Entrevista com Maria de Nazareth Baudel WanderleyCaixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   : Ensinando a questão rural como um tema essencial para a sociedade brasileira[i]

 

         Entrevista concedida a:

 

Ivón Natalia Cuervo

Corporación Universitaria Comfacauca (Unicomfacauca)

Popayán - Colômbia

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icuervof@gmail.com   

 

Ania Pupo Vega

Universidad Internacional de Valencia (VIU)

Valencia - España.

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aniapupovega@gmail.com   

 

Hélio Bento Maúngue

Universidade Eduardo Mondlane (UEM)

Maputo - Moçambique

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helio.b.maungue@uem.ac.mz    

 

Karolyna Marin Herrera

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Florianópolis - SC - Brasil

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ícone doi, logokarolyna.herrera@ufsc.br     

 

Figura 1 – Encontro para a entrevista

 

Da esquerda para a direita: Ivón Natalia Cuervo (entrevistadora), Abdias Vilar de Carvalho (in memoriam), Maria Nazareth Baudel Wanderley, Ania Pupo Vega (entrevistadora) e Hélio Bento Maúngue (entrevistador)

Da esquerda para a direita: Ivón Natalia Cuervo (entrevistador), Abdias Vilar de Carvalho, Maria Nazareth Baudel Wanderley, Ania Pupo Vega (entrevistador) e Hélio Bento Maúngue (entrevistador).

Fonte: Autores, 2025.

 

Maria de Nazareth Baudel Wanderley, doutora em Sociologia pela Universidade de Paris X, Nanterre, é uma referência indispensável para o estudo da questão rural no Brasil, com foco em temas como o campesinato, a agricultura familiar, a relação urbano-rural e o rural como espaço social de vida e de trabalho. Com mais de 40 anos de carreira acadêmica, foi professora de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

As reflexões de Wanderley sobre "o rural" e a ruralidade, bem como sobre de que maneira esses conceitos teóricos são observados em todo o território, e os conceitos de ruptura e continuidade no espaço rural, seriam suficientes para colocá-la enquanto uma importante referência dentro da geografia. Sua produção intelectual inclui, além disso, artigos e livros acerca da diversificação dos espaços rurais, das dinâmicas territoriais e migratórias rural-urbanas, da reforma agrária e do desenvolvimento territorial no Brasil.

A autora contribui com outra compreensão da perspectiva geográfica do meio rural, distinta daquela que a percebe apenas em termos de densidade populacional e atividades agrícolas. Sua concepção vai além desses limites, abrindo o leque de atividades que se realizam no meio rural. Wanderley reforça a importância da dimensão territorial, entendendo-a como um lugar de vida e trabalho, evidenciando um modo de vida único e remetendo à identidade.

Nas análises sociológicas do mundo rural desenvolvidas pela autora, são evidenciadas as estreitas ligações entre diferentes aspectos da vida social. Essas análises promovem diálogos da sociologia com outras ciências sociais, como geografia, antropologia, economia e história. A partir desses vínculos, procura compreender e interpretar sociologicamente a evolução do mundo rural. As perspectivas da autora enfatizam a importância da transversalidade na sociologia e da transdisciplinaridade com outras ciências.

Nas novas perspectivas da autora, destaca-se sua defesa de uma sociologia rural capaz de responder às questões da sociedade, conforme as palavras de Jollivet (1998, p. 12): “uma sociologia rural muito sensível aos avatares do questionamento social sobre o rural - e, digamos, quase próxima do seu “objeto” - e que conserva o seu modo próprio de ver: eis aí, ao que parece, a característica da sua “postura” durante este meio século de sua história.”

Entre os livros publicados por Wanderley, destacamos os seguintes: Capital e Propriedade Fundiária (1979)[1]; O mundo rural como um espaço de vida (2009)[2]; Um saber necessário: os estudos rurais no Brasil (2011)[3]; A singularidade do rural brasileiro: implicações para tipologias territoriais e elaboração de políticas públicas. Coautoria com Arilson Favareto (2013); Participação, Território e Cidadania (2014); Juventude rural: vida no campo e projetos para o futuro (2015); Uma singularidade histórica: o olhar de uma pesquisadora brasileira sobre o mundo rural francês (2018)[4].

