Dossiê

Leda Maffioletti: conhecimentos e significados de uma professora de música formadora de pedagogas

Leda Maffioletti: Knowledge and meanings of a music teacher educating pedagogues

 Silani Pedrollo 1

Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil

 Leda de Albuquerque Maffioletti 2

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

 

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Contínua

vol. 7, núm. 1, 2022

revistaorfeu@gmail.com

Recepção: 19 Setembro 2022

Aprovação: 08 Novembro 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/22756  

DOI: https://doi.org/10.5965/2525530407012022e0113

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: O objetivo deste artigo é apreender e desvendar os significados atribuídos pela professora Leda Maffioletti às atividades de canto e apreciação desenvolvidas na disciplina de educação musical no curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mais especificamente as orientações didáticas musicais dessas atividades no que concerne à articulação dos seus conhecimentos práticos e teóricos para a elaboração de suas aulas e dos planos de aulas de suas estudantes. Esta investigação situa-se no campo da pesquisa (auto)biográfica e do método biográfico, a qual se fundamenta em autoras da abordagem (auto)biográfica e educação musical que abordam questões sobre o(s) conhecimento(s) e experiências de professoras. Reconhece-se que as narrativas de experiências vividas por Leda Maffioletti contribuem para a produção de conhecimento e para o fortalecimento da área de educação e dos campos da educação musical e de pesquisas (auto)biográficas, na discussão sobre formação profissional e humana de pedagogas.

Palavras-chave: Conhecimento profissional, Educação musical e pedagogia, Narrativas de experiências vividas, Professora formadora, Canto e apreciação.

Abstract: The objective of this article is to apprehend and unveil the meanings attributed by the teacher Leda Maffioletti to the singing and appreciation activities developed in the discipline of music education in the Pedagogy Degree Course at the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS) more specifically the musical didactic orientations of these activities regarding the articulation of her practical and theoretical knowledge for the elaboration of her classes and her studentslesson plans. This research is situated in the field of (auto)biographical research and biographical method, which is based on authors from the (auto) biographical approach and music education who address questions about the knowledge(s) and experiences of female teachers. It is recognized that the narratives of experiences lived by Leda Maffioletti contribute to the production of knowledge and strengthening of the area of education and the fields of music education and (auto)biographical research, in the discussion about professional and human formation of pedagogues.

Keywords: professional knowledge, music education and pedagogy, narratives of lived experiences, teacher educator, singing and appreciating.

Introdução

O objetivo deste artigo é apreender e desvendar os significados atribuídos pela professora Leda Maffioletti às atividades de canto e apreciação desenvolvidas na disciplina de Educação Musical no curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mais especificamente as orientações didáticas musicais dessas atividades no que concerne à articulação dos seus conhecimentos práticos e teóricos para a elaboração de suas aulas e dos planos de aulas de suas estudantes. É importante destacar que este artigo é um recorte de uma pesquisa3mais ampla que teve como objeto de estudo as narrativas de experiências vividas por Leda como professora de música e formadora de pedagogas. Este trabalho investigativo situa-se no campo da pesquisa (auto)biográfica e do método biográfico, tendo como aporte teórico autoras4 como Passeggi (2011, 2016a, 2016b), Souza (2007), Delory-Momberger (2012) e Abrahão (2018). No campo da Educação Musical, fundamenta-se em Souza (2020), Georgii-Hemming (2013), Bellochio (2000) e Burnard (2013), que abordam questões sobre o(s) conhecimento(s) e as experiências de professoras na interface entre Educação e educação musical.

Ressaltamos que a pesquisa de doutorado realizada por Maria Cecília Torres em 2003 é considerada como o primeiro trabalho em Educação Musical na perspectiva (auto)biográfica. Destacamos que, além de Maria Cecília, outras pesquisadoras, como Ana Lucia de Marques e Louro Hettwer, Cláudia Ribeiro Bellochio, Delmary Vasconcellos de Abreu, Inês Rocha, Jéssica de Almeida, Leda de Albuquerque Maffioletti, Tamar Genz Gaulke, Teresa Mateiro e Ziliane Teixeira, desenvolvem pesquisas com essas temáticas na perspectiva (auto)biográfica e, desde 2021, coordenam o Movimento (Auto)biográfico em Educação Musical no Brasil. Este artigo também se vale das contribuições dessas pesquisadoras e de seus estudos, a fim de fomentar e fortalecer o campo da Educação Musical e da pesquisa (auto)biográfica. Consideramos que legitimar o conhecimento empírico de profissionais e estudantes da Educação Musical, assim como de outras áreas, é colaborar para os aspectos educacionais, políticos, sociais e culturais do próprio sujeito e da sociedade.

