Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   Paisagem cultural do Vale do Rio da Luz (SC): gestão a partir de dados geoespaciais[i]

 

 

 

 

 

 

Isabela Benedet Bardini[ii]

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Florianópolis - SC, Brasil   

lattes.cnpq.br/3695751048415372     

orcid.org/0009-0008-6689-5851   image   

isabelabardini@hotmail.com       

 

 

Guilherme Linheira[iii]

Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Florianópolis – SC, Brasil     

lattes.cnpq.br/1530563390916359         

imageorcid.org/0000-0002-4416-9938          

guilherme.linheira@udesc.br        

 

 

 

 

 

 

 

 

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Paisagem cultural do Vale do Rio da Luz (SC): gestão a partir de dados geoespaciais

 

Resumo

A colonização germânica ocorrida entre o fim do século XIX e início do XX no Vale do Rio da Luz (Jaraguá do Sul, SC) resultou em um núcleo rural cuja ocupação e cultura apresentam, até atualmente, aspectos materiais e imateriais. O Conjunto foi protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) através do Tombamento em 2007, já que o instrumento utilizado para a proteção de Paisagens Culturais ainda não havia sido finalizado (a Portaria da Chancela de Paisagem Cultural Brasileira foi publicada em 2009). Notando a necessidade de mais ferramentas contribuintes na gestão integrada entre os níveis municipal, estadual e federal, valeu-se de atividades de geoprocessamento combinadas em um software de criação e compartilhamento de mapas interativos na web, compilando informações com base territorial de bancos de dados pré-existentes, com o intuito de analisar a distribuição e as relações entre os principais elementos que contribuem para a caracterização e a descaracterização do Vale do Rio da Luz enquanto patrimônio cultural brasileiro. A partir da produção cartográfica e dos valores culturais, históricos e paisagísticos destacados no dossiê de tombamento, foram realizadas análises espaciais e visuais que auxiliaram na definição de pontos de interesse prioritário para a atuação da gestão na poligonal protegida desse Conjunto Rural.

 

Palavras-chave: análises espaciais; gestão territorial; patrimônio histórico-cultural; Sistema de Informação Geográfica (SIG).

 

 

 

Cultural landscape of Rio da Luz Valley (SC): management using geospatial data

 

 

Abstract

The Germanic colonization that took place between the late 19th and early 20th centuries in the Rio da Luz Valley (Jaraguá do Sul, SC) resulted in a rural settlement whose occupation and culture still exhibit both tangible and intangible elements. The Complex was protected by the National Historical and Artistic Heritage Institute (Iphan) through a listing in 2007, as the legal instrument for safeguarding Cultural Landscapes had not yet been finalized (the Brazilian Cultural Landscape Chancela Ordinance was published in 2009). Recognizing the need for more effective tools for integrated management across municipal, state, and federal levels, geoprocessing activities have been employed in conjunction with software that creates and shares interactive maps on the web. These maps compile territorial data from pre-existing databases with the aim of analyzing the distribution and interrelationships of the main elements that contribute to both the characterization and mischaracterization of the Rio da Luz Valley as Brazilian cultural heritage. Based on cartographic outputs and the cultural, historical, and landscape values highlighted in the listing dossier, spatial and visual analyses were carried out to identify priority areas for management within the protected zone of this Rural Complex.

 

Keywords: spatial analysis; territorial management; historical-cultural heritage; Geographic Information System (GIS).

 

 

1 Introdução

O Vale do Rio da Luz é um Conjunto Rural localizado no município de Jaraguá do Sul, na mesorregião Norte Catarinense, que foi colonizado predominantemente por germânicos no fim do século XIX (Iphan, 2011). Protegido em 2007 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) através do tombamento, o Vale chegou a ser reconhecido como “paisagem cultural”: uma “porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (Brasil, 2009). Utilizou-se o instrumento jurídico do Tombamento (no Livro do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico), devido ao processo de proteção ter ocorrido antes da elaboração da Portaria da Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, que é o instrumento específico para essa categoria de patrimônio. A Figura 1 demonstra a localização da poligonal de tombamento do Conjunto Rural do Rio da Luz e da antiga poligonal de entorno (área que foi retirada do tombamento na primeira revisão da Portaria de Normatização, pela perda dos seus valores).

