Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   Aspectos destacados para uma epistemologia política do desenvolvimento: utopia, ideologia, neoliberalismo e desenvolvimento[i]

 

 

 

 

 

Sandro Luiz Bazzanella[ii]

Universidade do Contestado (UnC)

Canoinhas – SC, Brasil   

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sandro@unc.br    

 

 

Cintia Neves Godoi [iii]

Faculdades Alves Faria (ALFA)

Goiânia - GO, Brasil 

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image orcid.org/0000-0001-5844-4497      

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Jairo Marchesan[iv]

Universidade do Contestado (UnC)

Concórdia – SC, Brasil   

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Aspectos destacados para uma epistemologia política do desenvolvimento: utopia, ideologia, neoliberalismo e desenvolvimento

 

Resumo

O presente texto é resultado de pesquisas em torno de uma epistemologia política do desenvolvimento. Seu objetivo é compreender as múltiplas variáveis teóricas e conceituais constitutivas da terminologia desenvolvimento, advindas da economia política e imbricadas em práticas e ações de ordem geopolítica, local e regional na atualidade. O artigo propõe o debate em torno da terminologia desenvolvimento a partir dos conceitos e concepções de utopia, ideologia e neoliberalismo. Tem como metodologia a revisão bibliográfica, realizada a partir da consulta, leitura e análise de livros e artigos científicos que se apresentam como referências relevantes para o debate. Os resultados finais da pesquisa apontam para a ambivalência dos discursos sobre desenvolvimento, que em determinados momentos se apresenta como utopia e, em outros, como ideologia. Em ambos os casos, é imprescindível reconhecer a força mobilizadora das expectativas sociais inerentes aos discursos e propostas de desenvolvimento em âmbito local e regional, sobretudo no contexto da ideologia neoliberal na atualidade.

 

Palavras-chave: epistemologia; utopia; ideologia; desenvolvimento; neoliberalismo.

 

 

 

Aspects for a political epistemology of development: utopia, ideology, neoliberalism and development

 

 

Abstract

This text is the result of research on a political epistemology of development. Its objective is to understand the multiple theoretical and conceptual variables that constitute the terminology of development, arising from political economy and intertwined with practices and actions of a geopolitical, local and regional nature today. The article proposes a debate on the terminology of development based on the concepts and conceptions of utopia, ideology and neoliberalism. Its methodology is a bibliographic review, carried out by consulting, reading and analyzing books and scientific articles that are presented as relevant references for the debate. The final results of the research point to the ambivalence of discourses on development, which at certain times present themselves as utopia and, at others, as ideology. In both cases, it is essential to recognize the mobilizing force of social expectations inherent in discourses and proposals for development at the local and regional level, especially in the context of current neoliberal ideology.

 

Keywords: epistemology; utopia; ideology; development; neoliberalism.

 

 

 

 

1 Introdução 

O filósofo e jurista Giorgio Agamben (1942), no texto intitulado “O que é um povo?”, presente na obra, “Meios sem fim: notas sobre a política”, traduzida e publicada no Brasil em 2015, se refere ao desenvolvimento como uma obsessão própria do nosso tempo. Mais especificamente, assim se pronuncia o filósofo: “A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz no nosso tempo porque coincide com o projeto biopolítico[1] de produzir um povo sem fratura” (Agamben, 2015, p. 39). Diante do posicionamento desse pensador é mister nos questionarmos: Por que o desenvolvimento se apresenta como uma obsessão na atualidade? Que exigências a obsessão do desenvolvimento apresenta para indivíduos, sociedades, povos e países? De que forma se afirmou na contemporaneidade a obsessão pelo desenvolvimento? A obsessão pelo desenvolvimento é alcançável, ou apenas uma quimera a motivar sonhos, expectativas e, sobretudo, a consumir as energias vitais de indivíduos, sociedades e povos capturados por ela?

Tais questionamentos, entre outros que poderiam ser apresentados, são urgentes, na medida em que exigem o reconhecimento das fraturas, dos paradoxos, das contradições e, também, das possíveis potencialidades presentes nos discursos que se pretendem científicos, políticos e sociais sobre desenvolvimento. Dito de outra forma, neste artigo não oferecemos respostas conclusivas para os questionamentos acima apresentados, mas trata-se de perquirirmos os fundamentos epistemológicos, políticos e éticos que subjazem a “obsessão pelo desenvolvimento” que mobiliza áreas do conhecimento científico na constituição de teorias do desenvolvimento. Tais teorias procuram demonstrar, a partir de enfoques específicos, as supostas dinâmicas de desenvolvimento alcançadas por diferentes países, povos, territórios, regiões e localidades em díspares contextos temporais, políticos, sociais e econômicos. Ainda nesta direção, também se trata de considerar a força propositiva da obsessão do desenvolvimento que alimenta as esperanças e os anseios de comunidades, de povos e de suas lideranças políticas, ou seja, se trata de investigar como a ideia força do desenvolvimento se mantém atuante no imaginário político, social e científico a despeito de suas obsessões, ambivalências e contradições.

É sob tais prerrogativas que este artigo procura contribuir com as investigações em torno da constituição de uma epistemologia política do desenvolvimento, com o intuito de contribuir na compreensão dos fundamentos modernos da obsessão pelo desenvolvimento. Nesta direção, partimos da constatação que a questão do desenvolvimento se circunscreve a partir das demandas sociais, políticas, econômicas e científicas modernas, mais especificamente ensejando a constituição da ciência da economia política. Isso significa que o desenvolvimento se constitui como objeto no contexto das demandas da economia política em compreender e orientar as iniciativas de organização individual e social nas origens da modernidade. Tais demandas modernas de organização social, política e econômica ensejaram ideias, concepções, discursos e ações, materializando-se nas utopias do progresso humano e social.

A partir de fins do século 19 e ao longo de boa parte do século 20, as utopias do progresso, afirmadas ao longo do século 18 no seio do movimento iluminista, se apresentam como ideologias do desenvolvimento. Na última quadra do século 20 e primeiras décadas do século 21, parece se apresentar um abandono das ideologias do desenvolvimento, sobretudo em âmbito nacional, para apresentar-se como concretização do receituário neoliberal que, ao esvaziar a política, o espaço público e os bens públicos, bem como os indivíduos, na forma de meros produtores e consumidores a conduzirem suas vidas sob os imperativos do débito e do crédito, pulverizou a ideologia do desenvolvimento como responsabilidade local, regional ou territorial. Mas, a despeito desse abandono e da fragmentação e responsabilização agora local (regional ou territorial) pelo desenvolvimento, tudo indica que a “obsessão pelo desenvolvimento” se mantém atuante e presente no imaginário de indivíduos e sociedades na atualidade.

 

2 A utopia moderna do desenvolvimento

A modernidade pode ser definida a partir de inúmeras perspectivas teóricas e conceituais. Entre essas definições, está a perspectiva analítica, que apresenta a modernidade como aposta na razão técnico-científica comprometida com o progresso humano e social. Nesta direção, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em sua obra “O mal-estar da pós-modernidade”, define a modernidade[2] da seguinte forma: “De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou o estilo de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem “tradicional”, herdada e recebida; em que ‘ser’ significa um novo começo permanente” (1998, p. 20). Considerando a pertinência e a validade das definições apresentadas, se trata, nesta investigação, de procurar estabelecer uma definição ancorada especificamente em um dos campos científicos inaugurados pela modernidade – a economia política[3]. “A era moderna testemunhou a emergência de novo modo de considerar os fenômenos humanos e da delimitação de um domínio separado que evocamos correntemente pelas palavras economia, econômico” (Dumont, 2000, p. 47). Ou seja, a economia política nasce sobre a insígnia moderna da busca pela ordem social, política e econômica, condições sine qua non para o progresso.

