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Vestir-se de palavra, noivar-se de Nelson - Teatro
multimeios de Ione de Medeiros para texto rodriguiano
Fabrício Trindade Pereira
Para citar este artigo:
PEREIRA, Fabrício Trindade. Vestir-se de palavra, noivar-
se de Nelson - Teatro multimeios de Ione de Medeiros
para texto rodriguiano.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0109
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Fabrício Trindade Pereira
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Vestir-se de palavra, noivar-se de Nelson1 - Teatro multimeios de Ione de
Medeiros para texto rodriguiano2
Fabrício Trindade Pereira3
Resumo
Este artigo constitui-se como uma leitura crítico-reflexiva do espetáculo
Vestido de noiva
, dirigido por Ione de Medeiros, do Grupo Oficcina Multimédia
(GOM), estreado em 2023, uma montagem da peça homônima escrita por
Nelson Rodrigues em 1943. Para tanto, o texto é composto por duas partes:
a primeira constitui-se de uma investigação sobre as importantes
contribuições de Nelson Rodrigues para o teatro moderno brasileiro; e a
segunda desvela alguns elementos da linguagem multimeios do GOM que
estruturam a recente montagem teatral de modo a ampliar e revivificar o
texto teatral rodriguiano.
Palavras-chave
: Nelson Rodrigues. Ione de Medeiros. Oficcina Multimédia.
Teatro Contemporâneo. Teatro Moderno.
Dress in word, get engaged like Nelson - Multimedia theater by Ione de
Medeiros e to text by Rodrigues
Abstract
This article constitutes a possible critical-reflexive reading of the show
directed by Ione de Medeiros, from Grupo Oficcina Multimédia (GOM),
premiered in 2023, for the play
Vestido de noiva
, written by Nelson Rodrigues
in 1943. To this end, the text is composed of two parts: the first consists of
an investigation into Nelson Rodrigues' important contributions to modern
Brazilian theater; and the second reveals some elements of GOM's
multimedia language that structure the recent theatrical production,
Vestido
de noiva
, in order to expand and revive rodriguiano's theatrical text.
Keywords
: Nelson Rodrigues. Ione de Medeiros. Oficcina Multimédia.
Contemporary Theatre. Modern Theatre.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Maria Fernanda Gonçalves Moreira
(pessoa não binária), mestre em Teoria da Literatura (UFMG) e graduada em Letras com habilitação em
Edição e Revisão pela PUC-MG. mfgmoreira@gmail.com.
2 Este artigo advém em 30% da tese de doutorado de Fabrício Trindade Pereira denominada Las Yeguas del
Apocalipsis, Officina Multimédia e Yuyuchkani [manuscrito]: corpos sudacas”, defendida em 2023, junto ao
Doutorado em Artes, da Universidade Federal de Minas Gerais, 2023.
3 Doutorado em Artes da Cena pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrado
em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Licenciado em
Teatro pela Escola de Belas Artes da UFMG. Professor e orientador de processos artísticos no Teatro
Universitário/UFMG. Multiartista, professor de Artes, Teatro e Literatura. fabriciotrindade5@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2207454040506834 https://orcid.org/0000-0003-3103-0803
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Vestirse de palabra, comprometerse con Nelson - Teatro multimedia de Ione
de Medeiros para el texto rodriguiano
Resumen
Este artículo constituye una posible lectura crítico-reflexiva del espectáculo
dirigido por Ione de Medeiros, del Grupo Oficcina Multimédia (GOM), estrenado
en 2023, para la obra
Vestido de noiva
, escrita por Nelson Rodrigues en 1943.
Para eso, el texto se compone de dos partes: la primera consiste en una
investigación sobre las importantes contribuciones de Nelson Rodrigues al
teatro brasileño moderno; y la segunda revela algunos elementos del lenguaje
multimedia de GOM que estructuran la reciente producción teatral,
Vestido
de noiva
, con el fin de ampliar y revivir el texto teatral de Rodriguiano.
Palabras clave
: Nelson Rodrigues. Ione de Medeiros. Oficcina Multimédia.
Teatro Contemporáneo. Teatro Moderno.
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Parte 01: Contorcionismos rodriguianos movimentos de
subversão e invenção de modos de escrever teatro
A obra
Vestido de noiva
(1943), de Nelson Rodrigues, é considerada, por
muitos teóricos e críticos do campo da literatura e das artes cênicas, um marco
na dramaturgia brasileira moderna. O texto teatral inaugura, no Brasil, outros
modos de se contar representar uma história e, levando-se em conta as
tradições teatrais ocidentais, rompe com os fundamentais paradigmas do drama
tradicional aristotélico. Na peça, acompanhamos Alaíde, que foi atropelada e está
em uma mesa de cirurgia, sendo operada em emergência, sem muita chance de
sobreviver. A partir dessa situação instalada, acompanhamos os devaneios da
personagem que é tomada pela tarefa, impossível, de reconstruir sua memória e
resgatar suas, permanentemente incompletas, lembranças.
Nesse percurso, em meio ao caos instaurado por pensamentos desagregados
e sucessivos lapsos temporais, o leitor percorre e acompanha os conflitos e
desacertos entre Alaíde e sua irmã, Lúcia. Ambas disputam o amor do mesmo
homem, Pedro. A primeira toma o namorado da irmã e se casa com ele. Porém
sente-se infeliz no casamento e se em uma situação invertida: Lúcia ameaça
lhe roubar o marido. E, às escondidas, planeja, com ele, a morte de sua irmã, Alaíde.