 

Figura 1 – Localização do Conjunto Rural do Rio da Luz e poligonal de Tombamento

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

Na chancela de uma Paisagem Cultural, propõe-se a gestão conjunta, em que devem ser ativos “diversos agentes que possuam algum tipo de interface com a paisagem cultural” (Weissheimer, 2012, p. 2-3). A forma com que o Tombamento do Rio da Luz foi delineado aproxima-se dessa proposta de gestão: com um acordo de cooperação entre diversos parceiros (Heidtmann, 2013). No entanto, a expansão urbana, o esvaziamento das áreas rurais e o abandono da atividade agrícola estão entre os processos contemporâneos que ocorrem no município e atingem também o Vale do Rio da Luz, ameaçando-o de perder os seus valores culturais e históricos.

Relacionando o estudo de paisagem e análises espaciais, tem-se obtido resultados frutíferos utilizando métodos de análise quantitativa, tecnologias computacionais e 3S[1] (Fan; Zhang; Lei, 2007 apud Li; Wumaier; Ishikawa, 2019, p. 5, tradução nossa). Li, Wumaier e Ishikawa (2019) analisaram os padrões espaciais dos assentamentos de Linpan (comunidades rurais tradicionais da planície de Chengdu, em Sichuan, na China) a partir do estabelecimento de um banco de dados geoespaciais da cidade de Juyuan e empregando um sistema de informações geográficas para examinar os atributos e mudanças dos povoados.

Tais autores utilizaram imagens históricas do Google Earth para determinar os limites do sistema Linpan, e obtiveram informações de departamentos governamentais (estatísticas e documentos de planejamento) e de levantamento em campo (mapeamento, observação, entrevistas). A comparação entre padrões espaciais foi entre 2005 e 2018, e as análises basearam-se em mudanças no ambiente residencial, estrutura ou função de cada povoado, nos tipos de expansão e em mudanças relacionadas à urbanização e instalação de infraestruturas.

Enquanto paisagens culturais são fenômenos complexos que resultam de atividades humanas sobre a superfície terrestre, as mudanças nos padrões espaciais refletem interações de longo prazo na paisagem, o ambiente natural, a economia social e o desenvolvimento histórico. Construindo uma base de dados espacial e geográfica é possível observar, de forma rápida, mudanças em padrões espaciais em um determinado período (Li; Wumaier; Ishikawa, 2019).

Observando as tendências de ocupação do Conjunto Rural do Rio da Luz e a necessidade de documentação e respaldo técnico para a gestão do patrimônio cultural no território, valeu-se de banco de dados georreferenciado, buscando apoiar a visualização de dinâmicas e potenciais com ferramentas que tornassem o conhecimento do território mais acessível aos gestores e possibilitassem visões estratégicas para instrumentar a formulação de políticas. Utilizou-se, então, o Sistema de Informação Geográfica (SIG) para compilar e disponibilizar dados e informações contribuintes para o entendimento dessa paisagem cultural.

 

2 Aspectos metodológicos

A produção cartográfica elaborada foi pensada para que os técnicos atuantes na gestão do território – planejadores municipais ou o corpo técnico do Iphan – fossem os principais usuários. Foi elaborado um “WebMap” (mapa interativo online), disponível no ArcGIS Online (plataforma de compartilhamento de mapas). Tal formato possibilita a adição de camadas por arquivos (como planilhas ou shapefiles, por exemplo) e a vinculação de dados disponibilizados publicamente na internet. Cada uma das camadas tem um tema específico, tendo sido configurada individualmente, podendo ser sobrepostas umas às outras. Também foram configuradas janelas de informações adicionais, os “pop-ups”, contendo dados alfanuméricos relevantes. Essa confecção teve auxílio dos programas Google Earth e Excel, além do software livre QGIS, sendo o ArcGIS Online utilizado para a compilação das camadas e para a disponibilização online do produto.

