transporta a uma nova esfera as relações de proximidade entre ator e espectador”
(e não narrador e espectador implícito). A questão que surge aqui é até que ponto
essa proximidade entre ator e espectador, num espetáculo em que uma pessoa
se dirige “pessoalmente” a outra, evoca e consolida uma experiência de
reciprocidade e de alteridade. As formulações do release e dos atores do grupo
23
provocam questões como: será que se trata de uma cumplicidade sobretudo
performativa ou as artimanhas performativas desses atores ao utilizar plataformas
online visam nos convencer da realidade de uma cumplicidade ficcional, fundada
na ficção das memórias do personagem? Como se articulam a padronização do
material, a singularização de sua apresentação e a almejada singularidade
enfatizada da recepção? Essas questões e suas respostas obviamente giram ao
redor do uso do pronome você como exemplo do duplo endereçamento cênico e
seu correlato, o duplo endereçamento do espectador, por meio da
performatividade processual e da representação ficcional.
Ora, a expectativa de uma proximidade empírica-performativa, entre ator e
espectador/a, é intensificada antes mesmo do acontecimento do evento. Logo
após a compra do ingresso somos contactados pelo grupo para passar algumas
informações pessoais, como nome e sobrenome, cidade e estado de residência, e
22
SYMPLA. Página do evento ‘Tudo que coube em uma VHS’. Disponível em https//
www.sympla.com.br/tudo-que-coube-em-uma-vhs---2310---20h__988633 Acesso em: 11 nov. 2020.
23
Ver, por exemplo, o já referido depoimento de Pedro Wagner no Bom Dia PE. FACEBOOK. Perfil do Grupo
Magiluth. Vídeo do Programa Bom dia Pernambuco. Postagem de 13 jun. 2020. Disponível em
https://www.facebook.com/watch/?v=2668210176730980 Acesso em: 3 de jan. 2021.
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telefone; além de contas em plataformas online (
WhatsApp
,
Spotify
ou
Deezer
,
Instagram
). Entretanto, durante a realização de Tudo que coube nessa VHS, ao
longo do envio do material, a possibilidade de dialogar com o ator por meio do
avatar “você” ou enquanto pessoa real e a potência dessa troca são mínimas.
Mesmo que a gravação e o envio direto em tempo real de boa parte do material
audiovisual contribua para manter a sensação inicial de intimidade cativante, de
uma performatividade e presença compartilhada, ficamos de fato presos numa
espécie de recepção solitária: não temos como chegar perto do ator, e
tampouco podemos assistir à experiência como público, como fenômeno coletivo.
A proximidade viva, um encontro vivo, seja com o ator enquanto narrador ou com
o ator enquanto pessoa empírica, é reduzido a mínimas respostas sem força
agencial ou dialógica. Praticamente espiamos o material a partir de uma
perspectiva cujo controle está na mão do ator-narrador. A questão que surge, na
medida em que os próprios artistas e não só o material de release de um festival
falam em “encontro” com o espectador,
24
é: que tipo estrutural de encontro o
trabalho nos propõe? Que concepção de encontro surge na maneira como ele
articula proximidade e separação, condução e abertura, não no interior da ficção
sobre uma relação amorosa relâmpago, mas, antes, na configuração da interação
entre artista e espectador, ou entre narrador e espectador implícito?
Nesse contexto, vale lembrar que propostas artísticas de proximidade entre
um/a artista e um/a espectador/a tem um histórico. No Brasil, desde meados
da década de 90 a prática de ações experimentais intituladas comumente de
um para um
. Nesse formato, a partir de diferentes meios e sem necessidade de
uma copresença espacial (por exemplo, via ligação telefônica, tão possível para
essa pausa mundial no teatro presencial), artistas convidavam participantes para
um experimento que aconteceria somente entre artista e pessoa convidada, sem
incluir uma plateia maior. Alguma situação era colocada entre um ator usando
nome social ou como personagem e um espectador que, juntos, teciam um
encontro a partir de algumas circunstâncias dadas. Apesar dessas ações terem
24
Em sua página no Instagram, no dia 04 de maio de 2020, o grupo anunciou o espetáculo dessa maneira:
“A gente não se aguentando de saudades de todxs. Para amenizar um pouquinho esse sentimento,
resolvemos criar um trabalho novinho,
feito para encontrar com vocês
, de alguma forma, em tempos de
pandemia. Disponível em https://www.instagram.com/p/B_x7C6jnKZC/?utm_source=ig_embed Acesso
em: 17 dez. 2020.
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estrutura, procedimentos, tempo e espaço muito diversos, alguns fatores são
comuns entre elas, tais como pensar o público sendo co-autor do fazer artístico,
a primazia do processo sob o produto e o borrar das fronteiras entre vida e arte.