Sendo pesquisadora e educadora de pesquisadores/as, ela continua inspirando as novas gerações a seguirem suas pegadas e a combinarem o conhecimento com a responsabilidade social. Ao longo do seu percurso acadêmico é possível apreciar a sua preocupação em situar as dinâmicas e transformações do mundo rural na evolução da sociedade; isso pode ser percebido na entrevista, pretexto para a construção deste texto.

A conversa ocorreu durante o VIII Encontro da Rede de Estudos Rurais, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina em Florianópolis, no dia 28 de agosto de 2018, Rede de Estudos que a professora Wanderley ajudou a fundar em 2006. Na ocasião do VIII Encontro, a professora fez a palestra de abertura. Além disso, a Rede estabeleceu, como homenagem, desde seu VII Encontro, a entrega do Prêmio Maria de Nazareth Baudel Wanderley para a melhor tese em Estudos Rurais no Brasil.

A entrevista foi elaborada por quatro integrantes do extinto Núcleo de Estudos em Agricultara Familiar (NAF) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coordenado pela Professora Maria Ignez Silveira Paulilo, que teve uma entrevista publicada nesta revista em 2019[5]. Uma das coautoras daquela publicação, Ivón Natalia Cuervo, também é coautora do presente trabalho. Por essa razão, decidimos aguardar um número da Revista PerCursos cujo dossiê fosse tematicamente adequado para publicar esta coleta de dados com a professora Wanderley, aproveitando a oportunidade de apresentar nesta revista as perspectivas de duas importantes pensadoras do mundo rural. Além disso, esta publicação representa um marco para as coautoras e o coautor, pois é o último trabalho conjunto enquanto integrantes do NAF.

 

Entrevista

 

Entrevistadores: Quais são as críticas que a professora faz sobre o processo de urbanização e industrialização no Brasil, colocando como foco as consequências para os espaços rurais e seus relacionamentos com as dinâmicas urbanas? 

Nazareth Wanderley: Genericamente, o conceito de urbanização do campo quer exprimir a ideia de que, com o desenvolvimento das cidades, a cultura urbana domina o conjunto da sociedade. No limite, não existiria mais nada que possa ser chamado de rural, tudo vai virar urbano.

 

Esse debate acontece em vários países e no Brasil também. Mas no Brasil tem uma particularidade que é uma concepção mais forte de que o campo é associado ao atraso econômico, social e cultural. Você “xinga” uma pessoa de caipira, você supõe que a pessoa não sabe se virar numa sociedade urbana, porque vem do campo. Existe uma ideia de progresso associada à cidade e uma ideia do atraso associada ao rural.

Eu participei em uma grande pesquisa organizada pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) (Miranda; Silva, 2013) que aborda essa ruralidade contemporânea. No volume número 21, o texto sobre o Brasil, que eu escrevi junto com Arilson Favareto, refletiu sobre a visão do que é rural e urbano na história do Brasil, a partir da existência de uma civilização agrária, ou, como disse Sérgio Buarque de Holanda, “uma civilização de raízes rurais”.

Quando começa a industrialização e a urbanização tal concepção vai sendo substituída por outra, centrada na influência urbana sobre o conjunto do rural. Essa é uma das características da história do Brasil, a desvalorização do rural, e que vai se expressar em vários aspectos. Quem estuda isso é José Eli da Veiga no livro Cidades imaginárias (2002). José Eli afirma que Getúlio Vargas, através de um decreto legislativo, definiu ou reiterou a tradição que qualquer sede municipal no Brasil é urbana. Independente de quantos habitantes tem, da densidade econômica, da cultura, a sede do município é urbana. O que sobra é o rural, que por definição tem menos gente, tem menos construções, tem menos atividades econômicas, tem menos diversificação. O autor mostra que, se você usa esse critério, de fato o rural no Brasil é residual, tende a acabar.