Plano que, por fim, não fica evidente se foi concretizado ou não, parecendo, a
princípio, ter sido frustrado, que Alaíde, antes de qualquer ação de Pedro e Lúcia,
é violentamente atropelada. Porém, o texto deixa em aberto a possibilidade de o
atropelamento ter sido planejado, às escondidas, por Pedro e Lúcia. Nelson
Rodrigues, para contar a história das irmãs, recusa a ordem cronológica,
apresentando as cenas de modo fragmentado, dispostas em uma ordenação
própria a uma mente que, a pesar de estar acometida do trauma e em franco
esquecimento, intenta lembrar-se dos acontecimentos recentes. Se a mente de
Alaíde se encontra decomposta, é justamente o movimento de recomposição que
pulsa a latência do conflito da peça rodriguiana.
O autor estabelece um movimento inventivo peculiar ao constituir a estrutura
textual e a linguagem de sua obra, já que as estabelece a partir da perspectiva do
tema pautado pela história a ser contada. A forma o modo como Nelson
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Rodrigues compõe a peça teatral está contaminada, ou melhor, se constrói a partir
das proposições que ecoam do próprio conteúdo tratado pela criação. Ou seja,
Vestido de noiva
trata-se de uma narrativa sobre uma mulher (Alaíde) que, depois
de ser atropelada, encontra-se em uma mesa de cirurgia e intenta rememorar os
eventos ocorridos que a fizeram chegar até essa situação. E o
como
se conta, a
forma
de escrita, de organização textual e de relevo semântico, é elaborado a partir
dos pressupostos e princípios contextuais da própria personagem retratada. Por
isso o enredo é fragmentado e as cenas por vezes parecem desconexas,
misturadas como peças de quebra-cabeças desencaixadas. Os personagens vão
sendo compostos como variantes dos desvarios de Alaíde, assim como os espaços
da história se alteram, conforme as oscilações das lembranças, esquecimentos e
decomposições da memória pelas quais passa a personagem. E, por fim, o tempo
das ações e acontecimentos subverte e implode a cronologia, tornando-se
movente – uma transposição entre presente, passado e passado mais remoto.
O que se percebe a princípio, como estrutura e linguagem textual, é a
sensação caótica perpetrada pelas ausências, pelos desencontros espaciais,
temporais e causais. Esses três elementos são subvertidos e se comportam à
revelia, conforme os movimentos da mente de Alaíde, expressos pela divisão da
peça em três planos: realidade, memória e alucinação. As cenas e acontecimentos
da história, divididas em atos, percorrem as passagens entre um plano e outro,
prescindindo de informações prévias explicativas ou cenas reparatórias, criando
um trânsito entre planos a partir das sugestões colocadas no texto pelo autor, ora
como uma mudança de luz, ora como um dinamismo na ação dramática, ora como
alterações cenográficas.
Nelson Rodrigues afirma que, como todos seus textos dramáticos,
Vestido de
noiva
“é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma técnica
especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes" (Rodrigues, 1993, p.
84). Podemos reconhecer que essa “técnica especialíssima”, ou seja, esse modo
de escrita confere à peça teatral de Rodrigues o caráter subversivo, pois rompe
com as estruturas do
texto dramático
(Pavis, 2008), pautadas na
forma aristotélica
(Pavis, 2008, p. 325). O drama tradicional, de acordo com a concepção aristotélica,
tinha como objetivo definir um teatro — dramático — com o objetivo de realizar a
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imitação
mimese
dos acontecimentos da vida cotidiana. Nesse sentido, o
texto dramático
(Pavis, 2008) propunha a representação de uma história — fábula
—, encadeada cronologicamente, sob a égide da estrutura clássica de início,
meio/desenvolvimento, clímax, desfecho e fim. No entanto, transformações
profundas e radicais vividas pela humanidade ao longo dos anos, após a revolução
industrial, instauraram a
crise do drama
(Szondi, 2001).
Especialmente depois da metade do século XIX e no século XX, tanto a vida
privada quanto a vida pública contorceram os paradigmas e modos de existência
das pessoas em sociedade. Em regime de reciprocidade, a produção artística
também se alterou, instituindo novas formas de expressão e distintos modos de
se fazer arte, contribuindo, inclusive, para a construção de novos modelos sociais
e outras formas de viver. Diante dessa perspectiva, podemos reconhecer que a
forma aristotélica
não deu conta de representar todos os conflitos e
complexidades humanas ela, por demais esgotada, acabou por “dar lugar a
outras dramaturgias” (Pavis, 2008, p. 325). Essa
crise do drama
(Szondi, 2001) é a
gênese catalisadora para a construção de um novo projeto estético que inaugurou
a máxima de que qualquer texto pode ser encenado, independente dos elementos
dramatúrgicos identificados por Aristóteles. Denominado por Szondi (2001) como
drama moderno
, esse novo projeto estético se estabeleceu como uma força
inovadora subversiva ao drama tradicional, pois instaurou na estrutura modelar do
teatro dramático o elemento épico que surge transpondo os limites da forma
aristotélica, tornando vulneráveis o diálogo, a relação intersubjetiva causal e o
tempo presente.
Em consonância a essas transformações, Nelson Rodrigues pode ser
reconhecido como um autor que se investe dessa força renovadora subversiva.
Vestido de noiva
instaura alguns elementos estruturantes do projeto estético
moderno rodriguiano, proposta que foi se tornando consistente nos anos que se
seguiram, a partir da elaboração e escrita de outras várias obras4. O autor foi
4 Nelson Rodrigues escreveu dezessete peças teatrais, todas publicadas num total de quatro volumes,
divididos segundo critérios do crítico Sábato Magaldi, que agrupou as obras de acordo com suas
características em três grupos: (I) Peças Psicológicas:
A mulher sem pecado
(1941),
Vestido de noiva
(1943),
Valsa 6
(1951),
Viúva, porém honesta
(1957),
Anti-Nelson Rodrigues
(1974); (II) Peças Míticas:
Álbum de
família
(1946),
Anjo negro
(1947),
Senhora dos Afogados
(1947),
Doroteia
(1949); e, (III)Tragédias Cariocas:
A
falecida
(1953),
Perdoa-me por me traíres
(1957),
Os sete gatinhos
(1958),
Boca de Ouro
(1959),
O beijo no
asfalto
(1960),
Bonitinha, mas ordinária
(1962),
Toda nudez será castigada
(1965) e
A serpente
(1978).