Sob essa visão, a experiência de professoras como uma forma de conhecimento foi reconhecida como prática de formação, a partir do movimento socioeducativo das histórias de vida em formação, em contexto de educação de adultos, ocorrido em meados de 1980. O movimento socioeducativo, segundo Passeggi (2011), teve como pioneiros pesquisadores como Gaston Pineau, Pierre Dominicé, Marie-Christine Josso, Mathias Finger, Guy de Villers, Bernadette Bovalot e António Nóvoa. De acordo com Passeggi (2011) e Souza (2007), o retorno do sujeito-ator-autor nas pesquisas em ciências humanas e sociais corroborou a mudança paradigmática sobre a noção de cientificidade e conhecimento válidos em contestação ao positivismo.

A Sociologia enfrentou enormes problemas decorrentes da tendência de muitos sociólogos em descobrir as leis sociais que fariam da Sociologia uma ciência reconhecida no meio científico. Nesse posicionamento, o sujeito individual não é priorizado. Ferrarotti posicionou-se contra, alegando que a renovação do método biográfico passa pela “inversão dessa tendência”. Para ele, a subjetividade e a historicidade são o valor heurístico do método biográfico e não pode ser relegado, o que significa trazer o sujeito para dentro do método, com suas histórias narradas e sua subjetividade inerente (FERRAROTTI, 2010, p.43). O famoso “retorno do sujeito” diz respeito aos esforços da Sociologia para desvincular-se dos métodos objetivos que buscavam descobrir as leis sociais às custas do afastamento do sujeito singular das investigações (GAULEJAC, 2005, p.60).

Esta mudança foi denominada “giro linguístico”5 ou “giro discursivo” (PASSEGGI; SOUZA, 2017; PASSEGGI, 2016a), que considera a narrativa dos atores sociais “que, ao narrarem suas próprias experiências, se constituem na e pela ação da linguagem, agindo no mundo e sobre o mundo” (PASSEGGI, 2016a, p.305). Assim sendo, as narrativas se tornam um “objeto de estudo potencialmente legítimo para se ter acesso aos modos como o sujeito, ou uma comunidade, dá sentido à existência, organizando suas memórias, justificando suas ações, silenciando ou evidenciando outras, projetando-se em permanente devir” (PASSEGGI, 2016a, p.306). Como método de investigação ou como prática pedagógica de formação, a (auto)biografia se estabelece no Brasil, na área de Educação, a partir do ano 2000 (PASSEGGI, 2011).

A experiência como conhecimento é apontada na pesquisa de Nóvoa (2019). O autor ressalta que há dois tipos de conhecimento na formação de professores: o conhecimento das disciplinas científicas, como “a Matemática, a História etc.”, e o conhecimento pedagógico e das ciências da educação, como as “questões históricas e sociológicas, políticas educativas, metodologias e didáticas etc.” (p.205). Porém, afirma que é necessário agregar um terceiro gênero, o qual chama de conhecimento profissional docente, que se desdobra na capacidade de apropriação de uma experiência refletida. Segundo ele, “Formar-se como professor é compreender a importância deste conhecimento terceiro, […] que faz parte do património da profissão e que necessita de ser devidamente reconhecido, trabalhado, escrito e transmitido de geração em geração” (NÓVOA, 2019, p.205).

Shulman (1987) elaborou um corpo de conhecimentos para o ensino constituído em sete categorias: conhecimentos de conteúdo, conhecimento pedagógico geral, conhecimento curricular, conhecimento de conteúdo pedagógico, conhecimento dos alunos e suas características, conhecimento de contextos educativos e conhecimento de fins, propósitos e valores educativos. Segundo Mateiro e Westvall (2013), o quarto conhecimento, sobre conteúdo pedagógico, é o que distingue a profissão de professor – de música – de outras profissões. Enquanto Shulman, na década de 1980, reforça a necessidade de o conteúdo e a pedagogia serem elementos inseparáveis, Nóvoa, mais tarde, enfatiza a capacidade de o professor refletir sobre suas experiências docentes.