São as Câmaras de Vereadores no município, que definem o recorte urbano – rural. Hoje, os dados demonstram a queda de praticamente a metade da população rural, que é contada desse modo: é rural quem ainda não foi para a cidade. Essa é uma concepção que não existe em outros lugares, poucos países adotam essa definição.

 

Entrevistadores: A aparente diminuição da população rural pode ser atribuída a uma contagem errada no censo?

 

 

Nazareth Wanderley: Não se trata de uma contagem errada, mas de uma contagem feita a partir dessa definição legal, que é que todas as sedes de município são urbanas e o rural é a periferia da cidade.

 

Entrevistadores: Algo semelhante aconteceu na Colômbia, a sede dos municípios é comumente chamada de “cabecera” (cabeceira) e as outras áreas rurais eram chamadas de “resto”, mas agora são reconhecidas como “rural disperso”.

Nazareth Wanderley: Por essa concepção, você não pode pensar no rural melhor; quando você pensa em um rural melhor, esse rural vira urbano, passa a ser considerado urbano.

O que é importante para mim hoje, é considerar que a sociedade tem desnivelamentos. O historiador francês Fernand Braudel refere-se a “desnivelamentos” e “descontinuidades”, que caracterizam o rural de um lado e o urbano do outro. Quem defende a urbanização do campo imagina um continuum entre campo e cidade em que as diferenças finalmente não importam.

Num debate acadêmico, afirmei: “Se você fala de um continuum, você está se referindo a um polo urbano e a um polo rural. Quer dizer que os dois polos existem e são distintos”. Na ocasião, um ilustre professor me contestou defendendo que “Nesse continuum, o rural tende para zero e o urbano tende para o infinito”. Essa é a ideia do continuum, segundo o qual tudo é ou será urbano.

 

Entrevistadores: Professora, e pensando nessa tendência de querer urbanizar e modernizar o campo, como podemos incentivar as administrações públicas para melhorar a oferta de bens e serviços no rural e para inserir os agricultores nas dinâmicas do mercado respeitando o modo de vida camponês?

Nazareth Wanderley: Essa discussão é muito interessante. Você percebe muito aqui no Brasil, a compreensão de que a vida no campo supõe um isolamento. Na realidade, nas famílias do campo, o filho vai estudar na cidade, vai trabalhar na cidade, mesmo que continue morando no campo, ou ainda a família vai procurar os serviços médicos na cidade. Isso quer dizer que há uma circulação campo-cidade. Para alguns, esses movimentos para a cidade resultam na perda da substância rural. Eu não concordo com isso... Você não pode imaginar o rural isolado. Por exemplo, se um agricultor realiza uma experiência da pluriatividade, e essa segunda atividade é fora do campo, ele não é menos rural, não deixa de ser rural, é um rural que está em contato com a cidade, ele não se fecha, não se isola.

Essa concepção de urbanização chega a tal ponto que, até o acesso à televisão e à Internet é visto como incompatível com a condição de ser rural. Penso que as pessoas que moram no campo não deixam de ser rurais quando circulam nos níveis superpostos de espaços de vida e de trabalho.

Na França, a maioria da população rural não é mais de agricultores, mas no Brasil a maioria da população rural está na agricultura. Eu falo de três níveis de circulação das pessoas que vivem no campo. O primeiro nível é o próprio local, a família e a vizinhança, onde é possível acessar alguns serviços; o segundo nível é o municipal, em que o rural se integra à cidade para ter acesso ao supermercado, à escola, aos serviços médicos e aos serviços da prefeitura. O terceiro nível necessário à vida dos que moram no campo é regional. Por exemplo, não tem faculdade no sítio, o sitiante tem que ir para uma cidade maior. Dessa forma, o rural constrói um espaço de vida para ele, centrado no campo, mas que não está fechado nesse espaço e não deixa de ser rural porque se integra aos espaços mais amplos. Esse é um processo natural e desejável, que caracteriza o rural inserido nas sociedades modernas urbano-industriais.

 

Entrevistadores: E a identidade é um processo vivo, um processo dinâmico... Tem pessoas que falam que acontece uma “desterritorialização”, mas, eu concordo com o Rogério Haesbaert (2005), que propõe uma “reterritorialização”, ou seja, não se trata de uma perda de identidade, mas de uma nova construção que integra as vivências no novo território.