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influenciado por autores modernistas do norte global5, tanto na Europa quanto nos
Estados Unidos, que desde o século XIX já experimentavam distintas formas de se
escrever e de se pensar teatro. No contexto brasileiro, aproximadamente no início
dos anos 1930, inicia-se um processo de “modernização” da dramaturgia do
espetáculo teatral,
com Renato Viana, Álvaro Moreyra, Flávio de Carvalho, Antônio de
Alcântara Macha e Oswald de Andrade, espíritos sintonizados com as
conquistas modernistas. Seus trabalhos, porém, não obtiveram muita
repercussão e nem tiveram continuidade. A crítica teatral de Antônio de
Alcântara Machado, publicada em alguns jornais e na revista modernista
Terra roxa e outras terras
, ecoou no vazio; Oswald não viu suas peças
encenadas; e as iniciativas no terreno do espetáculo teatral de Renato
Viana, Álvaro Moreyra e Flávio de Carvalho tiveram vida curta (Faria, 1998,
p. 144).
Nelson Rodrigues, principalmente por ter conseguido dar continuidade à
escrita de textos que foram e são, por diversas vezes, encenados, despontou como
o autor representante do teatro modernista, assim como o texto escrito por ele,
Vestido de noiva
, como obra marco da dramaturgia moderna brasileira.
Importantes montagens dessa peça foram realizadas em nosso país, bem como
diversas versões por distintos coletivos e grupos6, A primeira delas foi realizada
pelo grupo amador carioca Os Comediantes, dirigida por Ziembinski e estreada em
1943. O diretor da montagem era polonês e trazia consigo várias novidades
europeias, sendo “formado na escola expressionista e dominando como poucos
os segredos do palco, em que [era] um mestre na iluminação” (Magaldi, 1962, p.193).
Segundo o crítico Sábato Magaldi (Magaldi, 1962, p.193), Ziembinski apareceu na
cena brasileira preenchendo a lacuna de coordenador de espetáculo, como
responsável por organizar e inter-relacionar os vários elementos (atuação, cenário,
5 Segundo João Roberto Faria (1998, p. 164), “é impressionante como ajustam-se a Vestido de noiva certas
características do expressionismo, que Nelson Rodrigues colheu provavelmente na obra de Eugene O'Neill,
dramaturgo americano que elegeu Strindberg como seu modelo. O próprio dramaturgo brasileiro sugere
essa aproximação no texto
Teatro desagradável
(1949) quando conta que em 1943 ‘ninguém sabia, aqui, da
existência de Eugene O'Neill’ (Rodrigues, 1949, p. 17) e que muita gente julgou que a fonte dos procedimentos
dramáticos de sua peça estava em Pirandello”.
6 Diversas outras versões foram encenadas, como, entre outras, as de: Sérgio Cardoso, de 1958 e de 1965;
Haydée Bittencourt, de 1964; Edélcio Mostaço, de 1987; do Grupo Tapa, dirigida por Eduardo Tolentino de
Araújo e estreada em 1994; de Rodolfo García Vázquez e Os Satyros, de 2007; Gabriel Villela, de 2009; Caco
Coelho, de 2012; e a de Eric Lenate e do Núcleo Experimental, de 2013. Disponível em:
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento399276/vestido-de-noiva/eventos?classificacao=espetaculo.
Acesso em: 05 set. 2023.
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figurinos, iluminação) de uma montagem. “O conjunto harmonizava-se ao toque
do diretor, que acentuou o aspecto plástico das marcações e dos efeitos de luz"
(Magaldi, 1962, p.193-194).
Passados aproximadamente 80 anos desde essa primeira montagem, em
maio de 2023, Ione de Medeiros e o Grupo Oficcina Multimédia (GOM) estrearam,
no Centro Cultural Banco do Brasil, de Belo Horizonte/MG, uma versão para o texto
de Nelson Rodrigues,
Vestido de noiva
. Essa encenação7 realiza nos palcos o
encontro entre a linguagem multimeios de Medeiros e do GOM e as dimensões de
teatralidade propostas pela composição de palavras de Rodrigues.
Vestido de noiva
é o vigésimo quarto espetáculo do Oficcina Multimédia
dirigido por Medeiros8, e, dentre os vinte e quatro trabalhos, o terceiro cuja
encenação leva aos palcos, na íntegra, uma dramaturgia do repertório de textos
teatrais clássicos. A primeira montagem foi realizada em 2001, quando estrearam
A casa de Bernarda Alba
, de García Lorca, e a segunda em 2018, quando pela
primeira vez Ione de Medeiros e o GOM encenaram Boca de Ouro, também de
Nelson Rodrigues.
A casa de Bernarda Alba
,
Boca de Ouro
e
Vestido de noiva
se
diferenciam de outras montagens, pois, para além das distinções particulares a
cada obra, as três foram elaboradas com foco no trabalho sobre / a partir do texto
teatral escrito, somando-se a outros elementos basilares da linguagem teatral
multimeios, como: a não hierarquização entre os diversos elementos da
encenação, a manipulação de objetos, o trabalho físico dos atores, a produção
audiovisual, a composição imagética das cenas, o refinamento dos elementos
sonoros, visuais e de caracterização cênica.