O conhecimento das necessidades dos usuários (técnicos e gestores) e dos fatores indispensáveis a serem averiguados a respeito da interferência na paisagem cultural do Vale aconteceu com o acompanhamento da Superintendência do Iphan em Santa Catarina, além da pesquisa bibliográfica em referencial teórico-científico sobre patrimônio histórico-cultural, planejamento urbano e regional e cartografia temática. Os fatores elencados para averiguação estão dispostos no quadro 1, que também demonstra o objetivo e a fonte dos dados espaciais de cada camada temática elaborada.

 

 

Quadro 1 – Informações dos fatores elencados para representação no mapa

Fator

Objetivo

Fonte

Patrimônio histórico-cultural

Mapeamento das edificações de interesse histórico-cultural, locais de produção de produtos coloniais e locais em que se realizam celebrações

Iphan[2]

Usos

Mapeamento dos usos dos locais com bens patrimoniais (agropecuário, recreativo, residencial, turístico-cultural comercial, turístico-cultural comunitário ou sem uso)

Iphan[3]

Intervenções

Mapeamento das intervenções na poligonal de tombamento, conforme normatização de 2019 (Portaria Iphan n. 318/2019)

Iphan[4]

Urbanização

Mapeamento dos loteamentos e desmembramentos regulares, irregulares, em aprovação e “aparentes”

Prefeitura Municipal de Jaraguá do Sul[5]

APP

Mapeamento de áreas a serem protegidas por preservação permanente conforme o Código Florestal (Lei 12.651/2012)

SICAR[6] e FBDS[7]

Zoneamento Plano Diretor

Mapeamento das zonas do plano diretor incidentes na poligonal de tombamento do Conjunto Rural do Rio da Luz

Prefeitura Municipal de Jaraguá do Sul

Setorização Portaria de Tombamento

Mapeamento dos setores de proteção definidos pelo Iphan para as intervenções na poligonal de tombamento

Iphan

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

Para a representação dessas informações em mapa, valeu-se de um projeto cartográfico conforme Ramos et al. (2018), visando as sobreposições consideradas mais relevantes entre camadas para a definição de locais estratégicos, subsídio das análises e discussões. O projeto cartográfico é a junção dos processos mentais que ocorrem durante a abstração sobre a representação cartográfica que está sendo criada (Ramos et al., 2018). Nesse processo, foram definidas as classes de informação (por exemplo, os tipos de uso, os tipos de intervenção etc.), as variáveis espaciais (ponto, linha ou polígono), os níveis de medida (quantitativo, qualitativo, ordenado etc.), as variáveis visuais (cores, valores etc.) e os símbolos (formas, tamanhos etc.) de cada camada temática da produção cartográfica interativa.

As sobreposições entre as camadas no ArcGIS Online propiciaram análises espaciais e a definição de pontos de interesse para análises visuais. Os locais considerados importantes para serem verificados em campo foram onde houvesse cruzamentos de dados, fossem eles fatores que caracterizam essa paisagem cultural, ou seja, representativos dos valores pelos quais o Conjunto foi protegido, ou fatores de impacto negativo para tais valores. Além da concentração de informações das camadas sobrepostas (cruzamento de dados), elencaram-se locais com variedade de tipos: como diferentes usos ou intervenções, por exemplo.

Na verificação in loco, considerou-se principalmente a apreensão de elementos visuais a partir das vias públicas, levando em conta a apreensão de significados, relações e necessidades percebidas através da experiência, ao estar no lugar. Pôde-se, com isso, constatar locais a serem enfocados pela gestão, seja por apresentarem concentração de valores da paisagem cultural do Vale do Rio da Luz, conforme descritas no Dossiê de Tombamento, ou por apresentarem maior grau de interferência e urbanização, demandando estratégias para manutenção do patrimônio histórico, cultural e paisagístico do Conjunto.

 

3 Resultados e discussões

O mapa online interativo pode ser acessado no site do ArcGIS Online, em busca por “GeoPortal Rio da Luz (GRL) - legenda interativa”. A camada de patrimônio histórico-cultural foi estilizada em cores conforme o “tipo de patrimônio” constante no local (edificação, produção colonial ou celebração) e a variável espacial utilizada foi estilizada em pontos. A Erro! Fonte de referência não encontrada. demonstra a visualização dessa camada bem como da janela de informações quando se clica sobre uma feição. A diferenciação entre usos também se deu de forma qualitativa em cores (uso residencial, agropecuário, comercial, comunitário, recreativo e sem uso) em uma camada temática própria (Erro! Fonte de referência não encontrada.).