Em acordo com Burnard (2013), é importante reconhecer que a qualidade e a compreensão dos conhecimentos de professores de música influenciam direta e indiretamente a aprendizagem dos estudantes que atenderão. Amparada nas sete categorias de conhecimentos de Shulman, a autora afirma que os professores de música, por meio desses conhecimentos, são capazes de motivar e influenciar seus alunos. Para ela, os conhecimentos profissional e pessoal, ou seja, suas experiências, são importantes para a profissão professor de música. Considerando as ideias de Burnard, compreendo que aliar o conhecimento teórico e prático é o que o torna um professor reflexivo.

O conhecimento deve ser vitalício, pressupondo interesse e curiosidade ao longo da vida. Para Georgii-Hemming (2013, p.33), “Qualquer forma de conhecimento que inclua compreensão inclui também a imaginação”. A autora afirma que a imaginação nos possibilita mudar de perspectiva e oportuniza reflexões, consequentemente, uma chance maior de o professor tomar boas decisões. Com base em Gadamer, ela defende que o conhecimento se amplia entre o familiar e o desconhecido. Ou seja, uma transformação em potencial ocorre quando nossa compreensão de mundo, o significado que lhe damos e as experiências que trazemos são ressignificadas no encontro com o outro, nesse mesmo movimento.

Com base no exposto, considero relevante apreender e desvendar os significados atribuídos pela professora Leda Maffioletti às atividades de canto e apreciação, a partir de suas narrativas de experiências vividas dentro de um contexto espaço/tempo, ao compartilhar seus conhecimentos com as futuras pedagogas em relação aos seus planos de aula e de suas estudantes. É, também, um dos modos de conhecermos como se constitui uma professora de música nessa área. Corroboramos as ideias de Abreu (2019, p.152), a qual coloca que “As aproximações epistemológicas das áreas da educação musical com a pesquisa (auto) biográfica são condições essenciais para que, como pesquisadora, possa contribuir com o fazer científico”. Ademais, segundo Nóvoa (2019, p. 205),

[…] é fundamental valorizar os professores e o seu papel nas dinâmicas de pesquisa. Não se trata apenas de os considerar “colaboradores” das pesquisas universitárias. Não se trata de colocar uma nota de rodapé nos nossos escritos agradecendo a colaboração dos professores que aceitaram responder aos nossos inquéritos e às nossas entrevistas. Trata-se de reconhecer a sua autoridade própria enquanto autores, enquanto pesquisadores. Trata-se de compreender que é neles que reside o potencial para a construção do terceiro género de conhecimento.

Por essas razões e apoiada nas palavras das pesquisadoras, reconheço e reitero as narrativas de experiências vividas pela professora Leda Maffioletti, coautora deste artigo, como legitimamente científicas e parte importante na história e na construção de conhecimentos para o campo da Educação Musical.

Educação Musical no curso de Pedagogia

O curso de Pedagogia da UFRGS apresenta carga horária total de 3.255 horas, organizadas em nove etapas6, e capacita estudantes para o exercício da docência nas modalidades de Educação Infantil, anos iniciais do Ensino Fundamental e gestão pedagógica nos espaços escolares e não escolares. A Educação Musical é oferecida como disciplina obrigatória em três créditos, no total de 45 horas, e está em acordo com a Resolução n.º 2 do Conselho Nacional de Educação – Câmara de Educação Básica, que define as Diretrizes Nacionais para a operacionalização do ensino de Música na Educação Básica (BRASIL, 2016a). Nesse documento, inciso 3.º, parágrafo III, as instituições de Ensino Superior (IES) e Educação Profissional devem “incluir nos currículos dos cursos de Pedagogia o ensino de Música, visando o atendimento aos estudantes da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2016a, p.2). O recorte temporal desta pesquisa situou-se a partir do ano de 2007, quando a Educação Musical passou a fazer parte da grade curricular como disciplina obrigatória do referido curso. Assim, considerando que Leda esteve inserida no âmbito desse curso superior e que conectou duas áreas de conhecimento em suas experiências, é importante ressaltar o que se compreende, neste texto, como educação musical e sua relação com a Licenciatura em Pedagogia.