Logo depois de finalizar a última temporada de Boca de Ouro, em maio de
2019, o Oficcina Multimédia iniciou o processo de criação de
Vestido de Noiva
, que
7 A montagem
Vestido de noiva
foi patrocinada pelo Banco do Brasil que financiou a estreia no Centro Cultural
do Banco do Brasil (CCBB), em Belo Horizonte/MG (Maio de 2023) e a turnê pelos outros centros culturais
do banco pelas capitais: São Paulo (Agosto/Setembro de 2023), Rio de Janeiro (Outubro/Novembro de 2023)
e Brasília (Novembro/Dezembro de 2023).
8 Ione de Medeiros, dirige o grupo desde 1983 e já esteve à frente de 23 espetáculos.
Biografia ou Joguinho do
Poder
(1983) / K (1984) /
Domingo de Sol
(1985) /
Decifra-me que eu te devoro
(1986) /
Quantum
(1987) /
Sétima Lua
(1988) /
Navio-noiva e Gaivotas
(1989) /
Epifanias
(1990) /
Alicinações
(1991) /
Bom dia Missislifi
(1993) /
Happy Birthday to You
(1994) /
BaBACHdalghara
(1995) /
A rose is a rose is a rose
(1997) /
Zaac e
Zenoel
(1998) / In-Digestão (2000) /
A casa de Bernarda Alba
(2001) /
A Acusação
(2005) /
-a-Bá BRASIL:
Memória, Sonho e Fantasia
(2007) /
As últimas flores do jardim das cerejeiras
(2010) /
Play it again
(2012) /
Aldebaran
(2013) /
Macquinária 21
(2016) /
Boca de Ouro
(2018) /
Vestido de noiva
(2022).
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tinha data de estreia marcada para maio de 2020. No entanto, faltando dois
meses para sua realização, depois de 8 meses de ensaios e da peça estar
praticamente pronta, o mundo foi surpreendido pela pandemia do covid-19. Com
o estado de emergência decretado, os ensaios presenciais foram suspensos e,
inicialmente, transferidos para reuniões on-line. Diante do prolongamento dos
meses de confinamento, por falta de verba, o GOM teve que entregar o galpão
onde ensaiavam e guardavam todo o acervo (figurinos, adereços e cenários) de
mais de 40 anos do grupo.
Por um ano e meio, o grupo se encontrou todas as noites realizando ensaios
on-line, continuando os estudos e aprofundamentos sobre a obra de Nelson
Rodrigues e, também, mesmo sem a intenção de realizar uma versão em vídeo da
peça, começaram a experimentar e criar produções audiovisuais a partir das cenas
propostas pelo texto do autor9. Reconhecer essa trajetória percorrida pelo Grupo
Oficcina Multimédia no processo de criação do espetáculo
Vestido de Noiva
nos
leva ao propósito central deste artigo. A partir daqui, caminharemos por entre fios,
nós e brechas de uma renda tecida a duas, quatro, seis, oito, dez, infinitas mãos.
Intentaremos juntos, como testemunhas e cúmplices, compartilhar a radicalidade,
a inovação e a transgressão insurgidas pela ação de aproximação e
entrelaçamento da linguagem multimeios do GOM às palavras do texto teatral
rodriguiano.
Parte 02: Vestir-se de palavras, noivar-se de Nelson quando a
linguagem multimeios de Medeiros encontra o texto teatral rodriguiano
O Grupo
Oficcina Multimédia
(GOM) pertence à Fundação de Educação
Artística de Belo Horizonte (MG) desde 1977, quando foi criado pelo compositor
Rufo Herrera. O espetáculo
Sinfonia em Ré-fazer
(1978) inaugurou a linguagem
multimeios e, pela primeira vez, levou para o palco os instrumentos de Marco
Antônio Guimarães, do grupo musical UAKTI. O GOM, como outros coletivos
mineiros formados entre as décadas de 1970 e 198010, surgiu no contexto dos
9 Esses vídeos experimentais acabaram por compor a encenação estreada em 2023.
10 Coletivos como: Grupo Galpão, Giramundo, Grupo Corpo, Uakti. Mais informações disponíveis em:
https://www.grupogalpao.com.br/; https://www.giramundo.org/; https://grupocorpo.com.br/;
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Festivais de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais, mais precisamente
na décima primeira edição, em 1977, a partir do Curso de Artes Integradas,
oferecido pela segunda vez pelo compositor argentino que o criou e na fundação
que o acolheu. O compositor veio viver no Brasil, em 1963, para trabalhar nos
Seminários Internacionais de Música, coordenados por Hans-Joachim Koellreutter,
na Escola de Música da Bahia11, instituição que manteve um contínuo intercâmbio
com a FEA12.
Para Herrera (Paoliello, 2007, p. 113), nos finais dos anos 1960, a música
contemporânea estava experimentando outras maneiras de construir suas
sonoridades, porém, os músicos mantinham nos concertos e nas apresentações
uma formalidade cênica limitante. A performance do concerto tradicional estava
desgastada, ultrapassada, ou seja, havia “uma contradição entre a postura do
músico no palco e os avanços sonoros da música contemporânea” (Paoliello, 2007,
p. 113). Nas palavras de Herrera (2006, p.232),
daí vem o aspecto pedagógico da coisa: de que o músico precisava uma
técnica, uma preparação corporal para isso. Porque eu achava que [o
músico] tinha que falar um texto com suficiente expressividade, que ele
pudesse se mover dentro do palco por uma determinada marca de cena,
que devia ter um gestual e uma série de coisas que estivessem integradas
na partitura.
Por isso o compositor propunha reunir artistas de diversas formações para
criarem trabalhos que integrassem as linguagens artísticas a fim de elaborarem e
experimentarem uma cena múltipla. No curso de Artes Integradas, o compositor
tinha como proposta, principalmente, o trabalho artístico que partia de uma
referência sonora, cênica ou plástica a fim de ampliar o campo e a linguagem para
outras distintas linguagens artísticas. Em síntese, Rufo Herrera desenvolvia as
https://som13.com.br/uakti/biografia. Acesso em: 8 set. 2023.