25
Sobre o primeiro ponto, é importante destacar que o
um para um
considera
a participação do público não somente uma participação psíquica, mas uma
cooperação de agência que possivelmente (sendo essa a esperança ou intenção)
estabeleça uma obra enquanto acontecimento. Esse formato não apenas tem
intenção, mas acontece, de fato, caso a pessoa participante realize alguma ação
que intervenha no resultado artístico: ela precisa ser também uma agente da obra.
o segundo fator comum entre ações
um para um
atenta que toda ação desse
tipo não cria um produto como sua finalidade principal. São encontros efêmeros,
podendo se valer de registro, mas a obra em si é configurada no encontro, ela é o
próprio encontro entre os sujeitos participantes entendido como acontecimento,
uma “situação-obra”. De fato, nessa abertura à intervenção do outro, o
um para
um
se coloca como busca de possibilidades poéticas para instaurar a arte como
acontecimento. No terceiro quesito, esse tipo de ação faz um desarranjo das
camadas arte e vida, pois esse convite não solicita à pessoa um personagem, mas
sim, nós mesmos enquanto sujeitos da vida cotidiana. Nessa concepção,
Tudo que
coube numa VHS
claramente não é uma proposta de um para um, embora
superficialmente lance mão de alguns traços ou vestígios desse formato.
Não se trata de oferecer um acontecimento cooperativo, em sua modalidade
mais confrontativa ou mais harmoniosa, no meio de uma sensação de
instabilidade, de perigo, de efemeridade, oriunda ou do modo de apresentação ou
da ficção em si.
26
O funcionamento do trabalho revela que a proximidade de fato
não é vista como encontro, como cena do Dois que opera uma atração na
instabilidade.
Portanto, onde o referido material publicitário afirma uma cumplicidade entre
ator e espectador, deveria ter sido colocado: “entre narrador e espectador”. Sem
25
Para exemplos e análises concretas, ver:
Um para um
: a busca por uma subjetividade dialogada. Cupertino
(2018).
26
Mas não seria o operar na instabilidade, exatamente uma das características tanto da paquera quanto do
relacionamento amoroso mais longo?
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dúvida, essa relação é habilmente organizada para fazer surgir a força afetiva da
composição ficcional, seu magnetismo identificatório, seu encanto afetivo. Isso,
entretanto, implica que a hibridez processual não pode ser usada para
problematizar ou até quebrar o pacto identificatório. O que não se entrega é uma
quebra performativa com esse magnetismo, com o reconforto afetivo. Ou seja, a
dimensão de acontecimento não pode ser entregue em sua totalidade, essa
dimensão é prometida para depois ser abandonada, como são abandonados o
espectador no final do espetáculo e o você ficcional pelo sumiço/morte do
amante.
Nesse sentido, mais do que aprofundar a dimensão de acontecimento, o
perigo delicioso e aterrorizante de um diálogo libidinal feito por atração psíquica
sem contrato preestabelecido no qual a “batida” dos átomos (humanos) os faz
oscilar entre atração e dispersão,
27
a performatividade do trabalho encena um
controle desses impulsos. Seria apenas a partir do gesto de assumir o risco de
vivenciar, na performatividade do trabalho, a “explosão, a batida dos átomos” que
a proximidade (agora realmente dialógica) poderia surtar um efeito
qualitativamente transformador.
28
Dessa maneira, o procedimento de evocar uma hibridez performativa-
ficcional, lembra um teatro representacional que coloca em segundo plano (ou
usa como apartes ornamentais) a própria teatralidade inerente; a usa sobretudo
para capturar a atenção do espectador e direcioná-la à ilusão ficcional sem que
se problematize ou explore, para fins de crítica e esclarecimento, os
procedimentos intrínsecos de sua construção. Em outras palavras, o Grupo
Magiluth se coloca como um conjunto de contadores de histórias que habilmente
27
Essa seria de fato a experiência sensorial que faria jus à nova esfera de relações na proximidade entre ator
e espectador/a: a experiência de construir uma relação sem chão estabelecido, em cujo tecido relacional
transparece constantemente essa ausência de uma solidez. E essa é a proposta do
um para um
enquanto
formato cênico. Seu equivalente no campo da ficção seria uma ambiguidade inelutável que não se
submete de antemão a um contrato mental conciliador entre ambas as partes, mas que revelaria
constantemente a tensão entre o engajamento interpretativo e a opacidade tanto do material quanto dos
sujeitos. Ou seja, as duas temáticas evocadas na história ficcional do trabalho: impulso amoroso e impulso
de morte.
28
O regulamento de apresentações (ou seja, de encontros) de trinta minutos é outro elemento conservador.
Como modelo alternativo podemos pensar na duração de sessões de terapia lacaniana cujo tempo é
marcado pela possibilidade do analisando liberar conteúdo relevante e não por uma duração
mecanicamente estabelecida. Sobre esse assunto, ver Lacan, Jacques.
O tempo lógico e a asserção de
certeza antecipada
. In: Jacques. Lacan.
Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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21
evoca em sua dramaturgia acontecimentos processuais possíveis. Assim, usa de
maneira “quente” os aparatos “frios” da comunicação online. Entretanto, a
fidelidade para com esses acontecimentos performativos é limitada e conduzida
para configurar uma proximidade que apenas evoca o risco da cena do Dois, para,
de fato, se oferecer ao desejo pela reconfortante cena do Um, mesmo que ela
seja, em boa parte, assumidamente uma ilusão.
Os afetos do medo da morte e da paixão pelo encontro amoroso
como material da proposta de um acontecimento ficcional
Vimos que no campo da performatividade aqui e agora não se articula uma
fidelidade com o acontecimento inicial, a ligação do ator empírico. O encontro do
Dois é evocado e logo deslocado para o campo da ficção no qual nós dois, ator e
espectador/a empírico/a, entramos