No contexto da investigação científica promovida pelas várias escolas da economia política, a modernidade pode ser definida como racionalidade, a partir da qual se elaboraram utopias políticas e econômicas que buscavam demonstrar, por meio de relatos fictícios de cidades e povos governados cientificamente, o grau de organização social e de progresso alcançado por tais experiências societárias. Tal condição não era, naquele contexto, apenas desejável, mas, se apresentava como a própria finalidade da racionalidade técnico-científica, política e econômica moderna. “A forma utópica propriamente entendida pertence integralmente ao Moderno, ainda que isso não exclua, de modo algum, que, em determinados momentos, ela se confunda com a própria dimensão profética que a possa caracterizar” (Cacciari, 2016, p. 95).

As utopias políticas e econômicas modernas surgiram e se constituíram a partir do século 16, num contexto de transição do modo de produção feudal para o mercantilismo, marcado por revoluções na produção agrícola, com a introdução de novos métodos de cultivo e o consequente aumento da produção; na intensidade e extensividade do comércio; no aumento e retomada da vida nas cidades; no aumento demográfico e suas demandas urbanas, educacionais e sanitárias, entre outras variáveis. Estava em curso um conjunto de revoluções que situavam, no centro da praça pública, a primazia do social e da economia[4] em relação à política, ou seja, a política passou a ser pensada e concebida como economia política vinculada às demandas produtivas e sociais em expansão.

As utopias[5] modernas são filhas das revoluções que se estabelecem em períodos de crise e de transição societária. Mesmo considerando suas manifestações nos mais distintos tempos e contextos históricos e sociais, é na transição do mundo medieval para o mundo moderno que se manifesta em toda sua intensidade. Sua finalidade é projetar novas visões de mundo, demonstrar racionalmente e discursivamente a necessidade de superação da crise em curso, bem como, de promover objetivamente, senão cientificamente, a afirmação das bases de uma nova visão de mundo, de outras formas de organização social, política e econômica, bem como, de modos de subjetivação articulados aos novos desafios e demandas produtivas e sociais em curso.

 

Irreais, as utopias? Logicamente “inconsistentes”? De maneira nenhuma; são pensadas como horizontes possíveis de processos históricos concretos.” Abstratamente separadas da realidade tangível? Não; amadurecidas pela sua observação estreitamente ligadas a fatores e sujeitos intrínsecos ao seu desenvolvimento. Elas funcionam, por isso, como paradigmas tangíveis, fatores decisivos dos processos que julgam determinantes e que incitam a determinar (Cacciari, 2016, p. 95).

 

Sob tais pressupostos, as utopias modernas[6] se apresentam como expressão da racionalidade econômica e política na busca pela constituição de formas de interpretação dos fenômenos naturais, humanos e sociais, necessários à constituição e afirmação da cosmovisão moderna alicerçada no controle e domínio da natureza, concebida como depósito de matérias-primas, mas, também, de controle da natureza humana e de sua condição ambivalente[7]. Na afirmação da previsibilidade dos fatos, dos acontecimentos e comportamentos humanos e sociais, bem como na pretensão de domínio da contingencialidade dos fenômenos humanos, se estabelece a crença de que o controle, o domínio racional das variáveis acima apresentadas, conduziria necessariamente as sociedades humanas rumo ao progresso material, científico e tecnológico e, por decorrência, afirmaria o desenvolvimento humano e social.

 

[...] a utopia moderna se apresenta, ao contrário, como uma construção racional, precisamente em suas indagações paradoxais [...].  A utopia é essencialmente a ideia de um evolver-se da história em direção a um futuro, se não precisamente calculável, com certeza, paradigmaticamente válido, em sua imagem, a orientar o agir presente. Futuro que o homem é considerado capaz de perseguir e alcançar obedecendo substancialmente a nada mais que a própria razão e a própria natureza (Cacciari, 2016, p. 95).

 

O futuro almejado pelas utopias modernas é a afirmação, sobre bases racionais, técnico-científicas, do progresso, do desenvolvimento humano. “Em primeiro lugar, parece-nos que a introdução de notáveis descobertas ocupa de longe o mais alto posto entre as ações humanas” (Bacon, 1973, p. 92). O ser humano afirma-se como senhor de si mesmo e da natureza, e é dela que são extraídas as matérias-primas, transformadas em bens de consumo e em riqueza. Fornece fontes de energias, bem como, compostos físico-químicos, que, manipulados pela ciência, produzirão novos elementos, que se constituirão em objetos sintéticos não presentes na natureza. Além disso, permite intervir na dinâmica de manifestação da vida de animais e vegetais, senão da própria vida humana. Segundo Bazzanella,

 

Explorar, transformar, armazenar e distribuir são os modos de desabrigar. O mundo transforma-se num depósito de mercadorias e quinquilharias, expressão máxima da sociedade do consumo, de uma racionalidade que se estabeleceu na crença no progresso material [...] (Bazzanella, 2018, p. 258).

 

Tudo isso em vista da garantia do ininterrupto progresso e, mais recentemente, do desenvolvimento humano e social. Neste sentido, para Bacon,

 

Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas em um corpo dado, tal é a obra e o fito do poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é descobrir a forma de uma natureza dada ou a sua verdadeira diferença ou natureza naturante ou de fonte de emanação [...]. A estas empresas primárias subordinam-se duas outras secundárias e de cunho inferior. A primeira é a transformação de corpos concretos de um em outro, nos limites do possível; a segunda, a descoberta de toda geração e movimento do processo latente, contínuo, a partir do agente manifesto até a forma implícita e descobrir, também, esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento (Bacon, 1973, p. 99).

 

Sob tais pressupostos, é no contexto da conformação da economia política moderna, em suas pretensões de cientificidade sobre o trabalho, a produção, a distribuição e o consumo dos bens e da riqueza socialmente produzida que se estabelecem prerrogativas antropológicas, sociais e políticas que conformam a utopia de uma economia regida pelo livre mercado como condição par excellence de afirmação da utopia moderna do progresso e, contemporaneamente do desenvolvimento. Para a afirmação do livre mercado como condição primeira da utopia do progresso e do desenvolvimento, é imperativo articular uma interpretação antropológica e social, a partir da ciência da economia e da economia-política como ciência. E é aqui que encontramos o filósofo da moral, Adam Smith, e sua afirmação acerca do mercado, que, segundo Rosanvallon, interpretando as ideias de Adam Smith, apresenta a seguinte análise:

 

Não é mais simplesmente um lugar particular e localizado de trocas é toda a sociedade que constitui o mercado. [...] é um mecanismo de organização social mais que um mecanismo de regulação econômica. Para Smith, o mercado é um conceito político e sociológico, e é apenas como tal que tem uma dimensão econômica. Com efeito, concebe as relações entre os homens como relações entre mercadorias, definindo a nação como sistema de necessidades. [...]. Smith não faz apologia do capitalismo nascente, não dissimula as relações entre os indivíduos por detrás das relações entre as mercadorias, não reduz a vida social às atividades econômicas: pensa a economia como fundamento da sociedade e do mercado como operador da vida social (Rosanvallon, 2002, p. 87).

 

A utopia moderna do livre mercado, como condição do progresso e do desenvolvimento, parte de uma concepção antropológica pragmática. O humano é um ser que calcula as suas ações e relações com os demais seres humanos e com a sociedade, na busca por obter oportunidades favoráveis à manutenção e expansão de suas condições materiais de vida. O homo oeconomicus de Smith não se reduz a um ser meramente calculista e utilitarista no conjunto das relações humanas e naturais. Nesta direção, observemos a seguinte consideração de Robert Nisbet: “Quando os amigos ou inimigos de Smith se referem a seu entusiasmo pela competição e pela livre empresa, frequentemente omitem a frase essencial: “enquanto observar a regra da justiça” (Nisbet, 1985, p. 199). O autor tem ciência de que a ação humana em vista a seu interesse próprio necessita levar em consideração condições sociais adequadas para que a liberdade de ação econômica (mercado) possa ocorrer de forma equânime, equilibrada preservando a liberdade dos indivíduos.