 

Figura 2 – Exemplo da visualização final da camada de Patrimônio do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

Figura 3 – Exemplo da visualização final da camada de Usos do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

A estilização da camada de intervenções foi qualitativa conforme o tipo de intervenção (construção, terraplanagem, restauro, demolição, abertura de servidão, desmembramento e supressão de vegetação) e valeu-se do efeito visual de agrupamento de pontos para a noção da concentração espacial de intervenções na poligonal protegida (Erro! Fonte de referência não encontrada.). Para a camada de urbanização, foram utilizados polígonos diferenciados qualitativamente por cores entre “loteamentos irregulares”, “loteamentos regulares” e “loteamentos/ desmembramentos em aprovação” (Erro! Fonte de referência não encontrada.).

 

Figura 4 – Exemplo da visualização final da camada de Intervenções do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

Figura 5 – Exemplo da visualização final da camada de Urbanização do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

As Áreas de Preservação Permanente foram estilizadas com símbolo único em polígonos, no intuito de sinalizar a existência de APP, seja qual fosse o tipo, para que fossem constatadas as sobreposições com as demais camadas temáticas. Caso o usuário tenha interesse em saber qual é o tipo de APP, essa informação aparece nos pop-ups ao clicar sobre a feição (Erro! Fonte de referência não encontrada.).

Figura 6 – Exemplo da visualização final da camada de APPs do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

As camadas com o zoneamento urbano do Plano Diretor Municipal e a setorização da Portaria de Normatização do Tombamento também conta com polígonos, estilizados de acordo com cada zona (Erro! Fonte de referência não encontrada.) ou setor (Erro! Fonte de referência não encontrada.).

 

Figura 7 – Exemplo da visualização final da camada de Zoneamento Urbano do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

Figura 8 – Exemplo da visualização final da camada de Setorização do WebMap

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

Sobrepondo-se as camadas de patrimônio histórico-cultural e usos, percebeu-se que, na poligonal tombada, 31% dos bens patrimoniais têm uso residencial enquanto na antiga poligonal de entorno essa porcentagem sobe para 46%. Nessa área, apenas 8% dos bens patrimoniais têm uso agropecuário; enquanto os bens localizados na poligonal tombada têm uso majoritariamente agropecuário (31%) e residencial (31%). Pode-se inferir que há, espacialmente, uma tendência à mudança de uso agropecuário para o residencial entre os bens edificados, e que essa mudança tende à desconfiguração dos valores patrimoniais.

Sobrepondo-se as camadas de urbanização e intervenções, observa-se que a maior parte dos pedidos de intervenção, loteamentos e desmembramentos concentra-se na área da poligonal que beira a antiga poligonal de entorno e que se sobrepõe ao zoneamento urbano (atuais setores T1 e T2, urbano com proteção e áreas urbanizadas com proteção, respectivamente). Nessa área, são 37 (trinta e sete) pedidos de intervenção e 10 (dez) loteamentos ou desmembramentos; enquanto na porção que fica na zona rural do município, são apenas 20 (vinte) pedidos de intervenção e 03 (três) loteamentos. É considerável a intersecção entre construções e loteamentos regulares ou em aprovação. A Erro! Fonte de referência não encontrada. demonstra a concentração das intervenções e de “urbanização” (loteamentos e desmembramentos).

Figura 9 – Concentração de intervenções, loteamentos e desmembramentos na zona urbana e setores T1 e T2 da Portaria de Normatização do Tombamento

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

Essa porção da poligonal tombada, assim como a poligonal de entorno (que servia como amortecimento entre a área tombada e a área mais densamente urbanizada do município de Jaraguá do Sul) foi afetada pela falta de comunicação entre os órgãos públicos ocorrida entre o Tombamento (2007) e a publicação da primeira Portaria de Normatização que regulamenta o Tombamento do Conjunto (2013). Atualmente, esse processo de urbanização foi controlado por restrições impostas pela Portaria do Iphan e pelo Plano Diretor Municipal, após a sua revisão em 2018. Tal fato reforça a importância da integração e colaboração entre variados agentes que interferem no território para uma gestão efetiva e sustentável.