Claudia Bellochio, professora pesquisadora com mais de 20 anos de experiência dedicados à Educação Musical, tem muito a dizer sobre os conhecimentos musicais e pedagógico-musicais aos professores unidocentes, a começar pela compreensão de que a docência desses professores se constitui a partir de diferentes áreas do conhecimento. De modo especial, é preciso considerar que esse profissional tem “a tarefa de ser um mediador ativo e conhecedor crítico dos percursos epistemológicos que orientam os aprendizados iniciais de seus alunos nos vários campos do conhecimento” (BELLOCHIO, 2000, p.120).

Em texto posterior, Bellochio e Soares (2017) dedicam-se aos “modos de ser professor unidocente”, explorando o sentido filosófico do “ser” como substantivo, ou ente, e ser como “verbo ser” vinculado à vida, à existência. A partir desses vínculos, as autoras entendem que os “modos de ser” podem ser aliados ao pertencimento, identidade e relação, ou ser como existência em si. A essa reflexão, as autoras agregam o significado de docência como “ensinar” e sua complementação com o “aprender”, de onde obtêm a compreensão de “modos de ser professor unidocente”, cuja especificidade é ser “único”, “uno”, responsável pelo processo que envolve várias áreas do conhecimento. É desse modo que a expressão “modos de ser professor unidocente” assume um significado singular relacionado à vida e à existência em si.

Outrossim, Souza (2020, p.9) salienta que o conceito de educação musical é compreendido ao menos em dois sentidos: um referente “às práticas de ensinar-aprender músicas e à didática da música exercida em diferentes contextos; e outro que remete a uma área do conhecimento que, como outras áreas, tem sua história e está em constante desenvolvimento”. Neste trabalho, o contexto refere-se ao ensino e aprendizagem formal, particularmente, ao ensino superior.

O diálogo entre a Música e a Educação que se torna educação musical, em nossa maneira de compreender, é resultado dos dois sentidos apontados pela autora. A Música é uma área de conhecimento autônoma e suas especificidades estão nas práticas de aprender-ensinar música. Por isso, sua presença na vida escolar e cotidiana de crianças e adultos é indispensável. Assim, se a professora de referência não tem formação musical como um especialista em Música, e, igualmente, a professora de música não tem formação pedagógica como uma pedagoga, uma das formas de ambas as profissionais se sentirem seguras é por via da formação, não apenas técnica, mas humana, no contato com formadoras das referidas áreas.

Kater (2012) destaca que o ensino da música na escola deve oferecer “condições a crianças e jovens de tomarem contato prazeroso e efetivo com sua própria musicalidade, desenvolvê-la e vivenciá-la, mediante experiências criativas, a música em seu fazer humanamente integrador e transformador […]” (p.42-43). Aproximando as ideias do autor no pensar a formação musical de pedagogas, é pertinente que elas desenvolvam suas musicalidades para que, dessa forma, se sintam confiantes nos momentos de proporcionar atividades aos estudantes que atenderão. Nesse sentido, Bellochio, Weber e Souza (2017, p.210) salientam que, “para [que] esse profissional tenha maiores possibilidades de inserir conhecimentos musicais em sua prática pedagógica[,] é necessário que ele tenha vivenciado experiências musicais e pedagógico-musicais em sua formação”.

Vale mencionar o mapeamento de teses e dissertações defendidas no período de 2000 a 2020, realizado por Natera e Mateiro (2021). As autoras olharam para a interface entre pedagogia e educação musical selecionando, apresentando e analisando pesquisas que tratam sobre a formação acadêmico-profissional no contexto dos cursos de Licenciatura em Pedagogia. São trabalhos que investigam a estrutura desses cursos, as identidades das licenciadas, os processos da docência e o lugar da música na prática das futuras pedagogas. Esta última temática se aproxima do que pretendemos discutir neste artigo.

Entrelaçar escuta atenta e palavras narradas

A escolha pelo método biográfico foi motivada por pesquisas que desenvolvi sobre formação de professoras, discutindo Música e Pedagogia ao longo da Graduação em Música, principalmente, porque a questão da presença da música na Educação Infantil foi a linha condutora desses estudos. Como forma de aprofundar as pesquisas, senti necessidade de conhecer quem eram as professoras formadoras de pedagogas e a relevância das suas experiências como sujeitos reflexivos de suas atuações. Ademais, vislumbrei uma rede entre comunidade e universidade, pois considerei que essas professoras estão em contato direto com as estudantes de pedagogia, que, por sua vez, estão desenvolvendo atividades musicais em contextos escolares. Nesse caminhar, deparei-me com a possibilidade de desenvolver uma pesquisa com a abordagem (auto)biográfica.