Nazareth Wanderley: São espaços diferenciados, integrados, onde se observam os processos de localização, mas também da circulação, da mobilidade, o que inclui a cidade. Tem pessoas que saem do campo para a cidade e vão embora. Tem outras pessoas que vão e voltam. Emília Pietrafesa de Godoi analisa essa situação. Em seus estudos no Piauí, ela observou que uma parcela dos camponeses que migram para São Paulo não pretende voltar, instalando-se, definitivamente, no novo ambiente de vida e de trabalho. Uma parte deles, no entanto, mantém laços profundos com a família que permanece no sítio, onde parentes cuidam de suas parcelas de terra herdadas e da produção nelas efetuadas.

 

Entrevistadores: E como a professora descreve a simbiose entre um passado e um presente no rural brasileiro?

Nazareth Wanderley: Eu penso muito na dimensão de disputa que existe nas relações de poder. De fato, o campo representa o mais arcaico, o mais atrasado no Brasil, porque está dominado pelas oligarquias, pelo latifúndio, pela concentração da terra, etc. Nesse sentido, o desejo das pessoas do campo seria, naturalmente, de abandonar sua vida rural, precária, para viver no mundo urbano, moderno, industrial. Penso que essa polarização assim entendida, de que o domínio oligárquico está ligado ao rural e o domínio democrático e moderno está associado à cidade não funciona assim, porque as duas experiências se misturam. Um exemplo que é para mim muito claro é o de José Sarney. Esse tradicional político é “o dono” do Maranhão, um dos Estados mais pobres do Brasil. De alguma forma, ele representa o que tem de mais arcaico, a dominação oligárquica. Mas, ao mesmo tempo, ele foi Presidente da República, Presidente do Senado, membro da Academia Brasileira de Letras. Quer dizer que ele é moderno e atrasado, eu acho que não dá para separar, há uma mistura, são alianças, o atraso impregna o moderno.

 

Entrevistadores: Aproveitando a menção à análise da conjuntura política, quais são as principais transformações do mundo rural brasileiro que aconteceram depois dos períodos de governo Lula/Dilma?

Nazareth Wanderley: Eu já fiz várias pesquisas no Nordeste e vou dar um exemplo das mudanças que ocorreram. Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso foi aprovada a aposentadoria rural, que fez uma enorme diferença na vida das famílias. Como se sabe, a grande dificuldade das populações camponesas no Brasil, e não só no Nordeste, é a disponibilidade de dinheiro, que ajude a completar o suprimento das necessidades obtidas através do autoconsumo. A aposentadoria rural alterou essa deficiência histórica. Por exemplo, se você tem o casal de avós na casa, com dois salários-mínimos, isso muda tudo. Tem um estudo muito interessante do Guilherme Delgado que mostra como é que as famílias têm reinvestido o dinheiro da aposentadoria dos idosos na propriedade e na educação das crianças, é impressionante o que relata esse autor (Delgado; Cardoso Jr., 1999).

Com Lula, eu acho que houve uma enorme mudança que chegou ao Nordeste. A última pesquisa de campo que eu fiz em 2014, foi um estudo muito interessante sobre a política dos Territórios da Cidadania (Cavalcanti; Wanderley; Niederle, 2014). O objetivo era entender o que significou o programa de Territórios da Cidadania para a população do campo. Essa pesquisa foi realizada durante um período de grande seca, seis anos de seca. Crianças com seis anos nunca tinham visto chover no sertão. Visitamos três cidades pequenas no Sertão do São Francisco e nos chamou a atenção a inexistência de ações de saque, comuns nessas situações extremas. Como é do conhecimento geral, em período de seca, ocorre que pessoas famintas invadem feiras para pegar comida. Claro que é uma coisa em si condenável, porque tal ato seria equivalente a um roubo. Mas há um consenso tradicional de que as pessoas estão fazendo isso por extrema necessidade; não sendo, portanto, considerado um roubo. No momento da nossa pesquisa, fomos informados que não havia nenhum registro de “saque” durante toda aquela estiagem. Isso se deve à implementação de uma série de políticas públicas, que permitiam aos agricultores viverem sem aquele recurso.