Dessa maneira, Rosanvallon assevera que

 

[...] não concebe os direitos de propriedade como simples relações entre os homens e as coisas, mas como relações codificadas entre os homens que se referem ao uso das coisas. Para Smith, o ser do homem e seu poder se identificam com a sua propriedade. O homem só é livre como proprietário (Rosanvallon, 2002, p. 88).

 

De sua concepção antropológica resulta sua concepção de sociedade. Trata-se de uma sociedade fundada na primazia das relações econômicas e em relação com as questões políticas. A liberdade de mercado enseja a organização social, estabelece as classes sociais e a dinâmica de suas relações de produção e consumo. Assim, quanto maiores forem as garantias de desterritorialização e exercício da liberdade de mercado, maiores serão as condições de possibilidade do desenvolvimento humano e social. Ou, dito de outra forma, a utopia de livre mercado determina o desenvolvimento humano e social. “Esta representação da sociedade como mercado não é simplesmente estática, é dinâmica. O mercado não estrutura somente a sociedade, é também o meio e o fim do seu desenvolvimento” (Rosanvallon, 2002, p. 91).

Sob tais perspectivas analíticas, constata-se que a modernidade institui a esfera do social como a soma dos indivíduos que atuam a partir de seus interesses próprios e, assim, constituem a liberdade de mercado como pressuposto da ação e, sobretudo, da organização social. Neste contexto, a gestão política e econômica dos indivíduos, das populações e das sociedades modernas se afirmou com o avanço da racionalidade científica nas mais diversas áreas do conhecimento humano. Desse modo, a economia se constituirá em ciência, na forma da economia política, que passa a se debruçar sobre as motivações que subjazem à vontade, à afirmação do desejo de liberdade e ao anseio pelo alcance da igualdade social. O alcance do progresso, da ordem social, política e material humana, portanto, fundamenta, justifica e mobiliza ideias e ações em busca da concretização das projeções utópicas da modernidade aos dias atuais na afirmação da utopia do desenvolvimento.      

 

3 A ideologia do desenvolvimento

  A utopia do progresso, constituída no contexto da economia-política moderna, se apresentou no século 20 como ideologia[8] do desenvolvimento. A concepção de ideologia que norteia esse debate concebe-a como conjunto de ideias, práticas, valores e propostas de ação que se apresentam hegemônicos num determinado contexto histórico, político, social e econômico, como norteador da ação de indivíduos, povos e países.

 

Assim, uma ideologia não é necessariamente “falsa”: quanto a seu conteúdo positivo, ela pode ser “verdadeira”, muito precisa, pois o que realmente importa não é o conteúdo afirmado como tal, mas o modo como esse conteúdo se relaciona com a postura subjetiva envolvida em seu processo de enunciação (Žižek, 1996, p. 13).

 

A afirmação de uma ideologia ocorre quando se constitui uma cosmovisão que orienta a vida dos indivíduos e sociedades, que atua a partir de mecanismos de controle individual e, por decorrência de dominação social, sem que tal condição seja percebida ou questionada pelos grupos humanos submetidos a tais condições de controle, dominação e expropriação de sua visão de mundo. A eficácia de uma ideologia se constitui ao manter sob a ausência de fundamento uma utopia que incide sobre o modo de vida de indivíduos e sociedades, orientando a visão de mundo, as expectativas, as crenças, a ação, os processos de subjetivação de comunidades, povos e países, fazendo com que se desconsidere o contexto de controle e dominação em que se encontram inseridos.

 

Estamos dentro do espaço ideológico propriamente dito no momento em que esse conteúdo – “verdadeiro ou falso” (se verdadeiro, tanto melhor para o efeito ideológico) – é funcional com respeito a alguma relação de dominação social (“poder”, “exploração” de maneira intrinsecamente não transparente: para ser eficaz, a lógica de legitimação da relação de dominação tem que permanecer oculta. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o pleno reconhecimento do fato de que é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade (Žižek, 1996, p. 13).

 

Nas primeiras décadas do século 20 nos deparamos com os limites da utopia do progresso, gestada e articulada pela economia-política moderna que, alicerçada nos avanços técnicos, científicos e produtivos, alimentam a utopia do contínuo e ininterrupto desenvolvimento. As contradições da utopia do progresso apresentam como efeitos colaterais: o imperialismo dos Estados ocidentais desenvolvidos sobre a África, sobre o Oriente Médio e sobre regiões da Ásia e América Latina; a destruição intensiva e extensiva da natureza; o avanço contínuo da sociedade de plena produção e consumo; as constantes crises econômicas; a brutal desigualdade econômica e social entre os povos. No auge desses fenômenos, provocaram a eclosão de duas guerras europeias (que muitos chamam de mundiais), que colocaram em campo de batalha avanços científicos e tecnológicos, que dizimaram milhões de vidas, fenômeno brutal até então não presenciado na trajetória humana. Tal condição pavorosa, advinda da utopia do progresso, culminou em 1945 com as bombas atômicas lançadas pelos EUA sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki.  Definitivamente, nos deparamos com os riscos de uma racionalidade econômica e técnico-científica modernas que, em sua condição especializada e instrumental, contaminam a ação humana, sua capacidade de reflexão ética, suas formas de relação consigo mesma, com as outras formas de vida presentes na natureza e com as demais comunidades humanas e povos. Nesse contexto de afirmação da ideologia do progresso, vejamos a tese IX de Walter Benjamin “Sobre o conceito de história”.

 

Existe um quadro de Klee intitulado “Angelus Novus”. Nele está representado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas. O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado. Onde uma ceia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas do paraíso sobre uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade (Benjamin, 2005, p. 87). 

 

Na quadra histórica do Pós-Segunda Guerra Mundial, a utopia do progresso, inviabilizada pelas suas contradições, se constitui em ideologia do desenvolvimento. Mais especificamente, a ideologia do desenvolvimento foi apresentada ao mundo a partir do discurso de 20 de janeiro de 1949 do presidente estadunidense Harry S. Truman, também conhecido como “Discurso sobre o estado da União”, em que se anuncia no ponto IV do discurso a proposta do desenvolvimento. Sistematicamente, a ideologia do desenvolvimento dissemina a ideia de que os conflitos, as guerras e a destruição de povos e países seriam efetivamente superados quando as desigualdades de desenvolvimento entre povos e países fossem superadas. Ideologicamente, pretende-se justificar a barbárie da 1ª e 2ª Guerra Mundial, ocorrida majoritariamente em solo europeu, a partir da constatação da existência de povos subdesenvolvidos.

Sob tais pressupostos, a afirmação da ideologia do desenvolvimento requer que povos e países passem a reconhecer sua condição subalterna, subdesenvolvida, ou seja, surge com conotações totalitárias[9], na medida em que impõe sobre povos e países, em suas singularidades locais e regionais, critérios unilaterais para definir o que é um país desenvolvido. A partir de então, desenvolvimento é o estado ou condição do país que demonstra capacidade de articular seus recursos materiais e humanos para a constituição de uma sociedade de plena produção e consumo. O crescimento econômico medido pelo Produto Interno Bruto (PIB) é o critério de aferição do grau de desenvolvimento. Países desenvolvidos serão considerados os que possuem os maiores PIBs em escala mundial. Ato contínuo, povos e países que não se enquadram na lógica do crescimento econômico definido pelo capital sob a égide da ideologia do desenvolvimento, passaram imediatamente a ser classificados como “subdesenvolvidos”.