O setor da Portaria de Normatização com maior variedade de pedidos de intervenção no Iphan é o T1 (urbano com proteção); e o setor com menor quantidade geral de pedidos de intervenção, loteamentos e desmembramentos é o setor T3 (de preservação paisagística de fundo de vale). O setor T5 (preservação paisagística de encosta) é o com maior número de pedidos de terraplanagem, sendo também considerável o número de pedidos de construção nesse setor.

Dos 65 (sessenta e cinco) pedidos de intervenção documentados no Iphan, apenas 16 (dezesseis) coincidem ou são consideravelmente próximas aos bens patrimoniais mapeados, representando apenas 23% dos pedidos. Os tipos de intervenções e os usos dos bens incrementaram as análises: os que têm proximidade ou coincidência com bens patrimoniais são construções e terraplanagens, e apenas 03 (três) são restauros, sendo um deles em local residencial, um sem uso e um com uso comunitário. Os bens próximos a novas construções e terraplanagens têm uso principalmente residencial e agropecuário.

Entre as camadas de “urbanização” (loteamentos e desmembramentos) e de patrimônio histórico-cultural é consideravelmente baixa a coincidência de locais. É na zona urbana da antiga poligonal de entorno que se concentra a maioria das coincidências. Mais da metade dos bens localizados nessa área atualmente se encontram “em” ou “próximo a” (<50m de distância) loteamentos ou desmembramentos (58%), enquanto na zona urbana da poligonal tombada, esse valor é de 38% dos bens.

Com a diferença na quantidade de bens mapeados nas zonas rurais da área tombada (53) e da antiga área de entorno (apenas 01), e com a diferença na proporção de bens “em” ou “próximos a” loteamentos/ desmembramentos entre as zonas urbanas da área tombada (38%) e da antiga área de entorno (58%), podem ser deduzidas as hipóteses, respectivamente: de que a poligonal de tombamento está evitando o “desaparecimento” dos bens na zona rural, e de que a poligonal de tombamento está evitando a ocorrência de loteamentos próximos a bens patrimoniais na zona urbana. Ressalta-se que o próprio zoneamento do plano diretor limita o parcelamento do solo na poligonal tombada (considera como ZEIC e indica a observância dos parâmetros do Iphan e do Incra).

Com relação às APPs, dos 77 (setenta e sete) bens mapeados, 27 (vinte e sete), ou seja, 35% dos bens, encontram-se em área considerada hoje como de preservação permanente de margem de curso d’água. Já era esperado certa coincidência entre essas camadas, visto que, no geral, as edificações eram construídas visando a proximidade com fontes de água. As APP de vegetação nativa, nascentes ou reserva legal não coincidem com os bens patrimoniais mapeados.

Com relação à percepção visual de valores pelos quais o Conjunto Rural foi reconhecido como patrimônio nacional, não foram constatadas diferenças consideráveis quando comparados os bens inseridos em (ou muito próximos a) APPs e os bens fora dessas áreas. No entanto, no âmbito da representação territorial para a gestão, pode-se refletir sobre a importância da integração de dados e sua disponibilização pública e conjunta. As informações do meio ambiente natural, assim como das dinâmicas sociais, devem ser integradas na gestão territorial e nas políticas de preservação como um todo – até porque o ambiente se relaciona com as práticas culturais em uma paisagem cultural.

Valendo-se do mapa interativo e das análises visuais in loco dos locais com cruzamento de dados, puderam ser elencados alguns casos mais representativos dessa paisagem cultural (características pautadas no Dossiê de Tombamento) e as visadas que representam locais com potencial para serem representativas, mas que atualmente têm elementos que dificultam essa percepção - devendo, por isso, também ser foco da atenção da gestão (Erro! Fonte de referência não encontrada.).