Nessa pesquisa fomos nas casas dos agricultores, nas comunidades quilombolas e indígenas e percebemos uma diferença enorme, no sentido da garantia da produção e da segurança alimentar e da viabilização de um projeto de futuro na região. Mas o que está acontecendo agora [em 2018] é um desmantelamento disso. Eu não quero entrar em questões eleitorais, mas quando no Nordeste, 60% do eleitorado declara sua intenção de votar em Lula, eles estão expressando o reconhecimento desse legado. Uma jornalista da Globo fazendo uma reportagem sobre a intenção de voto falou que metade das pessoas que se declaram indecisas são mulheres. Por que será? Ela não sabia explicar, mas eu sei, porque são as mulheres que cuidam, são elas que recebem esses benefícios. Em um momento em que Lula está preso, elas vão dizer assim: “Neste sistema eu não sei em quem votar”. De fato, se fez uma diferença significativa porque foram políticas pensadas para os agricultores e políticas que foram efetivadas, não sem contradições, mas têm um sentido que foi garantido. Eu reconheço que houve um avanço para essa população. Você chega à casa de um agricultor no sertão do Nordeste e os filhos estão estudando nas faculdades interiorizadas.

 

Entrevistadores:  E o que a senhora acha das atuais tendências demográficas do mundo rural de envelhecimento e masculinização do campo?

Nazareth Wanderley: Eu sempre quis conhecer essa questão, porque nos países europeus é absolutamente claro que as mulheres saem do campo, porque não são herdeiras. Recomendo a leitura do belo estudo do Pierre Bourdieu sobre o celibato camponês (Bourdieu, 2002). Os herdeiros do sítio são os que ficam, mas, cadê as mulheres para eles se casarem? Eles não precisam de qualquer mulher, mas de uma mulher camponesa que compartilhe o trabalho de uma casa e de um sítio camponês. Então, o fenômeno do celibato masculino acontece até hoje.

Eu já li uns estudos de Ricardo Abramovay, sobre masculinização e envelhecimento da população do campo aqui em Santa Catarina. No Nordeste, eu tenho a impressão de que acontece o contrário, porque quem emigra são os rapazes.

Eu tive uma experiência interessante sobre a juventude rural em Pernambuco e tenho um livro em que publiquei o resultado geral dessa pesquisa (Wanderley, 2015). Eu pedi a um colega meu que me ajudasse a montar a amostra estatística, considerando a proporção entre rapazes e moças. As estatísticas indicavam que eles eram mais numerosos do que elas. Porém, quando encontramos as famílias, não achamos os rapazes. Pensamos inicialmente, que pudesse se tratar de um erro na formulação da amostra, mas depois entendemos o que estava acontecendo. Os rapazes não ficam mais na casa dos pais, eles vão trabalhar fora, mas, continuam declarando que seu domicílio é o sítio, porque precisam do crédito do PRONAF. Na verdade, eles estão fora do campo, mas, os empregos a que têm acesso são, em geral precários, o que não lhes garantem segurança profissional. Por essa razão, a cada quinze dias, voltam para a casa da família, sobretudo para participar do trabalho no sítio. Adotamos essa hipótese para poder analisar o fato de que não achávamos rapazes para entrevistar. Eu desconfio que no Nordeste não é igual ao Sul do Brasil, porque a emigração é mais masculina, mas os especialistas têm que ir atrás de entender esses fenômenos.

 

Entrevistadores: Quais seriam as principais questões que deveriam ser colocadas numa Política de desenvolvimento rural?

Nazareth Wanderley: Não podemos dizer que o Brasil não tem uma política de desenvolvimento rural. Eu acho que tem. Durante muito tempo, o que se chamava política de desenvolvimento rural era a modernização da agricultura, que era uma política enviesada para os grandes proprietários e que implicou um esvaziamento rural.