11 A Escola de Música da Bahia, criada em 1963, em Salvador, foi um referencial cultural vanguardista da Música
Contemporânea nos anos 1960 e 1970 e suas ramificações se expandiam diretamente para BH e para todo
o país. O espaço contava com uma equipe de artistas e músicos do mundo inteiro, participavam da iniciativa
artistas como Ernest Widmer, Walter Smetak, Fernando Lopes, Lindembergue Cardoso, Ilza
Nogueira, Jamary Oliveira, Fernando Cerqueira, Pièrre Close, Marco Antônio Guimarães (BH), Afrânio Lacerda
(BH) e Luis Alberto Pinto Fonseca (BH).
12 O pesquisador Guilherme Paoliello (2007), em sua tese intitulada
A circulação da linguagem musical
: o caso
da Fundação de Educação Artística, desenvolve sua reflexão sobre a Fundação de Educação Artística e sua
importância no cenário artístico brasileiro. O texto de Paoliello reconstrói com solidez a historiografia da
escola, citando inclusive a importância da Escola de Música da Bahia.
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atividades do curso com o propósito de integrar diferentes campos, níveis e tipos
de experiência no fazer artístico para experimentar, coletivamente, outras
possibilidades de expressão do pensamento contemporâneo por meio da arte.
A noção de artes integradas, de acordo com Rufo Herrera (2007, p. 10), está
fundamentada na compreensão de que “as formas de expressão artística possuem
elementos análogos de estruturação, tendo como ponto de unidade o conteúdo
estético inerente à obra de arte”. Desse modo, o músico reconhecia uma
perspectiva da arte que via potencialidade no encontro das disciplinas artísticas e,
dessa maneira, questionava a separação categorizada proposta pela concepção
moderna. Após fazerem o Curso de Artes Integradas, as artistas fundadoras, Ione
de Medeiros, Manuela Rebouças, Conceição Nicolau e Miriam Tavares, sob a
orientação do mestre Rufo Herrera, continuaram a trabalhar e passaram a compor
o núcleo de pesquisa e experimentação em arte da Fundação de Educação
Artística. Esse primeiro núcleo, já denominado Oficcina Multimédia, criou algumas
ações artísticas e, também, os espetáculos
Sinfonia em Ré-fazer
(1978),
Cantata
Nhenhengari
(1979), Ato Vivencial (1980) e
4 lendas indígenas - O Jabuti, a Onça e
a Raposa
(1980), todos dirigidos por Herrera, além da parceria com Carmem
Paternostro na direção de
Sete mais Sete
(1982).
Medeiros (2019a; 2019b) conta que Rufo manteve suas atividades na Bahia e
sempre viajava para lá, de modo que, em suas ausências, elas tinham que manter
uma rotina de trabalho de maneira autônoma. Esse caminho foi trilhado por seis
anos e, durante o processo, Ione foi ocupando a função de assistente de direção,
até que, em 1983, Rufo Herrera resolveu dar foco, especificamente, ao seu trabalho
de composição musical. Essa decisão do diretor foi difícil para o Oficcina
Multimédia, porém estava instalado no coletivo o desejo de dar continuidade à
investigação a fim de aprofundar o projeto artístico multimeios. O grupo foi aos
poucos incorporando as soluções cênicas que Ione de Medeiros propunha. As
atrizes e os atores foram reconhecendo que ela sugeria as opções cênicas mais
adequadas para os processos de criação em curso. Até que o próprio coletivo
decidiu que Ione de Medeiros assinaria a função de diretora na ficha técnica do
espetáculo
Biografia ou Joguinho de Poder
(1983). E somente dois anos depois, em
1985, na montagem de Domingo de Sol, foi que ela compreendeu que, para ela,
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não era possível conciliar o “estar dentro” com o estar “fora da cena”. A partir daí
Ione de Medeiros se dedicou inteiramente à direção do grupo.
Domingo de Sol
marcou a trajetória de Medeiros e do GOM, não por ter
sido o trabalho que trouxe segurança e consciência à diretora sobre sua função no
coletivo, mas também porque pela primeira vez, o grupo trouxe como mote de
criação uma referência das artes plásticas. O exercício de criação do espetáculo
teve como inspiração a transição do figurativo para o abstracionismo. A tela
Um
domingo à tarde na ilha da Grande Jatte
(1884-1886), do pontilista francês Georges
Seurat, era reproduzida em cena pelos atores, bailarinos e músicos. Por meio de
movimentações lentas, a tela vivificada de Seurat transformava-se em
Composição em amarelo, vermelho, azul e preto
(1921), de Piet Mondrian, e, logo
depois, em
Branco sobre Branco
(1918), de Kasimir Malevitch. O objetivo era
ressaltar a luz e a cor em movimento mediante transformações cênicas que se
sucediam. A transição do figurativo para a abstração geométrica era vivificada
pelos artistas na cena, que não deixavam por qualquer momento o palco. Em
segundo lugar, esse trabalho foi responsável por efetivar e marcar definitivamente
a presença do Grupo Oficcina Multimédia como integrante da cena teatral
brasileira, não sem resistência da classe artística, a qual pode ser explicada,
primeiramente, pelo fato de o GOM ter nascido em zona intersticial, instalado e
constituído por e pelo risco inerente às experimentações na fronteira entre
diversas linguagens artísticas. Contrariando a expectativa dos que primam pela
definição compartimentada das disciplinas e técnicas na prática de se fazer arte
teatro, dança, artes plásticas, música, cinema, moda, etc. —, Ione de Medeiros
foi se realizando diretora, trilhando uma trajetória compromissada com a
incessante pesquisa experimental aliada à uma contínua busca pela liberdade de
criação em arte.