 

El adjetivo “subdesarrollado” aparece al comienzo del primer párrafo del “Punto IV”. Es la primera vez que se utiliza en un texto destinado a una difusión semejante como sinónimo de “regiones económicamente atrasadas” [...]. Esta innovación terminológica modifica el sentido del término “desarrollo”, introduciendo una relación inédita entre “desarrollo” y subdesarrollo (Rist, 2013, p. 93).

 

As críticas aos limites do Produto Interno Bruto (PIB) como indicador do desenvolvimento dos países fizeram com que se constituíssem outros indicadores para tal finalidade. Entre eles, encontramos o Índice de Desenvolvimento Humano e Social (IDH), a qualidade de vida vinculada ao acesso à renda, alimentação, moradia e serviços públicos, entre outros indicadores existentes. A função de tais indicadores é avaliar políticas públicas e programas de governo que incentivem o desenvolvimento em âmbito local e regional. Ou, dito de outra forma, tais indicadores têm a pretensão de aferir, a partir dos critérios que lhe são inerentes, localidades e regiões desenvolvidas e, por reverso e comparação, a partir de tais indicadores, localidades e regiões precárias, com menores índices de desenvolvimento para, dessa forma, orientar os gestores públicos a gerirem de forma eficiente e eficaz os recursos humanos (indivíduos e populações) presentes numa determinada localidade ou região, com vistas ao fomento de processos sociais e produtivos supostamente necessários para o alcance do desenvolvimento, concebido sob a égide da racionalidade do capital de plena produção e pleno consumo.

Assim, num primeiro movimento, a ideologia do desenvolvimento impõe, sobre parte significativa dos povos da terra, um critério de exclusão da condição de desenvolvidos. “Los distintos usos de la palabra tienen en común que presentan al ‘desarrollo’ – conforme a la tradición occidental del concepto – como un fenómeno intransitivo que, simplemente, ‘se produce’ sin que se pueda cambiar nada en él (Rist, 2013, p. 93). Por seu turno, os povos excluídos da condição de desenvolvidos, sobretudo no Ocidente (povos euro-asiáticos, sob orientação da extinta União Soviética; China, Cuba, entre outros países de orientação socialista, recusaram em determinado contexto a ideologia do desenvolvimento capitalista), passaram a aceitar e, concomitantemente impor aos seus povos a aceitação de seu estado de subdesenvolvimento. Tratava-se, para a ideologia do desenvolvimento, de infligir aos povos e países ditos subdesenvolvidos a condição de subalternidade, senão de incapacidade de alcançar o modelo de desenvolvimento preconizado e vivenciado pelos povos e países desenvolvidos.

A ideologia do desenvolvimento também tem a pretensão de aniquilar a memória inscrita na carne e na história dos povos subdesenvolvidos, a violência perpetrada pelos colonizadores na forma da extração, da rapina dos recursos naturais, bem como, da riqueza produzida na colônia às custas de extensivo uso e abuso do trabalho escravo. Trata-se de higienizar da memória dos colonizados a violência perpetrada pelo regime de acumulação de capital conduzida pelas metrópoles, que permitiu àqueles países o alcance da condição de povos desenvolvidos. Sob tais pressupostos, é preciso ter presente que a ideologia do desenvolvimento se fundamenta na violência física, material e simbólica dos desenvolvidos sobre os nomeados de subdesenvolvidos. Ao mesmo tempo, reconhecer a violência disseminada no interior das sociedades subdesenvolvidas expressas no preconceito social, no racismo entre classes sociais, na exploração exacerbada dos trabalhadores e do trabalho feminino, entre outras variáveis. Nesta perspectiva, Theotonio dos Santos argumenta que:

 

A teoria do desenvolvimento passou a constituir uma disciplina acadêmica no pós-guerra, nos anos 50. Esta data não é acidental. Nesses anos emergiu o movimento de libertação nacional nas colônias e as empresas norte-americanas e de outros centros capitalistas começaram a investir maciçamente nos países dependentes. Para responder ao desafio revolucionário no mundo colonial (quer para os que queriam impulsioná-lo, quer para os que queriam combatê-lo) e para estabelecer em países relativamente atrasados uma economia industrial, era necessário conhecer mais pormenorizadamente os mecanismos do desenvolvimento econômico (Santos, 1991, p. 14).

 

Aos povos e países que assimilaram sua condição de subdesenvolvidos a ideologia do desenvolvimento sugeriu, de maneira eficaz, que abandonassem suas pretensões de constituição de projetos de desenvolvimento nacional. Tais projetos de desenvolvimento nacional, quando implementados, aprofundaram a percepção das contradições sociais. Intensificaram a luta de classes e impediram o capital de fazer investimentos, em razão das instabilidades políticas, sociais e institucionais dos países subalternos. A solução para essas instabilidades institucionais e sociais foi promover, nos países da América Latina, golpes militares de Estado que garantissem os interesses das elites oligárquicas nacionais subservientes ao capital internacional comprometidas com o desenvolvimento nacional. Sobretudo no caso do Brasil, Theotonio dos Santos assim argumenta:

 

Sob esta inspiração armaram-se os golpes militares institucionais apoiados na doutrina de segurança nacional que identificava a ação contra insurgente com as tarefas de desenvolvimento econômico e modernização sócio-política, com a ajuda da Aliança para o Progresso[10] e com reformas sociais instituídas sob o controle militar (Santos, 1991, p. 206).

 

Sob tais pressupostos, a ideologia do desenvolvimento dissemina a ideia de que o subdesenvolvimento é uma condição transitória, que requer a assimilação do receituário econômico e político advindo dos países desenvolvidos, ou seja, a referida ideologia difunde uma filosofia da história marcada pelo determinismo do desenvolvimento. Os povos estão condenados pela marcha da história a alcançar o desenvolvimento, desde que sigam as orientações e exigências dos povos desenvolvidos. Assim, a ideologia do desenvolvimento é apresentada como uma utopia a orientar e mobilizar os esforços, as expectativas e as demandas de povos e países pelo alcance do desenvolvimento. A ideologia limita, senão inviabiliza questionamentos que desestabilizam a arquitetura do sistema de exploração e expropriação dos povos subalternos, entre outros tantos possíveis: O que é desenvolvimento? Quais os critérios que definem o que é desenvolvimento? O que é subdesenvolvimento? Qual a origem e finalidade desta conceituação? Quais suas implicações políticas e sociais?

 

El “desarrollo” toma entonces un sentido transitivo (el de una acción ejercida por un agente sobre alguien distinto a él) correspondiendo a un principio de organización social, mientras que el “subdesarrollo” será considerado como un estado que existe “naturalmente”, es decir, sin causa aparente. [...]. La nueva dicotomía “desarrollados/subdesarrollados” propone una relación diferente conforme a la nueva Declaración Universal de los Derechos Humanos y a la progresiva mundialización del sistema estatal. La antigua relación jerárquica de las colonias sometidas a su metrópoli es sustituida por un mundo en el que todos (los estados) son iguales en derecho, aunque no lo sean (todavía) de hecho. El colonizado y el colonizador pertenecen a dos universos no solo distintos, sino incluso opuestos y, para reducir la diferencia, el enfrentamiento – la lucha de liberación nacional – parece inevitable. [...]. En el plano conceptual, el nuevo binomio “desarrollo/subdesarrollo” introduce la idea de una continuidad “sustancial” entre los dos términos que solo se diferencian relativamente entre sí. El estado de “subdesarrollo” no es el inverso del “desarrollo”, sino su forma aún inacabada o, para mantenemos en la metáfora biológica, “embrionaria”; en estas condiciones, una aceleración del crecimiento aparece como el único método para colmar la diferencia (Rist, 2013, p. 94).