Uma pesquisadora francesa que tem contribuído com a pesquisa (auto) biográfica no Brasil é Delory-Momberger. Segundo a autora, “o espaço da pesquisa biográfica consistiria então em perceber a relação singular que o indivíduo mantém, pela sua atividade biográfica, com o mundo histórico e social e em estudar as formas construídas que ele dá à sua experiência” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p.524). É nesse sentido que a pesquisa biográfica se difere de outras abordagens disciplinares, pois o indivíduo, como ser social e singular, contribui para a existência, a reprodução e a produção da realidade social. Assim, o intuito do convite à professora de música foi de fazê-la rememorar suas experiências vividas na constituição do seu ser, por sua narrativa, objetivando o potencial epistêmico e humano, no qual suas narrativas estão voltadas à construção de conhecimento, isto é, à pesquisa. Compreendo que o cerne da pesquisa se situou entre dois campos, o da formação de formadores e o do ensino superior.

Ao utilizar o método biográfico, as experiências formadoras são acompanhadas por um processo de reflexividade sobre o percurso vivido, inferidas a partir da narrativa da professora, transfigurando-se em produção de conhecimento. Para Passeggi (2016b, p.70-71), há uma fusão entre “o sujeito epistêmico (sujeito do conhecimento), capaz de conhecer, de refletir, de sistematizar; e o sujeito biográfico (sujeito do autoconhecimento), capaz de conhecer-se, de refletir sobre sua própria natureza, o que o faz humano”, destacando-se as diferenças e semelhanças entre ele e outros seres, para depois inferir teorias.

O encontro desses dois sujeitos, epistêmico e biográfico, demonstra a relevância no sentido dado às experiências pelo próprio sujeito que, ao apreender sua trajetória, se emancipa, se (trans)forma, toma as rédeas da sua existência. No caso da pesquisa realizada, Leda Maffioletti é o sujeito epistêmico e biográfico que inferiu por meio das narrativas de experiências vividas, dando forma e sentido às suas práticas como professora de música no ensino superior. A partir dessa perspectiva, meu papel como pesquisadora foi o de compreender e sistematizar os aspectos das experiências – vividas e narradas – pela professora.

Nesse sentido, a pesquisa (auto)biográfica e o método biográfico possibilitam um diálogo entre pesquisadora e colaboradora, no qual pesquisadora se forma nos momentos de conversas durante as entrevistas. Abrahão (2018) coloca que o diálogo (auto)biográfico se constitui na prática da escuta atenta que incita a palavra dada implicada na relação entre pessoas promovendo ou não a formação. Para a autora, o que se almeja é que “as narrativas possam ser suscitadoras de compreensão mais elaboradas da vida pessoal/social e formativo/profissional dos sujeitos em processo formativo” (ABRAHÃO, 2018, p.26).

Segundo Marinas (2007)a escuta atenta e a palavra dada não se limitam ao sentido comum de ouvir alguém que fala, mas significa que aquele que escuta se torna depositário da história, que seguirá consigo mesmo na ausência do protagonista do relato; a escuta faz a história de vida. A palavra dada tem valor moral e rigor metodológico, é assistir, contribuir, não impedir o processo de apropriação que ocorre no circuito de transmissão. Nesse processo, eu, como pesquisadora em formação, sou a que vislumbra o elemento formativo a partir das narrativas de experiências vividas rememoradas e depreendidas pela colaboradora, coautora deste artigo.

A entrevista dentro do método biográfico torna-se uma ferramenta essencial no que concerne à palavra dada (ABRAHÃO, 2018) e ao cunho subjetivo da pesquisa (auto)biográfica, pois o foco está centrado no sujeito e nos modos pelos quais dá sentido à sua existência e às suas experiências de vida como potencial e legitimidade científica. Nessa mesma perspectiva, Delory-Momberger ressalta que

[…] o que a entrevista de pesquisa biográfica procura apreender e compreender é justamente a configuração singular de fatos, de situações, de relacionamentos, de significações, de interpretações que cada um dá à sua própria existência e que funda o sentimento que tem de si próprio como ser singular. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p.526).