 

Figura 10 – Locais elencados como prioritários para a atuação da gestão (áreas amarelas)

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

As “visadas” (áreas visuais) com maior interesse e necessidade de foco da gestão por apresentarem valores preservados foram: Visada “Casa Ewald Siewert”; Visada “Igreja Comunidade da Paz” (Erro! Fonte de referência não encontrada.); e Visada “Casa Alvino Hornburg” (Erro! Fonte de referência não encontrada.). Nas três, existe bem patrimonial edificado juntamente com bem imaterial (do tipo celebração ou produção de produto colonial) e uso agropecuário ou uso comunitário. Duas das mais representativas tiveram cruzamento com a camada de APPs, e nenhuma teve sobreposição com a camada de urbanização. As três localizam-se na zona rural da poligonal tombada, uma delas no setor de preservação paisagística de encosta (T5) e duas no setor de preservação paisagística de planície (T4) da Portaria de Normatização. As imagens a seguir exemplificam as visadas mais representativas dos valores paisagísticos, culturais e históricos do Conjunto Rural.

 

Figura 11 – Visão da Igreja Comunidade da Paz (patrimônios: bem edificado e celebração, com uso turístico-cultural comunitário e concentração de pedidos de intervenção – demolição e restauro)

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

 

Figura 12 – Visão da Casa Alvino Hornburg (patrimônios: bem edificado e produção colonial, com uso agropecuário, sem pedidos de intervenção e com APP)

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

Já as visadas que apresentaram potencial para serem representativas dos valores, por isso também elencadas para serem foco da gestão, foram as elencadas no Erro! Fonte de referência não encontrada. a seguir, que contém outras informações das camadas temáticas:

 

Quadro 2 – Informações das visadas com potencial para estarem dentre as mais representativas dos valores paisagísticos, culturais e históricos do Conjunto Rural do Rio da Luz

Visada

Patrimônio

Uso

APP

Urb.

Intervenção

Zona (PD)

Setor (Iphan)

Casa Emilio Siewert

Edificado

Comercial

Sim

Não

Não

Rural

T5

Casa Paul Schwartz

Edificado

Recreativo

Sim

Não

Não

Rural

T5

Casa Henrich Schwartz

Edificado

Recreativo

Sim

Não

Não

Rural

T4

Belo Vale Eventos

Edificado

Comercial

Não

Não

Terraplanagem

Rural

T4

Casa Arno Klitzke

Edificado

Residencial

Sim

Não

Construção

Rural

T3

Casa Piske

Edificado

Agropecuário

Sim

Não

Não

Rural

T3

Casa Mathias

Edificado

Residencial

Sim

Não

Não

Rural

T4

Casa Bernardo Ehlert

Edificado

Agropecuário

Não

Sim

Construção

Zona Industr.

T1

Casa Waldir Lemke

Edificado

Residencial

Não

Sim

Construção

Zona Mista

T2

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

Algumas delas são demonstradas nas imagens a seguir, a título de exemplo, sendo duas na zona rural e duas na zona urbana da poligonal de tombamento. Na visão do Belo Vale Eventos (Erro! Fonte de referência não encontrada.), há, enquanto elementos caracterizantes do Conjunto, a igreja Apóstolo Paulo, os morros e o volume da edificação de interesse histórico-cultural. O estacionamento não obstrui a visão, porém, pela grande área, interfere na continuidade da vista, que seria originalmente composta por vegetação e pastagens.

 

Figura 13 – Visão do Belo Vale Eventos (patrimônio: bem edificado, com uso comercial e pedido de intervenção terraplanagem), na zona rural

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

Na visão da Casa Arno Klitzke (Erro! Fonte de referência não encontrada.), percebe-se que o pedido de intervenção (construção) não interfere na visão do bem, já que respeita os afastamentos mínimos e o uso de materiais e volumetrias especificados na Portaria de Normatização do Iphan. A dificuldade na visualização do bem edificado dá-se em função da curva no traçado da via[8], e de elementos como o poste de energia, a edificação em madeira (“rancho”) e a vegetação.

 

Figura 14 – Visão da Casa Arno Klitzke (patrimônio: bem edificado, com uso residencial e pedido de intervenção – construção), na zona rural

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

A Casa Ehlert (Erro! Fonte de referência não encontrada.), com uso agropecuário, localiza-se na zona urbana, apresenta um pedido de intervenção regular (construção de residência unifamiliar) e um desmembramento em aprovação pela prefeitura. A visão do bem edificado está parcialmente obstruída por vegetações; e a existência de postes e fios de eletricidade interferem na sua leitura. Além disso, é possível inferir que os dados da prefeitura municipal estão desatualizados quanto ao andamento desse desmembramento – que já ocorreu, inclusive com novas construções no local.