 

A força de uma ideologia também pode ser avaliada pela sua capacidade de se metamorfosear, de constante disseminação de explicações, de ofertar variações interpretativas e de sugerir novas formas de ação. Enfim, de manter no horizonte a crença na utopia. Assim, a ideologia do desenvolvimento transita, ao longo das décadas, dos receituários de desenvolvimento aos povos subdesenvolvidos, via agências internacionais (ONU, Banco Mundial, FMI, OMC, entre outras), para a responsabilização, a partir dos anos 1970, dos países subdesenvolvidos pelo seu desrespeito aos direitos humanos, à democracia[11] e, por decorrência dessas precariedades, se apresentam os baixos índices de desenvolvimento humano e social. Isso significa que o alcance da utopia do desenvolvimento é responsabilidade de povos e países na medida em que se comprometem com a defesa da democracia, com a defesa dos direitos humanos e com os direitos civis e sociais, ao mesmo tempo democracias e direitos que as potências mundiais não titubeiam em ignorar e violar, sobretudo em povos e países considerados como periféricos.

Ao final dos anos 1980, diante da globalização do capital, a ideologia do desenvolvimento espacializa a utopia do desenvolvimento. Trata-se de mobilizar a vitalidade, as energias das comunidades locais e regionais em busca do desenvolvimento, por meio de inovações e ações empreendedoras, que possam potencializar a dinâmica do capital presente e articulado em âmbito local, regional e com a esfera global como forma de afirmar estratégias de desenvolvimento.

A partir de 1940, a Organização das Nações Unidas (ONU)[12] estabeleceu uma série de ações e encontros para discutir e propagandear o desenvolvimento para países. Houve, portanto, sete décadas de desenvolvimento, que se iniciaram com propostas de apoio técnico para a industrialização, dentre outras ações, e que nos últimos anos se complexificaram. Dessa maneira, no início dos anos 2000 foram apresentados os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM). A partir de 2015, se apresentou uma nova agenda do desenvolvimento, liderada pela Organização das Nações Unidas, com a afirmação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), e, dessa forma, a ideologia do desenvolvimento se ampliou, pulverizou o debate e as iniciativas de desenvolvimento, num conjunto de objetivos que pretensamente se apresentam comprometidos com a sustentabilidade.

Essas variações da ideologia do desenvolvimento ao longo da segunda metade do século 20 e primeiras décadas do século 21 demonstram a efetividade dessa ideologia em higienizar a violência, a exploração, os conflitos entre colonizadores e colonizados; de responsabilizar os nomeados povos subdesenvolvidos pela sua condição subalterna; de socializar com os povos do mundo a destruição humana e ambiental promovida pela lógica do capital que fundamenta e dissemina a ideologia do desenvolvimento.

 

4 O desenvolvimento no contexto da ideologia neoliberal

Diante do exposto, a questão a ser considerada assim se apresenta: A ideologia (utopia) do desenvolvimento ainda se justifica num contexto de hegemonia do neoliberalismo?  Para colocar em debate tal condição, torna-se imperativo apresentar uma definição de neoliberalismo suficiente para ensejar argumentos implicados no referido debate.

Sob tais pressupostos, inicialmente é preciso reconhecer que o conceito de neoliberalismo é portador de um intenso e extenso percurso histórico ao longo do século 20 para a atualidade. Nesta direção, segundo Dardot e Laval (2016, p. 8),

 

Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle mesmo sob a forma do sufrágio universal. Essa é a razão pela qual a lógica não controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece hoje a um cenário histórico que não é o dos anos1930, quando ocorreu uma revisão das doutrinas e das políticas do “Laissez-faire”. Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática.

 

Nessa perspectiva, o neoliberalismo não se apresenta como uma releitura dos pressupostos liberais frente ao conjunto de crises enfrentadas pelo liberalismo entre fins do século 19 e primeiras décadas do século 20 e que culminam na profunda crise econômica de 1930, na ascensão do fascismo e, por decorrência, na instauração de movimentos e Estados totalitários, dos quais o Estado fascista italiano e o Estado nazista alemão apresentaram-se como as experiências mais representativas. Esse contexto de crise é perpassado pelas duas grandes guerras ocorridas em solo europeu, ou seja, o neoliberalismo constituiu-se como doutrina política e econômica diante dos limites do regime de acumulação de capital no interior dos estados liberais democráticos europeus da primeira metade do século 20. Lazzaratto (2019, p. 26), sobre essa questão, argumenta que:

 

As guerras totais da primeira metade do século XX transformaram a guerra em guerra industrial e o fascismo em organização de massa da contrarrevolução. Agora temos um século atrás de nós que nos permite afirmar que a guerra e o fascismo são, ao mesmo tempo, forças políticas e econômicas necessárias à conversão da acumulação do capital [...].

Ainda em relação à emergência do neoliberalismo em seus pressupostos fundamentais, Dardot e Laval esclarecem:

 

O neoliberalismo, portanto, não é o herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição. Não retoma a questão dos limites do governo do ponto em que ficou. O neoliberalismo não se pergunta mais sobre que tipo de limite dar ao governo político, ao mercado (Adam Smith), aos direitos (John Locke) ou ao cálculo de utilidade (Jeremy Benthan), mas, sim, sobre como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si [...]. Considerado uma racionalidade governamental, e não uma doutrina mais ou menos heteróclita, o neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade (Dardot; Laval, 2016, p. 34).

 

Assim, o neoliberalismo pode ser compreendido como uma racionalidade governamental, ou mais especificamente, um regime de governamentalidade[13] sobre indivíduos e populações tomados como recursos humanos, como capital humano e social, dispostos ao regime de acumulação de capital em sua forma financeirizada e desterritorializada. No plano econômico, prega a liberdade de mercado como a condição por excelência para promover o desenvolvimento humano e social. Dissemina a crença de que a não interferência estatal nos rumos da economia em sua dinâmica privada, empresarial e corporativa tende a promover condições virtuosas para investimentos produtivos, para a geração de empregos e para o fomento equitativo do desenvolvimento global de povos e países.

Nesse contexto, o Estado se reduz a uma agência garantidora dos contratos de livre circulação e de acúmulo de capital vinculado à economia financeirizada global. Noutra direção, mas convergente com a lógica do livre mercado e da liberdade da economia, o Estado, no plano social e político, é reduzido à condição de Estado securitário[14], provedor de serviços públicos básicos às massas populacionais, bem como, garantidor da ordem e da segurança pública diante das demandas de significativas parcelas da população. Afinal, o capital desterritorializado difunde a ideologia de que o desenvolvimento somente pode ser promovido em condições de estabilidade política e segurança social.

 

Así, no es en absoluto irrelevante que sea lo securitario lo que triunfa con el neoliberalismo [...], lo securitario corresponde al arbitraje exclusivo del Estado. Se trata en realidad de una orientación fundamental [...]. Esta orientación surge de una única racionalidad: el neoliberalismo. En su principio mismo, a concentrar la realidad del poder en manos de los actores económicos más poderosos en detrimento de la masa de los ciudadanos, la razón política neoliberal somete a la población a la inseguridad y procede a disciplinarla, desactiva la democracia y fragmenta la sociedad (Laval; Dardot, 2017, p. 11).