As entrevistas narrativas com a professora Leda foram as principais fontes de informação, ou seja, constituíram o material primário, e os artigos, materiais e documentos recolhidos antes e durante as entrevistas constituíram as fontes secundárias, conforme sugere Jovchelovitch e Bauer (2008). Devido ao distanciamento social causado pela pandemia da Covid-19, realizamos quatro encontros via plataforma Zoom, os quais tiveram duração total de aproximadamente sete horas. Como propõe o método biográfico, priorizei a subjetividade da colaboradora. Importante ressaltar que foram cumpridas todas as orientações para procedimentos em pesquisas em ambiente virtual em tempos de pandemia, estabelecidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa7, a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) n.º 466 de 2012 e a de n.º 510 de 2016 (BRASIL, 2013, 2016b).

Os encontros foram gravados em áudio e vídeo, sendo todos os procedimentos – transcrição, preservação, proteção, segurança e direitos – informados à professora no primeiro encontro. Para referenciar as narrativas da professora, optei por um modo de abreviação para diferenciá-las das demais citações bibliográficas, como, por exemplo, “EN1, 2021, p.3”, respectivamente, Entrevista Narrativa número 1, concedida no ano de 2021, da página 3, do caderno de transcrição. Após os procedimentos de transcrição, as informações foram organizadas, categorizadas e analisadas sob a perspectiva hermenêutica, a qual abrange o processo interpretativo de textos escritos, formas verbais e não verbais. Todas as informações foram organizadas em um documento no software Word, e cada entrevista foi enviada para a conferência e consentimento da professora.

As análises foram embasadas em Ricoeur (1994). O autor trabalha sob o prisma de tríplice mimeses-prefiguração, configuração e refiguração, compreendendo a possibilidade de que o tempo se torna tempo humano ao ser articulado pela narrativa, a ação de narrar, e essa alcança o seu significado ao se tornar condição da existência temporal. Na prefiguração, Mimese I, a construção de um enredo está alicerçada “numa pré-compreensão do mundo e da ação” em seu caráter estrutural, simbólico e temporal (RICOEUR, 1994, p.88). Dito de outra forma, a construção de um enredo na prefiguração exige que identifiquemos as ações nas quais estão imbricadas questões como: o que, por que, quem, como, com ou contra quem, empregando-as de modo significativo para dominar o todo da trama conceitual e cada termo que a compõe.

A Mimese II, configuração, opera como mediadora, sua posição é intermediária entre a prefiguração e a refiguração. Ricoeur (1994) coloca que essa função mediadora procede do dinamismo da operação de configuração. O caráter dinâmico que o enredo tem em seu campo textual permite que opere fora dele em uma mediação maior entre “a pré-compreensão e […] a pós-compreensão da ordem da ação e de seus traços temporais” (p.103). Dessa forma, a composição de um enredo tem uma função de extrair um significado de uma sucessão de acontecimentos, nos quais estão contidas duas dimensões temporais: a cronológica, os episódios da narrativa, e a não cronológica, configurante, a significação que transforma os acontecimentos em história. Segundo o autor, há o encontro entre o mundo do texto e o mundo onde a ação e a temporalidade acontecem, então configura-se a narrativa.

A refiguração é o resultado, a consequência ou o efeito causado na pessoa mediante o encontro entre os dois mundos. Nas palavras de Ricoeur: “diria que mimese III marca a intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor” (1994, p.110). Sucintamente, o autor refere-se às metáforas utilizadas nos textos poéticos, de aspecto não descritivo, para falar de mundo e que intensificam o elo com o ser no mundo, o sujeito e o outro. Entendemos que acontece uma modificação no mundo do próprio sujeito, de projetá-lo para novas percepções de vida, a partir da interpretação e compreensão de uma história, um enredo, um texto. Ricoeur (1994, p.123) acrescenta que “[...] sustentar que o que é interpretado num texto é a proposta de um mundo que eu poderia habitar e no qual poderia projetar meus poderes mais próprios”. Para ele, “O fazer narrativo re-significa o mundo na sua dimensão temporal, na medida em que contar, recitar, é refazer a ação segundo o convite do poema” (RICOEUR, 1994, p.124). Ocorre, dessa forma, um círculo hermenêutico entre a narrativa e o tempo pelo movimento de tríplice mimese. Por meio desse círculo, o sujeito observa, interpreta e compreende qual é a narrativa que o constitui, questões fundamentais para chegar ao conhecimento de si e do mundo. Ao narrar, trazemos para o presente, por meio da memória, aquilo que fomos, somos e a perspectiva de ser.