 

Figura 15 – Visão da Casa Ehlert (patrimônio: bem edificado, com uso agropecuário, pedido de intervenção – construção, e urbanização – desmembramento), na zona urbana

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

A Casa Waldir Lemke (Erro! Fonte de referência não encontrada.), mesmo estando em um loteamento que já conta com algumas construções, na zona urbana da poligonal de tombamento, ainda mantém alguns dos valores paisagísticos do Conjunto Rural do Rio da Luz, como a visão do bem e os morros ao fundo. Apesar de não haver, no local, elementos como pastos, plantações e ranchos de madeira característicos da ocupação rural, considera-se que as restrições impostas pela Portaria de Normatização (como os materiais e volumetrias das novas construções, afastamentos mínimos e gabaritos máximos) fazem com que o impacto visual das construções não seja tão descaracterizante da área tombada.

 

 

 

Figura 16 – Visão da Casa Waldir Lemke (patrimônio: bem edificado, com uso residencial, pedidos de intervenção – construções, e urbanização – loteamento), na zona urbana

Fonte: elaborado pelos autores, 2025.

 

No geral, considerou-se que intervenções próximas a bens patrimoniais não interferem negativamente na paisagem a ponto de descaracterizar os valores pelos quais ela foi reconhecida como de interesse histórico-cultural. A “Igreja Comunidade da Paz”, a “Belo Vale Eventos”, a “Casa Bernardo Ehlert”, a “Casa Arno Klitzke”, e muitas outras receberam intervenções e não deixaram de apresentar aspectos relevantes na caracterização do Conjunto Rural do Rio da Luz. É importante mencionar que as intervenções averiguadas nesta análise passaram por processo de aprovação no órgão responsável, o Iphan, que analisa, sugere adequações e defere (ou indefere) a realização da intervenção.

A construção de novas edificações na poligonal de tombamento fica concentrada nos loteamentos, na zona urbana. Pode-se considerar que a concentração de pedidos de intervenção não necessariamente desconfigura a paisagem, sendo mais significativo o tipo de intervenção do que a concentração dessas. Quando a interferência vem na forma de “urbanização”, porém, há maior agressão sobre os valores do Conjunto. A configuração dos loteamentos é decorrente da decisão de privados em conjunto com a decisão de planejadores.

Parte da interferência nos valores patrimoniais do Conjunto recai sobre decisões dos proprietários dos bens – a partir, por exemplo, da alocação de plantações e vegetações no entorno. Com base nisso, a transparência dos órgãos que atuam na gestão territorial para com a comunidade é necessária, evitando conflitos e ruídos de informação a respeito do direito de usufruto das suas propriedades e auxiliando na percepção de potencialidades paisagísticas, culturais e turísticas.

O uso da propriedade foi um fator considerável na percepção visual de valores do Conjunto Rural. Em edificações com uso residencial, quando não acompanhado de uso agropecuário, observou-se a falta de elementos considerados importantes no contexto dessa paisagem cultural, como plantações, pastos e ranchos (construções de madeira auxiliares nas atividades rurais). A destinação do uso da propriedade envolve o processo de êxodo rural, representado pela falta de utilização de algumas propriedades (abandono) e/ou a utilização apenas aos fins de semana (uso recreativo). Esse movimento decorre não só da decisão dos proprietários, mas também de um contexto de urbanização e industrialização, em conjunto com decisões em base territorial da gestão pública.

 

4 Considerações finais

O enfoque deste artigo foi o tratamento dos dados geográficos e as possibilidades de cruzamento entre eles, objetivando inferências que auxiliassem na resolução de problemas da gestão, principalmente relacionados à preservação do patrimônio histórico-cultural do Conjunto Rural do Rio da Luz. A estratégia metodológica desenvolvida foi relevante para o desenvolvimento do pensamento sobre o uso de dados geoespaciais e o material cartográfico na gestão de paisagens culturais enquanto categoria de patrimônio. Houve a possibilidade da averiguação de relações entre os dados e processos territoriais, além de explicitação das potencialidades da porção territorial, o que é essencial para uma gestão mais eficiente.