Assim, ao longo dos mais de 45 anos de trabalho teatral, Ione de Medeiros
lidera e continuidade a uma prática que persiste na vivência artística diária,
mantendo uma rotina de trabalho permanente produção, ensaio, atividades
culturais. Por meio do trabalho cotidiano e ininterrupto, o GOM foi se formando
como uma equipe de artistas ativos, presentes e mantenedores de uma produção
cultural diversa que permanece num estado de aperfeiçoamento constante, a fim
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de aprofundar os saberes das mais diversas áreas do conhecimento humano.
Vários artistas, de distintas gerações e linguagens, integraram o Multimédia, e,
naturalmente, o GOM foi se configurando como um grupo móvel. Vale ressaltar
que os atores Jonnatha Horta Fortes e Henrique Torres Mourão integram o elenco
e acompanham a diretora mais de 20 anos. Segundo Medeiros (2007, p. 16), o
que lhe mantém todo esse tempo à frente do grupo é a consciência de que a arte
implica responsabilidade social de cultivar sensibilidade, de exercer liberdade e de
criar outros sentidos do, com, sobre, para, a partir do mundo. Sentidos diversos,
distintos, despegados e questionadores diante às normas paradigmáticas e
tradicionais. Para ela, os artistas não podem se furtar desse compromisso como
modo de existência.
Viver a prática de arte multimeios, nas palavras da diretora, significa ter “uma
boa dose de persistência e de investimento na imaginação, aliada à paixão pela
linguagem, pela liberdade do fazer/refazer/transformar, criando compulsivamente
para expandir cada vez mais o potencial criador” (Medeiros, 2007, p. 16). Quarenta
anos depois de dirigir pela primeira vez uma criação do Oficcina Multimédia,
Medeiros cria sua versão para
Vestido de Noiva
, de Nelson Rodrigues, ratificando a
pesquisa e a experimentação como elementos latentes e estruturadores de sua
prática artística. Ao assistir ao espetáculo, testemunhamos a ação viva dos
arranjos e desarranjos de uma arte cênica que pulsa liberdade, transborda sentidos
e experimenta a pluralidade diante do espectador.
O cenário composto, basicamente, de cadeiras, mesas, macas hospitalares
de inox, tudo com rodinhas instaladas em suas bases, alturas variadas e nas cores
prata, branco e preto, confere à obra “uma mobilidade fluida, em consonância com
os desvarios da mente de Alaíde, uma mulher acidentada, que, delirante na cama
de um hospital, tenta reconstruir sua história” (Grupo Oficcina Multimédia, 2023, p.
05). O material cênico está no palco reforçando uma atmosfera de flutuação,
mistério e frieza. A escolha dos móveis se deu pelo aspecto “duro, gélido e
higienizado, numa alusão aos ambientes assépticos de salas de cirurgia” (Grupo
Oficcina Multimédia, 2023, p. 06). Em contraste aos objetos de aço, às cadeiras de
escritório, às mesas e macas estéreis e à dureza cênica, vemos, também, a leveza,
maciez e o volume dos tecidos que se fazem presentes na cena quando a
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grande toalha rendada é estendida no ritual de comemoração do casamento, ou
quando as saias rodadas dos vestidos de Alaíde e Lúcia giram esvoaçantes pelo
palco, ou quando tules pretos servem de véu para a misteriosa mulher do segundo
ato, ou quando um amontoado de vestidos de noiva, cobertos por um longo tule
branco, tornam-se o caixão do velório final. Cruza-se, portanto, com toda
esterilidade, constituinte de um ambiente asséptico, o caráter simbólico,
acentuando o ambiente onírico da encenação.
Se o texto de Nelson Rodrigues, sintonizado com a modernização da escrita
teatral de sua época, radicaliza a fragmentação da ação dramática estabelecendo
três planos realidade, memória e alucinação —, a encenação de Ione de
Medeiros esmaece essa separação, associando-se aos sonhos, instaurando uma
ação cênica que dilui os limites entre os planos escritos pelo autor. A concepção
cenográfica do espetáculo do Oficcina Multimédia, por exemplo, não pré-
estabelece os espaços que serão habitados pelos atores. O cenário não está
disposto no palco de modo fixo, imutável — pelo contrário, está sobre rodas, livre.
E, para que os espaços propostos no texto rodriguiano existam, os atores
movimentam as cadeiras, mesas, macas e manipulam os objetos, numa relação
direta, íntima e desierarquizada.
Os movimentos do texto, que são delineados de acordo com o processo de
recomposição da mente de Alaíde, estão incorporados pelas trajetórias,
configurações e desfigurações estabelecidas pelos atores e cenografia dispostas
no palco. O
Vestido de noiva
do GOM mostra-se como acontecimento em que
tudo adquire mobilidade e vida, em que se esmaecem os paradigmas entre o real
e o irreal, onde as definições não são tão nítidas, como no sonho: “ao mesmo
tempo que parece real, ele não tem a definição da realidade. [Assim como o]
universo do inconsciente, onde a definição não é clara” (Medeiros, 2023). No fim
do espetáculo, como um presente póstumo, na tela disposta no fundo do palco,
projeta-se a seguinte frase: “tudo aquilo aconteceu como costumam acontecer as
coisas nos sonhos, ultrapassando as lei da razão, o espaço e o tempo, e ficando
tudo limitado àquilo que o nosso coração sonha” (Dostoiévski, 2017, p. 105-106).
Essas palavras de Dostoiévski, apropriadas pela diretora como epílogo da
peça teatral, ratificam a compreensão de que o sonho, o inconsciente, o
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imaginativo, o onírico, o devaneio, o delírio são traços-eixos que marcam e
atravessam, transversalmente, dando sustentação à encenação de Medeiros para
a obra de Nelson Rodrigues.