 

O neoliberalismo, contudo, não é apenas uma proposta econômica financeirizada e desterritorializada assentada no livre mercado e na hegemonia da economia sobre a política. É, sobretudo, um sistema normativo e um modo de subjetivação. "[...], o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (Dardot; Laval, 2016, p. 7). Sua plena operacionalidade requer a plena atomização dos indivíduos, o definhamento da esfera pública, da ação política comum, bem como, a redução da concepção de democracia representativa à liberdade de os indivíduos expressarem suas opiniões em redes sociais e plataformas virtuais. Isso significa que democracia é sinônimo de opinião pública paradoxalmente privada. Em relação ao espectro da democracia, Lazzarato assevera que:

 

No quadro criado pelo avanço do projeto de secessão política dos "ricos" e pela impotência das forças que gostariam de barrá-lo, a democracia já não serve para nada. A democracia representativa não entrou em "crise" com o neoliberalismo, já que o poder legislativo que deveria realizá-la e legitimá-la começou a ser neutralizado pelo poder executivo a partir da primeira guerra mundial. A guerra Industrial não se dá sem uma reconfiguração do poder executivo que não termina com o fim das hostilidades, mas que, ao contrário, vai progressivamente reduzir o parlamento a um simples apêndice de ratificação e legitimação dos decretos do verdadeiro poder legislativo, que está nas mãos do governo [...]. A democracia sempre foi compreendida pelos liberais como democracia dos possessores. Eles sempre conceberam os direitos como indexados à propriedade. Foram as revoluções que impuseram a igualdade e conquistaram os direitos políticos e sociais "para todos". Uma vez desfeita a revolução e constatada a incapacidade das forças anticapitalistas de reorganizá-la, a democracia logicamente desapareceu. O capitalismo pode funcionar dentro de diferentes sistemas políticos: democracia constitucional, estado centralizador e autoritário como na China, na Rússia ou nos regimes fascistas. A ideia segundo a qual o capital está sempre acompanhado pela democracia é desmentida a cada dia (Lazzarato, 2019, p. 54-55).

 

O neoliberalismo, ao circunscrever a otimização dos indivíduos às esferas da produção e do consumo, sugere-lhes que o alcance do sucesso profissional, financeiro e social é o resultado de sua disposição em tornar-se empresário de si mesmo e de assumir atitude empreendedora diante da vida e das relações humanas, sobretudo no ambiente profissional e de negócios. Ou seja, a vida individual é capturada pelo capital e transformada em “capital humano” e, por extensão, a vida social transforma-se em “capital social”. Trata-se de estratégias de privatização das condutas da vida social à esfera de responsabilidades individuais. Sobre essa questão, Dardot e Laval afirmam que:

 

Daí o trabalho “pedagógico” que se deve fazer para que cada indivíduo se considere detentor de um “capital humano” que ele deve fazer frutificar, daí a instauração de dispositivos que são destinados a “ativar” os indivíduos, obrigando-os a cuidar de si mesmos, educar-se, encontrar um emprego (Dardot; Laval, 2016, p. 231).

 

Diante do exposto, é imperativo reconhecer que a ideologia do desenvolvimento se mantém atuante como utopia do desenvolvimento, agora mobilizando os anseios e as expectativas dos indivíduos capturados pelos dispositivos do capital, existencialmente e socialmente reduzidos à condição de capital humano, lançados no desafio de tornarem-se empresários de si mesmos, empreendedores a serviço da lógica neoliberal de acumulação desterritorializada e global da riqueza socialmente produzida. Assim, a ideologia (utopia) do desenvolvimento outrora nacional, substituída pela ideologia (utopia) do desenvolvimento humano e social, local, regional e territorial e, atualmente pulverizada nos “Objetivos do Desenvolvimento do Milênio” e, posteriormente nos “Objetivos do Desenvolvimento Sustentável”, com vistas à socialização dos esforços de sustentabilidade da vida ameaçada no planeta, mantém sua vitalidade e cumpre sua função nos marcos da cosmovisão neoliberal.

No contexto do neoliberal, portanto, a ideologia (utopia) do desenvolvimento se apresenta em toda sua ambivalência. Por um lado, uma ideologia destituída pelo capital de suas possibilidades de ensejar nos povos a afirmação de projetos de desenvolvimento nacional, ou mesmo local e regional que promovam a condição humana e social. Por outro, uma ideologia (in)conveniente no que concerne à promoção da sustentabilidade, na medida em que pode contribuir para o reconhecimento das responsabilidades do capital diante da destruição ambiental mas que, por outro lado, também pode ensejar movimentos de resistência em relação à lógica (des)humana e agressiva do capital em relação à vida.

A racionalidade política e econômica neoliberal impõe limites à ideologia (utopia) do desenvolvimento ao esvaziar a política, ao privatizar o espaço público e ao reduzir o cidadão a mero produtor e consumidor, na dinâmica societária de plena produção e pleno consumo. Neste contexto de profunda privatização das esferas de organização social coletivas, de movimentos sociais, de entidades representativas em nome da estabilidade e da segurança política e social requerida para o regime de acumulação do capital, já não se apresenta a possibilidade do debate e da afirmação de um projeto de desenvolvimento nacional. Para Lazzarato,

 

Da rede mundial de partidos, organizações, movimentos e até de Estados que, de modo diferente, “trabalham” pela revolução, não resta literalmente mais nada. A globalização capitalista que a destruiu é uma resposta estratégica à revolução mundial. Apesar disso, qualquer política concebida nas fronteiras do Estado-nação está destinada a fracassar (Lazzarato, 2016, p. 183).

 

5 Considerações finais

A força dos discursos científicos e políticos e das percepções sociais do desenvolvimento reside em sua condição utópica e ideológica. Ou, dito de outra forma, a despeito do esvaziamento da afirmação de projetos de desenvolvimento nacional, promovido pela racionalidade política e econômica neoliberal em curso, o ideário do desenvolvimento se mantém presente no imaginário popular e social em suas demandas localizadas, seja em âmbito regional ou territorial.

O neoliberalismo, ao promover o esvaziamento da política como esfera da ação comunitária e social em relação à manutenção do espaço público e dos bens públicos compartilhados pela comunidade nacional, inviabilizou as condições de possibilidade de debate e constituição de projetos de desenvolvimento nacional. A privatização dos indivíduos, submetidos à luta pela sobrevivência, como empresários de si próprios, sob a lógica de uma economia desterritorializada que opera a partir do débito e do crédito, sequestrou o Estado como espaço por excelência do político no interior do qual vicejam as tensões e disputas em torno de um projeto de desenvolvimento nacional, que, em maior ou menor grau, contemplam os interesses das diversas classes sociais em disputa, a partir de critérios fundamentados na justiça social.

Neste contexto, de sequestro da capacidade do Estado e da sociedade de fomentar e garantir o equilíbrio das disputas políticas entre as classes sociais, com vistas à constituição de um projeto de desenvolvimento nacional, o Estado foi rearticulado em suas funções. Por um lado, como Estado mínimo diante das demandas políticas e sociais por justiça social e, por outro, como Estado máximo ou securitário, intensificando a gestão da biologicidade corporal de indivíduos e da população, concebidos sob a égide da racionalidade política e econômica neoliberal como capital humano, capital social e recursos à disposição do regime de acumulação de capital. Da mesma forma, compete ao Estado securitário a contínua vigilância e controle sobre os indivíduos, sobre movimentos sociais ou manifestações sociais que possam afetar os contratos e, sobretudo, as garantias requeridas do Estado pela dinâmica da economia desterritorializada em curso.

Sob as perspectivas políticas da agenda política e econômica de governos neoliberais, as iniciativas sociais em torno dos anseios de constituição de um projeto de desenvolvimento nacional se apresentam inviabilizadas. Mas, ao que tudo indica, a força da utopia do progresso e do desenvolvimento permanece no imaginário social, sobretudo no de povos periféricos que anseiam pelo dia da entrada na categoria de povos desenvolvidos e, com ela, o alcance da almejada e justa qualidade de vida. É sob esse justo anseio humano e social que o neoliberalismo ativa a ideologia do desenvolvimento e, coerente com seus fundamentos políticos e econômicos, imputa a responsabilidade pela constituição de um projeto de desenvolvimento a localidades e regiões. Atuando dessa forma, a ideologia do desenvolvimento, sob a égide neoliberal, mantêm mobilizados os anseios dos indivíduos privatizados em âmbito local (desprovido de uma concepção de desenvolvimento nacional) pelo alcance do desenvolvimento. E, ao mesmo tempo, responsabiliza esses mesmos indivíduos, em sua condição local e regional, pela sua categoria de subdesenvolvidos e periféricos. Ou seja, se o local ou o regional não se desenvolvem, tal condição de fracasso é de responsabilidade dos indivíduos e de suas comunidades em âmbito local e regional em se articular para o alcance das oportunidades de desenvolvimento.