O debate que aconteceu no Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) tinha como foco a ideia de um desenvolvimento rural pensado a partir das pessoas que vivem no campo. Uma das coisas que eu mais insisto nos meus textos é a percepção do rural como lugar de vida e de trabalho, porque se você parte dessa concepção, o desenvolvimento tem que viabilizar esse lugar de vida e de trabalho e não confundir o desenvolvimento com a modernização da agricultura.

 

Entrevistadores:  E quais seriam algumas formas  pelas quais os estudos em Sociologia Rural poderiam contribuir a melhorar as condições de vida das populações rurais? Como podemos colocar em prática os aprendizados sobre as ruralidades?

Nazareth Wanderley: Eu não sei. Nosso trabalho é de pesquisa, de desvendar, tentar explicar, situar isso historicamente. Agora, todo pesquisador é cidadão e enquanto cidadão também atua. O campo é muito amplo. Acho que nosso trabalho na Sociologia Rural é, essencialmente, o de escutar e explicar.

 

Entrevistadores: Eu tinha lido algo do Graziano ligado a commodities, que ele fala que apostar nas commodities é um erro, importar esse modelo de desenvolvimento rural de implementação do agronegócio [...] não sei se a senhora tinha ouvido falar e se tem alguma coisa para comentar sobre isso.

Nazareth Wanderley: Não acompanho mais. Eu sei o que tem da EMBRAPA, o demais eu não sei, não acompanho mais. O problema, para mim, é que o progresso na agricultura e o progresso tecnológico são necessários, mas a pergunta que eu faço é: quem é o portador desse progresso? É a relação de forças sociais dominante na sociedade que vai construir sua própria resposta.

 

Uma condição para virar moderno no Brasil é, em geral, ser grande. Esse não é o caso, por exemplo, da França. Observa-se, nesse país, que há poucos agricultores na França, cujos estabelecimentos ultrapassam 500 hectares, a maior parte é de agricultores familiares com uma média de 60 hectares. Porém, estes últimos são modernos, extremamente sofisticados em suas práticas produtivas. Então são escolhas das sociedades: quem vai carregar esse progresso? E isso vai dar em caminhos completamente diferentes. Por isso quis conversar ontem na Conferência (Wanderley, 2019) sobre o assunto de quem é o triunfante. A tecnologia, no caso do campo, está definida por sua relação com a natureza, não é qualquer tecnologia que pode ser justificada para o campo, mas precisa da tecnologia porque tem o desafio grande de alimentar a humanidade. Então não é uma crítica à tecnologia, mas é uma crítica a quem se apropria dessas condições.

 

Entrevistadores: Ontem eu fiquei pensando muito nas ideias da senhora porque escrevi faz pouco tempo um artigo intitulado: A quem moderniza a modernidade? Pensando nesse aspecto acerca das visões sobre o rural. Eu fiquei surpresa quando cheguei no Brasil porque além dos sistemas políticos, em meu país que transita para o socialismo...

Nazareth Wanderley: Você é cubana?

Entrevistadores: Sou sim. Meu país teve esses mesmos erros nas visões sobre o rural, pensou o rural em função dos processos urbanos no qual envolve uma “desestimação” das dinâmicas próprias desses espaços. Eu queria saber se a senhora tem alguma consideração a respeito do que, além dos sistemas sociais e políticos, quais seriam as causas dessas similitudes nas visões sobre o rural?

Nazareth Wanderley: A concepção ortodoxa do marxismo supõe um modelo que corresponde a uma fábrica no campo, supõe que a agricultura vai se industrializar e vai ser feita sobre a base de grandes empresas. No caso dos países socialistas, como os da antiga a União Soviética, são empresas estatais, não empresas capitalistas, mas também baseadas na separação entre o capital e o trabalho. É a concepção de que o camponês é residual no capitalismo, o camponês não tem vez no capitalismo.