O uso do SIG e do mapa online interativo apoia o entendimento do território por parte dos gestores e propicia a manipulação de dados geográficos por diferentes usuários, gerando um cenário favorável à gestão compartilhada. A versatilidade na mudança de escala e a inserção de janelas de informações adicionais (“pop-ups”), nestes casos, são importantes para averiguações no âmbito da totalidade da poligonal a ser protegida e, ao mesmo tempo, de cada bem patrimonial individualmente. Também é importante frisar que, com base nas análises in loco, compreendeu-se ser fundamental o envolvimento do sujeito no território para a percepção de questões subjetivas no estudo de paisagens. O pesquisador inserido em campo percebe dinâmicas espaciais, direta ou intuitivamente, fugindo do repertório previamente consolidado sobre o lugar.

 

Referências

 

BRASIL. Portaria nº 127, de 30 de abril de 2009. Estabelece a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, nº 83, Seção I, p. 17, 5 maio 2009.

 

HEIDTMANN JR., D. E. D. Gestão de paisagem cultural da imigração alemã utilizando método multicritério de apoio à decisão. 2013. Tese (Doutorado em Engenharia Civil) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

 

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN). Roteiros Nacionais de Imigração: dossiê de tombamento: histórico, análise e mapeamento das regiões. Florianópolis: IPHAN, 2011. v. 1.

 

LI, Q.; WUMAIER, K.; ISHIKAWA, M. The spatial analysis and sustainability of rural cultural landscapes: Linpan settlements in China’s Chengdu Plain. Sustainability, Basel, Switzerland, v. 11, n. 16, p. 4431, Jul./Aug. 2019.

 

RAMOS, A. P. M.; RODRIGUES, B. M.; OSCO, L. P.; ANTUNES, P. A. Abordagem sistemática de projeto cartográfico para a análise da qualidade ambiental de bacia hidrográfica. Revista Brasileira de Geografia Física, Pernambuco, v. 11, n. 3, p. 1079-1100, set. 2018.

 

WEISSHEIMER, M. R. Paisagem cultural brasileira: do conceito à prática. Fórum do Patrimônio, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, jul./dez. 2012.



[1] A sigla “3S”, em inglês, representa o sistema de posição global, o sistema de informação geográfica e o de sensoriamento remoto – técnicas cuja integração forma a base para informações geoespaciais.

[2] Programa de Gestão aos Bens que integrou ações compensatórias ao patrimônio histórico e cultural dos Conjuntos Rurais do Rio da Luz e de Testo Alto como requisito ao licenciamento ambiental de uma Linha de Transmissão de energia de 525 kV entre Blumenau e Curitiba-Leste, ocorrido entre 2018 e 2020. O processo completo pode ser consultado publicamente pelo número 02001.000946/2016-67 no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Iphan.

[3] Mesmo Programa de Gestão. 

[4] Relatório de processos do Iphan/SC para o município de Jaraguá do Sul (SC).

[5] GeoJaraguá. Acesso em: https://sistemas.jaraguadosul.sc.gov.br/index.php?class=GeoWelcomeView.

[6] Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural.

[7] Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável.

[8] Os bens do Conjunto foram construídos antes das vias atuais – que, por sua vez, foram inseridas antes do Tombamento, sem considerar os valores históricos, culturais e paisagísticos da ocupação colonial.



[i] Artigo recebido em 24/01/2025

  Artigo aprovado em 24/07/2025

 

O artigo é uma versão ampliada e revisada de artigo que autores apresenaram no “"VII Seminário de Desenvolvimento Regional, Estado e Sociedade”, que ocorreu em Florianópolis, no período de 25 a 28 de setembro de 2024.

 

 

[ii] Contribuições da autora: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do projeto; recursos; software; visualização; escrita – rascunho original; e escrita – análise e edição. 

 

[iii] Contribuições do autor: conceituação; análise formal; recursos; supervisão; validação; e escrita – análise e edição.