Assim, a força do discurso do desenvolvimento se mantém a partir de sua condição utópica e ideológica de origem na economia política, mesmo que sob os pressupostos da racionalidade política e econômica neoliberal as condições sociais e políticas para a articulação de um projeto de desenvolvimento, mesmo que âmbito local e regional, sob as prerrogativas da justiça social tenha sido sequestrada e negada aos indivíduos e à população. Talvez estejamos diante da necessidade de profanar a ideologia neoliberal do desenvolvimento e devolvê-la ao uso comum, ao âmbito comunitário.

 

 

 

Referências

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[1] O conceito de biopolítica é um conceito retomado pelo filósofo francês Michel Foucault nos anos 1970, no contexto de suas pesquisas genealógicas e arqueológicas relativas à compreensão das técnicas de saber e poder que foram articuladas institucionalmente na modernidade, conformando um regime de governamentalidade sobre os corpos dos indivíduos e da população, concebidos como recursos humanos à disposição do poder soberano, cujo modus operandi se orienta pela máxima “fazer viver e deixar morrer”. Assim, o conceito de biopolítica designa o fato de que na modernidade a vida biológica se tornou objeto por excelência dos cálculos governamentais do Estado e do poder soberano. Por seu turno, o filósofo italiano Giorgio Agamben dá continuidade a certos aspectos que não foram suficientemente explorados nas pesquisas de Foucault sobre o conceito de biopolítica. Nesta direção, Agamben parte do pressuposto de que toda a política no Ocidente sempre se apresentou como biopolítica, como gestão da vida biológica de indivíduos e populações tomados como recursos humanos à disposição dos interesses estratégicos de fortalecimento do poder soberano, que opera em constante estado de exceção, produzindo vida nua, vida descartável, vida matável, de acordo com os cálculos de custo e benefício articulados pelo poder soberano. Ainda, nesta direção, para Giorgio Agamben, os campos de concentração se apresentam como o paradigma de gestão biopolítica da vida na contemporaneidade. Para maior aprofundamento, indicamos a seguinte leitura: MARCHESAN, Jairo; TREML, Krishna Schneider; BAZZANELLA, Sandro Luiz Bazzanella. Biopolítica desenvolvimento, insegurança, exclusão e violência. (Des)troços: Revista de Pensamento Radical, Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p. 142-162, jul./dez. 2022.

[2] Porém, em sua obra “Modernidade e Ambivalência” (Bauman, 1999, p. 12), Bauman chama atenção para as dificuldades de se definir a modernidade: “A modernidade, como todas as outras quase totalidades que queremos retirar do fluxo contínuo do ser, torna-se esquiva: descobrimos que o conceito é carregado de ambiguidade, ao passo que seu referente é opaco no miolo e puído nas beiradas. De modo que é improvável que se resolva a discussão. O aspecto definidor da modernidade subjacente a essas tentativas é parte da discussão.” Mesmo considerando tais dificuldades de estabelecer uma definição de modernidade, o autor apresenta uma definição que corrobora as definições acima apresentadas: “Dentre a multiplicidade de tarefas impossíveis que a modernidade se atribuiu e que fizeram dela o que é, sobressai a da ordem (mais precisamente e de forma mais importante, a da ordem como tarefa) como a menos possível das impossíveis e a menos disponível das indispensáveis – com efeito, como o arquétipo de todas as outras tarefas, uma tarefa que torna todas as demais meras metáforas de si mesmas” (Bauman, 1999, p. 12).

[3] O pensador francês Pierre Rosanvallon (2002, p. 21), em sua obra “O liberalismo econômico: história da ideia de mercado”, argumenta que: “A grande questão da modernidade é pensar uma sociedade laica, desencantada, retomando uma expressão de Max Weber. Mais precisamente ainda; pensar a sociedade como auto instituída, sem repousar sobre qualquer ordem exterior ao homem. Neste sentido, Grotius falava de estabelecimento humano, por oposição a um estabelecimento divino”. Neste contexto, e sob tais pressupostos, “Com Smith a economia se apresenta como o enigma resolvido de todas as constituições, para parafrasear a expressão famosa de Marx sobre a democracia. No coração, e não na periferia do pensamento moderno nasce o que podemos chamar, acompanhando Louis Dumont, de ideologia econômica.  A ideologia econômica não se introduz por arrombamento, no pensamento moderno, mas se afirma no seu movimento mais interior e mais necessário. A ideologia econômica, a economia como filosofia, se apresenta com efeito progressivamente como a solução concreta dos problemas, mais decisivos dos séculos 17 e 18: os da instituição e da regulação do social” (Rosanvallon, 2002, p. 55).

[4] Hannah Arendt, na obra “A Condição Humana” (1991), situa a modernidade como emergência do social e, com ela, da economia na gestão estatal da vida biológica de indivíduos e populações. “Desde o advento da sociedade, desde a admissão das atividades caseiras e da economia doméstica à esfera pública, a nova esfera tem-se caracterizado principalmente por uma irresistível tendência de crescer, de devorar as esferas mais antigas do político e do privado, bem como a esfera mais recente da intimidade. […] a esfera privada da família era o plano no qual as necessidades da vida, da sobrevivência individual e da continuidade da espécie eram atendidas e garantidas” (Arendt, 1991, p. 55).

[5] Entre as principais utopias políticas e econômicas modernas encontra-se “A Utopia, ou Tratado da melhor forma de governo” do pensador inglês Thomas More (1478-1535). “Quando escreveu esta obra, que teve enorme sucesso em sua época, a caça às bruxas e o suplício na fogueira convivem com castigos sangrentos infligidos aos vagabundos. As regras são invertidas na República de Utopia: ali se prescreve para não prejudicar ninguém em nome da religião. [...] é Rafael Hitlodeu, personagem imaginário, que More confia na exposição dos costumes e das instituições dos utopianos. Esse viajante cheio de ciência e experiência é, assim, o principal interlocutor da conversa que constitui o pretexto para a obra. Mas esse artifício literário não deve confundir o leitor: Rafael é o porta-voz de Thomas More, e sua insistência em descrever os benefícios da paz e os horrores da guerra [...]” (Huissman, 2000, p. 562-563). Francis Bacon (1561-1626) é autor da utopia intitulada: “Nova Atlântida”. “Uma viagem imaginária [...], que tem valor de metáfora, termina na descoberta de uma ilha do Pacífico, chamada Bensalém, na qual há um Colégio dedicado à busca do conhecimento e ao estudo de suas aplicações; em outras palavras, na qual está instaurado, com todo o respeito que lhe é devido, um Instituto de Ciências e Técnicas. Isto porque, para Bacon, a filosofia teórica só tem interesse se acompanhada por uma filosofia prática; assim também, para ele, a reforma do entendimento passa pela reforma da sociedade” (Huissman, 2000, p. 398).

[6] É importante atentar para o comentário de Cacciari sobre as utopias de More e Bacon, especificamente ao analisar que É evidente que para Thomas More não se trata de fundar Utopia, ou para Francis Bacon, a Nova Atlântida. Para ambos, trata-se de elaborar ideias reguladoras, ou melhor, de instituir paradigmas” (Cacciari, 2016, p. 95).