 

 

Eu entrei na UNICAMP no ano de 1979. Até então, eu não era universitária, havia trabalhado na ANCAR-PE e, posteriormente, na EMBRATER, ambas empresas de assistência técnica e extensão rural. Mas, eu já tinha feito o doutorado na França. Na UNICAMP, Tamás Szmrecsányi, então coordenador do nosso grupo de estudos, me pediu que escrevesse um trabalho sobre o campesinato para ser debatido no grupo. Com o título “O camponês como trabalhador para o capital” (Wanderley, 1985), o texto propunha uma reflexão sobre a visão marxista do campesinato, mostrando que, para Marx o campesinato é pré-capitalista, seu destino no capitalismo seria a proletarização, do mesmo modo como acontecia na indústria.

Agora acho que Cuba tem algumas singularidades, primeiro tem a cana de açúcar. Mas Cuba tem uma dificuldade maior que é o bloqueio americano. Eu não sei como é que está lá, qual é o questionamento, se é possível ter um campesinato aceito como pequenos proprietários.

 

Entrevistadores: Cuba teve quatro Reformas Agrárias. O Estado tem projetado algumas estratégias para que as pessoas fiquem no campo. Teve tudo isso, teve Revolução Verde, processos de descampesinização e esvaziamento de espaços rurais pela precarização das condições de vida. Eu estou estudando a pobreza rural que entendo como uma das consequências disso tudo.

Nazareth Wanderley: Essa ideia de que o campo persegue o modelo capitalista das grandes empresas e que o campesinato não tem vez, encontrou forte resistência camponesa não só na Rússia, mas na Polônia, e aqui também.

(Neste ponto, houve uma pequena interrupção pela entrada de um amigo da professora Nazareth que foi orientando dela. Depois de um abraço de despedida, ela comentou: “imagine o que eu tenho de alunos em quarenta anos de janela”).

 

Entrevistadores: Nós estamos muito gratos e queria saber se a professora está disposta para uma pergunta mais do âmbito pessoal, penso que pode ser uma reflexão boa para a gente nas nossas próprias caminhadas. Pode nos compartilhar sua reflexão sobre a sua experiência como mulher, como professora e mãe, e como profissional fundamentalmente no mundo acadêmico?

Nazareth Wanderley: Eu sei, porque estou neste mundo, o que significam as dificuldades das mulheres, as dificuldades de reconhecimento, dificuldades de ocupar espaços, eu sei que isso é real. Mas na minha experiência pessoal no ambiente acadêmico, eu nunca tive dificuldades. Não é nem mérito nem demérito. Tive minha filha já muito tarde. A vida foi me levando, meu marido e eu já estávamos juntos nos últimos dez anos, e a gente resolveu que estava na hora de ter um filho. Quando ela nasceu, eu já tinha 43 anos, já tinha uma certa maturidade pessoal e um certo reconhecimento, de modo que pude lidar bem com isso. Meu marido, Abdias, sempre compartilhou minha vida em tudo, inclusive nas questões de divisão do trabalho. Eu acho que se eu tivesse um marido que não lavasse um prato, que não compartilhasse a minha vida, eu talvez não conseguisse fazer o que eu fiz. Mas eu poder fazer o que eu fiz, não foi nada de extraordinário, foi o meu percurso, porque eu tinha ele que vivia comigo a vida. Quando a filha nasceu, as duas coisas que ele não fez foram parir e dar de mamar, mas eu também não abria mão delas. Foi possível meu caminho sem muitas dificuldades.

Perguntam para mim se eu sou feminista, claro que sou feminista, compartilho minha vida com um homem e a gente tem uma coisa boa, a gente vive juntos há 46 anos. Se não tem esse compartilhamento, você não dá conta. Não trabalhei sempre na universidade, mas na universidade nunca vivi essa discriminação. Não estou dizendo isso para negar uma realidade que atinge as mulheres, mas vocês pediram um depoimento pessoal, e é isso.

 

Entrevistadores: Como a professora avaliaria sua caminhada como professora da UNICAMP?

Nazareth Wanderley: A UNICAMP foi um período incrível para mim, era uma equipe muito boa. Depois que me aposentei, queria voltar para Recife porque eu sou de lá. Faz 21 anos que voltei e estou lá. Aí eu fiquei trabalhando na Universidade Federal de Pernambuco por mais de 20 anos e estou saindo agora.

 

 

Entrevistadores: Está com saudades da academia?