Em seu mais recente livro,
Grupo Oficcina Multimédia 45 anos
(2022), a
diretora declara que ela entra no teatro pela porta da música, que sua atuação
inicial no Oficcina Multimédia foi como pianista. Ela, inclusive, acredita que sua
formação de musicista interferiu na continuidade da pesquisa multimeios, quando
assumiu a direção do grupo em 1983. Em suas palavras,
entrei para o teatro pela porta da música, mantenho um caráter de
abstração na encenação, priorizando um olhar musical e imagético nas
montagens dos espetáculos. Com exceção de
Happy Birthday to You
,
A
casa de Bernarda Alba
e
Boca de Ouro
, os espetáculos do GOM não
seguem um roteiro linear, não contam uma história, não têm
personagens, não usam cenários descritivos, ou seja, não se apoiam em
uma dramaturgia convencional. O texto teatral não é prioritário, podendo,
porém, surgir em pequenas cenas ou no uso expressivo de sons, palavras
e ruídos, elaborados sob uma perspectiva musical (Medeiros, 2022, p.109).
Essa descrição síntese sobre sua própria experiência contínua e inventiva de
pesquisa no campo das artes da cena desvela o desapego ao figurativismo e
insubmissão à representação valor tão caro à arte do teatro. Podemos
reconhecer, portanto, que a linguagem multimeios de Medeiros se veste de
palavras, noiva-se da criação textual de Rodrigues de modo inventivo e
transgressor, pois consolida uma encenação que amplia as possibilidades de
leitura interpretativa da, não convencional, fábula dramática rodriguiana. Tal qual
as fragmentações dramatúrgicas do texto teatral, que correspondem à mente de
Alaíde em franca desintegração, Ione de Medeiros opta por duplicar ou triplicar os
personagens, fazendo com que os atores se revezem entre eles, imprimindo ritmo
e dinamismo ao texto. Os personagens, na encenação de Medeiros, multiplicam-
se são duas Alaídes, dois ou mais Pedros, três ou quatro Mulheres de Véu, e
assim sucessivamente. A diretora explica que a “duplicação dos personagens dá a
possibilidade de acelerar o pensamento, de ter quase uma fala em cima da outra”
(Medeiros, 2023), dando a sensação de se aproximar da “velocidade do
inconsciente” (Medeiros, 2023). Esse revezamento de atores e personagens se alia
ao caráter de abstração que é presente em suas obras multimeios.
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Em
Vestido de noiva
, a diretora opta por criar um movimento que faz com
que os seis atores se revezem nas cenas entre os personagens masculinos e
femininos. Esses revezamentos trazem à encenação, para além da agilidade, a
indefinição, a simultaneidade, a contradição e uma certa aleatoriedade,
características próprias ao universo dos sonhos e do inconsciente. Assim, o jogo
estabelecido pelos atores em cena borra, dessacraliza e despersonifica a relação
ator-personagem. O primeiro não se omite da cena, ele está presente no palco e
é parte ativa no jogo da construção teatral. o segundo, ao ser compartilhado,
por dois ou mais atores, tem a personificação esmaecida, dando lugar de
importância a um caráter sincrético, evidenciando aquilo de essencial que o
caracteriza.
Em 2018, numa conferência realizada no 50º Festival de Inverno da UFMG13,
Ione de Medeiros explicou sobre a capacidade que as crianças têm de se relacionar
com o mundo a partir de um olhar sincrético14 e o quanto esse modo de
experienciar o mundo é fundamental para a elaboração da prática e das obras
multimeios. Referência para Medeiros, no livro
A ordem oculta da arte
(1967), Anton
Ehrenzweig estabelece a definição do que seria a relação sincrética entre a criança
e o mundo, e quais seriam as implicações para a arte que se estrutura em diálogo
com essa perspectiva relacional.
Para o autor (Ehrenzweig, 1967, p.13), até aproximadamente os 7 anos, a
criança tem a capacidade de absorver uma estrutura em sua forma completa,
mais do que analisar os elementos isolados. Isso se daria por causa da habilidade
sincrética que orienta o relacionar audacioso da criança com o mundo. Segundo
ele (Ehrenzweig, 1967, p.13), “a criança aceita a estrutura total sem se preocupar
com os detalhes analíticos”, o que passa, depois dos sete anos de vida, por uma
mudança drástica. Mais velhas, elas “começam a analisar as formas, contrastando-
as com a arte dos adultos” (Ehrenzweig, 1967, p. 21). A relação da criança com o
13 Conferência: conversando com Ione de Medeiros. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=UVvbeffH_SE. Acesso em: 06 de set. de 2023.
14 Termo que Piaget utilizava para denominar a qualidade distinta da visão infantil e da sua arte. Anton
Ehrenzweig, para construir seu raciocínio reflexo, se apropria dessa palavra e da significação elaborada por
Piaget.
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mundo torna-se então analítica ela começa a focar a atenção nos detalhes
geométricos e a estabelecer comparação com tudo que a rodeia, fazendo com
que ela perca a capacidade de dispersar sua atenção para uma aparência do todo
sem levar em conta os detalhes. Medeiros, na conferência supracitada,
compartilha duas situações que demonstram como a capacidade sincrética pode
operar, a partir de uma experiência de uma criança, em uma experiência de uma
pessoa adulta. A diretora primeiro conta que se detecta a capacidade sincrética,
por exemplo, quando a criança
Usa um cabo de vassoura para brincar de cavalo. Ela despreza que o cabo
não tem cara de cavalo, não tem crina, não tem cauda, não tem nenhum
elemento que remeta diretamente ao animal. Porém, aquele objeto, para
a criança, possui os traços gerais de um cavalo, permitindo a ela montar,
guiar e ir a qualquer lugar, para onde ela quiser. [...] No adulto detectamos
essa capacidade sincrética, quando, por exemplo, você uma pessoa
longe e rapidamente sabe quem é. O que acontece é que você reconhece
a pessoa pelo jeito que a pessoa se movimenta, pelo jeito de andar, a
maneira dela se deslocar faz com que você consiga identifi-la. Existe
algo de inconfundível nela que torna possível essa identificação
(Medeiros, 2018).