[7] “Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que é produzida e sustentada pelo projeto, manipulação, administração, planejamento. A existência é moderna na medida em que é administrada por agentes capazes (isto é, que possuem conhecimento, habilidade e tecnologia) e soberanos. Os agentes são soberanos na medida em que reivindicam e defendem com sucesso o direito de gerenciar e administrar a existência. O direito de definir a ordem e, por conseguinte, pôr de lado o caos como refugo que escapa à definição. A prática tipicamente moderna, a substância da política moderna, do intelecto moderno, da vida moderna, é o esforço para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com precisão – e suprimir ou eliminar tudo que não poderia ser ou não fosse precisamente definido” (Bauman, 1999, p. 15).

[8] Para maior aprofundamento em torno do desenvolvimento como ideologia, indicamos a seguinte leitura:  BAZZANELLA, Sandro Luiz; GODOI, Cintia Neves; MARCHESAN, Jairo; TOMPOROSKI, Alexandre Assis. Desenvolvimento: conceito ou ideologia? Revista Desenvolvimento em Debate, v. 10, n. 1, p. 57-79, jan./abr. 2022. Disponível em: https://inctpped.ie.ufrj.br/desenvolvimentoemdebate/pdf/ revista_dd_v10_n1_alexandre_tomporoski.pdf.

[9]A partir do fim da Primeira Guerra Mundial é, de fato evidente que, para os Estados-nação europeus, não há mais tarefas históricas atribuíveis. Entendemos de modo completamente equivocado a natureza dos grandes experimentos totalitários do século XX se os vemos apenas como continuações das últimas tarefas dos Estados-nação do século XIX: o nacionalismo e o imperialismo. O que está em jogo agora é algo absolutamente diferente e muito mais extremo, pois se trata de assumir como tarefa a pura e simples existência fática dos povos – ou seja, em última análise, a sua vida nua. Nisso, os totalitarismos do nosso século constituem realmente a outra face da ideia hegelo-kojeviana de um fim da história: o homem alcançou agora o seu telos histórico e não resta outra coisa senão a despolitização das sociedades humanos através do desdobramento incondicionado do reino da oikonomia, ou mesmo a admissão da própria vida biológica como tarefa política extrema. Mas quando o paradigma político – como é verdadeiro em ambos os casos – se torna a casa, portanto o próprio, a mais íntima facticidade da existência corre o risco de transformar-se em uma armadilha fatal. E nós, hoje, vivemos nessa armadilha” (Agamben, 2015, p. 125-126).

[10]Desde a postulação da Doutrina Monroe, no primeiro quarto do século XIX, até a implementação da Política de Boa Vizinhança, nos anos 1930, os Estados Unidos buscaram exercer, de forma continuada, sempre paternalista e muitas vezes violenta, seu domínio econômico, preponderância político-diplomática e influência cultural e ideológica no hemisfério ocidental. No pós-Segunda Guerra, esse padrão de comportamento adquiriu um novo formato, mais coordenado e multifacetado a partir de 1961. [...]. Orientado por uma importante mudança de percepção sobre o papel dos Estados Unidos no continente, que já fora iniciada nos últimos anos do governo Eisenhower, com a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e as negociações em torno da Operação Pan-Americana, Kennedy assume o governo determinado a inovar. Seu primeiro passo, já no segundo mês de mandato, foi anunciar às delegações latino-americanas em Washington a formulação de um amplo conjunto de políticas e programas, apresentado sob o sugestivo rótulo de uma Aliança para o Progresso (AFP, na sigla em inglês)” (Ioris; Mozer, 2019, p. 53).

 

[11] É importante considerarmos que a defesa da democracia como regime por excelência capitaneada em âmbito global pelos Estados Unidos e seus aliados desenvolvidos, tornou-se narrativa ideológica para impor aos povos subdesenvolvidos seus receituários, bem como interferir nos assuntos internos de tais países, entre outras situações. “En rigor, las formas de la democracia constitucional son compatibles con una dictadura invisible del poder económico concentrado, en un contexto neopatrimonialista de abuso de poder, es decir de corrupción política. El liberismo – liberalismo económico sostenido en el autoritarismo político –ya no requiere de las dictaduras militares. Le basta con condicionar a los gobiernos democráticos, con poner a sus tecnocrata en lugares clave del Estado y con manejar la información mediante los multimedios concentrados” (Flax, 2013, p. 61).

[12] A partir do endereço virtual, a ONU apresenta sua proposta de divisão de décadas do desenvolvimento. De acordo com essa divisão, entre 1946 e 1959, a organização concentrou esforços na assistência técnica e na cooperação internacional, estabelecendo bases para futuras iniciativas. A Primeira Década do Desenvolvimento (1960-1970) buscou acelerar o crescimento econômico nos países em desenvolvimento, seguida pela Segunda (1971-1980), que ampliou o foco para justiça social e redução da pobreza. A Terceira Década (1981-1990) enfatizou a necessidade de ajustes estruturais e estabilidade econômica. A partir de 1991, os Relatórios de Desenvolvimento Humano da ONU reformularam a abordagem, priorizando qualidade de vida e capacidades humanas. Com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000-2015), o compromisso global voltou-se para a erradicação da pobreza extrema e ampliação do acesso à educação e saúde. Atualmente, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (2016-2030) consolidam uma agenda mais abrangente, integrando crescimento econômico, inclusão social e preservação ambiental. Essa proposta pode ser encontrada no seguinte endereço virtual https://research.un.org/en/docs/dev/.

[13] “‘A revolta do mais pobre e ignorante’ dos escravos não é biológica, mas a-orgânica, a-biológica. A função da governamentalidade é prevenir, neutralizar, desfazer a ‘revolução’; ela é, portanto, uma política do a-orgânico, isto é, uma política do possível e do impossível. A governamentalidade não é unicamente aquilo que intervém na vida da espécie, ocupando-se da doença e da saúde, da vida e da morte, mas, de maneira muito mais fundamental aquilo que decide o que é possível e o que é impossível” (Lazzarato, 2019, p. 147).

[14] Em artigo publicado pelo jornal virtual “Outras Palavras” em 4 de janeiro de 2016, Giorgio Agamben demonstra como no contexto das sociedades democráticas ocidentais se afirma contemporaneamente a lógica de Estados securitários que solapam as condições de possibilidade da democracia. “Da mesma forma, a segurança em questão hoje não se destina a impedir atos de terrorismo. [...]. Destina-se a estabelecer uma nova relação com os homens, que é a de um controle generalizado e ilimitado. [...]. No Estado de segurança, há uma tendência irrepreensível ao que só pode ser chamado de uma despolitização progressiva dos cidadãos, cuja participação na política é reduzida às urnas. Esta tendência é particularmente preocupante e até havia sido teorizado por juristas nazistas, definindo o povo como elemento essencialmente apolítico, cujo Estado deve garantir a proteção e o crescimento. [...] o que se precisa entender é que, ao se despolitizar os cidadãos, eles não poderão sair de sua passividade, uma que eles são mobilizados pelo medo contra um inimigo estrangeiro que não seja somente externo (como no caso dos judeus na Alemanha ou, agora, com os muçulmanos na França)” (Agamben, 2016).



[i] Artigo recebido em 19/02/2025

  Artigo aprovado em 16/05/2025

 

 O artigo é uma versão ampliada e revisada de artigo que autores apresenaram no “"VII Seminário de Desenvolvimento Regional, Estado e Sociedade”, que ocorreu em Florianópolis, no período de 25 a 28 de setembro de 2024.

 

 

[ii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; aquisição de financiamento; investigação; metodologia; administração do projeto; supervisão; validação; visualização; escrita - rascunho original e escrita – análise e edição.

 

[iii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; aquisição de financiamento; investigação; metodologia; administração do projeto; supervisão; validação; visualização; escrita - rascunho original e escrita – análise e edição.

 

[iv] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal;  aquisição de financiamento; investigação; metodologia; administração do projeto; supervisão; validação; visualização; escrita - rascunho original e escrita – análise e edição.