Nazareth Wanderley: Não, eu não tenho, nem saudades, nem desgostos. Foi a minha vida, eu me construí como pessoa na vida acadêmica. Já encontrei pessoas que me diziam: “enfim estou livre da academia”. Mas eu não. Eu vivi só coisas boas, pelo menos é do que me lembro, o resto já me esqueci. Agora, a sensação é de que a vida é dinâmica, e você tem processos em que as coisas terminam. Eu terminei e agora vamos ver o que vai acontecer.

 

Agradecimentos

Agradecemos sinceramente a gentileza da professora Maria de Nazareth Baudel Wanderley em conceder esta entrevista. Também, agradecemos a participação do professor Abdias Vilar de Carvalho, colega e esposo da professora Wanderley (In memoriam), e a colaboração da professora Maria Ignez Silveira Paulilo, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Agricultura Familiar (NAF) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

Referências

 

BOURDIEU, P. Le bal des célibataires: crise de la société paysanne en Béarn. Paris: Editions du Seuil, 2002.

 

CAVALCANTI, J. S.; WANDERLEY, M. N. B.; NIEDERLE, P. A. Participação, território e cidadania: um olhar sobre a política de desenvolvimento territorial no Brasil, Recife: Editora da UFPE: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2014.

 

DELGADO, G.; CARDOSO JUNIOR, J. O idoso e a previdência social rural no Brasil: a experiência recente da universalização: texto para a discussão no. 688. [S. l.]: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, 1999. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2834/1/td_0688.pdf. Acesso em: 11 mar. 2024.

 

HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 10., São Paulo, 2005. Anais [...]. São Paulo, Universidade de São Paulo, março de 2005. Disponível em: http://www.planiicacion.geoamerica.org/textos/haesbaert_multi.pdf . Acesso em: 21 de maio 2024.

 

JOLLIVET, M. A “vocação atual” da sociologia rural. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 5- 25, 1998. Disponível em: https://revistaesa.com/ojs/index.php/esa/article/view/133/129. Acesso em: 07 fev. 2025.

 

MIRANDA, C.;  SILVA, H. (org.) Concepções da ruralidade contemporânea: as singularidades brasileiras. Brasília: IICA, 2013. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v. 21). 476 p. Disponível em: http://repositorio.iica.int/bitstream/11324/6116/1/BVE17109327p.pdf. Acesso em: 7 mar. 2019.

 

VEIGA, J. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas: Autores Associados, 2002. v. 200.

 

WANDERLEY, M. N. B. Conferência de Abertura do VIII Encontro da Rede de Estudos Rurais. Raízes: Revista de Ciências Sociais e Econômicas, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=KZ4LfJXBI5s&ab_channel=RededeEstudosRurais-Oficial

 

WANDERLEY, M. N. B. (Ed.). Juventude rural: vida no campo e projetos para o futuro. Recife: Editora UFPE, 2015.

 

WANDERLEY, M. N. B. O camponês: um trabalhador para o capital. Cadernos de ciência & tecnologia, v. 2, n. 1, p. 13-78, Brasília: Embrapa, 1985.

 



[1] WANDERLEY, M. N. B. Capital e propriedade fundiária; suas articulações na economia açucareira de Pernambuco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

[2] WANDERLEY, M. N. B. O mundo rural como um espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

[3] WANDERLEY, M. N. B. Um saber necessário: os estudos rurais no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2011.

[4] WANDERLEY, M. N. B. Uma singularidade histórica: o olhar de uma pesquisadora brasileira sobre o mundo rural francês. Recife: UFPE, 2018.

[5] Martins, Pedro; Welter, Tânia; Cuervo-Fernández, Ivón Natalia; Costa, Suzana M. V. G. Entrevista Do peso do trabalho leve à persistência da alma campesinista: entrevista com Maria Ignez Silveira Paulilo. Percursos, Florianópolis, v. 20, n. 43, p. 215-264, 2019. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/percursos/article/view/1984724620422019215. Acesso em: 07 fev. 2025.



[i] Entrevista recebida em: 31/05/24

  Entrevista aprovada em: 14/11/24