Na conferência, depois desses exemplos, de modo ratificador, Medeiros exibe
a imagem do
Touro de Picasso
. Segundo a artista, Picasso, por meio do desenho,
descasca as camadas figurativas. O touro, retratado a partir da perspectiva
analítica, vai perdendo os detalhes, até chegar aos traços que referendam uma
grafia capaz de capturar os elementos que tornam o animal inconfundível. Nas
palavras de Ione, “começamos visualizando da esquerda para a direita. O caminho
de Picasso é um primeiro touro denso, cheio de informações. E, a partir dele, o
artista vai descascando os detalhes até chegar ao touro que tem uma cabecinha
mínima, com chifres apontados. Essa forma final, para Picasso, traz os elementos
necessários para que o desenho designe um touro” (Medeiros, 2018).
De alguma maneira, os personagens que estão no palco da encenação do
Oficcina Multimédia trazem os elementos necessários para os caracterizar e
designar o essencial à fábula de Nelson Rodrigues. Não podemos deixar de
mencionar, por exemplo, que Madame Clessi é interpretada pelo ator Jonnatha
Horta Fortes, que está trajado de óculos escuros, um casaco grande creme em
cima de uma blusa de malha preta, calça preta e tênis
All Star
, ou que os pais de
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Alaíde e Lúcia são representados por dois atores, homens, que estão trajados de
preto e tênis
All Star
. um despojamento nessa troca de personagens, assim
como no jogo entre a ação e cenas realizadas pelos atores e os vídeos que
acompanham e estão presentes por todo o tempo da peça, trazendo informações
contextuais, narrações, falas dos personagens e contracena, o que aumenta, ainda
mais, o caráter onírico da encenação, pois a produção audiovisual, projetada numa
tela ao fundo do palco, estabelece mais uma dimensão que se entrelaça ao,
coexiste com, configura o e amplia sentidos ao texto de Rodrigues.
As vezes os atores dublam as cenas que são exibidas ao fundo, ou
complementam as ações que aparecem na tela. Um exemplo disso ocorre quando
Madame Clessi bate com as mãos no vidro da porta. O ator executa a ação ao vivo
no palco e de modo síncrono as mãos aparecem no vídeo. Ou quando Alaíde se
coloca a conversar com o corpo de Madame Clessi estendido no caixão: o ator
está deitado numa maca, como o corpo morto de Clessi. Alaíde se dirige ao ator e
ele se mantém imóvel. Como as respostas e reações ao diálogo são projeções das
alucinações de Alaíde, elas vêm do rosto e da voz exibidas ao fundo, no vídeo. Ou
seja, o público Alaíde, velando Clessi e dialogando com ela, um corpo morto,
imóvel à sua frente. E ao fundo acompanha as respostas, como projeções
imaginativas da mente de Alaíde.
O intento deste artigo foi reconhecer alguns elementos pungentes fulgurados
no encontro de Ione de Medeiros, junto ao Grupo Oficcina Multimédia, e o texto
teatral
Vestido de Noiva
, de Nelson Rodrigues. Reconhecemos algumas
elaborações criativas e cênicas de Medeiros que escancaram a linguagem
multimeios e as diversas instâncias discursivas entrelaçadas de modo a ampliar e
revivificar o texto teatral de Nelson Rodrigues. Na trajetória da diretora, não é difícil
observar que em muitas de suas entrevistas, entre outras perguntas, ela sempre
é questionada sobre a configuração estética e formal das encenações multimeios,
sobre o valor político-social presente em composições cênico-espetaculares. E ao
ser questionada sobre isso, Medeiros afirma que reconhece na arte
A única possibilidade de o ser humano exercer seu amplo e irrestrito
anseio de liberdade. Na vida ela [a liberdade] se limita à relação com o
outro e está sujeita às nossas próprias limitações. Temos a possibilidade
de exercer o livre arbítrio, mas qualquer escolha implica em
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consequências, boas ou nefastas. Na arte encontramos um caminho
aberto para usufruir nossa liberdade de escolha e a partir dela
delinearmos nossa identidade como artistas e seres humanos. Somos
livres para criar, desde que não priorizemos a arte como comércio, como
fonte de enriquecimento, de fama, poder e sucesso junto ao público e à
crítica. A arte, pela sua própria natureza, exige liberdade (Medeiros, 2019a).
Ione de Medeiros declara e reconhece no próprio ato de criação artística,
despegado das demandas do mercado da arte, o valor político-social de
estabelecer espaço subversivo e de resistência ao neoliberalismo e às limitações
impostas pelas forças e poderes hegemônicos dominantes. Para ela (Medeiros,
2019a), a arte tem “o poder de sensibilizar o ser humano em sua evolução
emocional e intelectual”, é um traço determinante na construção da cultura, da
identidade dos povos em diversidade e a responsabilidade social do artista está
relacionada à sua capacidade de expressar seu tempo, suas urgências e anunciar
precocemente as mudanças necessárias em uma sociedade. A arte como esse
sonho premonitório que ambos, artista e espectadores em vigília, compartilham
institui esse jogo horizontal entre a criação artística, os artistas e os espectadores,
relação que refuta a possibilidade de se construir uma versão unívoca sobre / com
/ a partir da matéria sonhada. Pelo contrário, a inter-relação obra-artista-
espectadores marca a multiplicidade de sua constituição. Portanto, elaborar arte
é existir em diversidade, é exercer a conjugação no plural, é operar no regime
somatório “e”: arte e artistas e mundo e criações e interpretações e sensibilidades
e tudo aquilo que não está e que convoca presença.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br