 

Palavra dada

Escolhi apresentar as narrativas da professora Leda relacionadas às experiências vividas como formadora de pedagogas. No entanto, devido ao grande volume do material coletado e às restrições do formato de artigo, apenas dois tópicos de suas orientações didáticas foram abordados: as atividades de canto e percepção, as quais considerei abranger os modos de dar sentido às suas ações, reflexões e conhecimentos compartilhados com as futuras pedagogas. Para compreender o contexto, Leda ingressou como professora orientadora na disciplina de Estágio de Docência 0-3 anos e Estágio de Docência 4-7 anos, no Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da UFRGS, no ano de 1998. Isso significa dizer que a professora, em um primeiro momento, não ministrou disciplinas específicas de Música, mas, sim, atuou como orientadora de estágio. Seus estudos anteriores e durante o ingresso na referida universidade, lhes davam respaldo para assumir tais funções.

Além da Graduação em Licenciatura em Música e do Mestrado em Educação, também realizou cursos na área de Educação, como Especialização em Fundamentos Teóricos e Práticos da Alfabetização, fez Especialização em Orientação Educacional e, na área de psicopedagogia, cursou Especialização em Psicopedagogia Clínica. Ademais, também contava com suas experiências anteriores como coordenadora de Educação Musical na Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, entre os anos de 1989 e 1994, e prestando assessorias nas escolas de Educação Infantil (Fig. 1), como ela ressaltou:

O que eu fiz muito nesse meio tempo, década de 1980, 1990 e mais adiante, foi assessoria às escolas particulares de Educação Infantil, mas principalmente assessoria às escolas da rede pública municipal de Porto Alegre […]. Eu era supervisora de música e, como parte do meu trabalho, visitei todas as creches e escolas de Educação Infantil da rede. Juntamente com Rose Marie Reis Garcia e outras colegas da equipe, fizemos oficinas de brincadeiras cantadas, cirandas e passeios cantados; canto em conjunto – mostrando de que modo as variações de tempo (lento, rápido, ralentando), de intensidade (suave, leve, fortíssimo) enriquecem as experiências sensíveis das crianças […]. A demanda pela música na formação de professores de Educação Infantil sempre foi intensa, chegando mesmo a jornadas de estudos e formação de um dia inteiro. (EN2, 2021, p.1-2).


Fig. 1
Oficina de Música com professoras na Escola Municipal Décio Martins Costa – “Expressão Livre: como orientar sem dirigir?”.
Acervo de Leda Maffioletti (9-10 out. 1991).

Essas experiências a levaram aos seus modos de ser professora e ao interesse de oferecer outras disciplinas na universidade, as de Música. Concomitantemente à orientação de estágio, Leda criou duas disciplinas eletivas: Música na Educação Infantil, com carga horária de 45h/a, e Brincadeiras Cantadas, com 40h/a:

Então, a música foi entrando assim. Eu atendia ao estágio, e essas disciplinas eletivas, também à comunidade; fazia, por amor, Música na Educação Infantil e Brincadeiras Cantadas. Depois, ocorreu a mudança [do currículo] da Pedagogia em 2007, que incluiu a Educação Musical (45h/a) como disciplina obrigatória […], e eu assumi essa disciplina. (EN2, 2021, p.13).

No decorrer das entrevistas, conforme narrava, observei que havia uma predisposição da professora em abordar a prática e, em seguida, a teoria. Isso acontecia em todas as aulas que ministrava, e antes mesmo de assumir como docente na UFRGS. Por isso, em vários momentos ela usou a expressão “a todo vapor”. Suas ações eram permeadas pelo apoio pedagógico, por fundamentações, práticas com brincadeiras, rodas cantadas, risos e diálogo, sendo imediata a resposta das estudantes para essa disposição, como ela recordou: “Ô, professora, o que é isso, tomou Redbull?” (EN2, 2021, p.14). Leda complementou dizendo que, a partir de 2007, as aulas de Educação Musical aconteciam pela manhã, às 7h30min, e, por isso, as alunas muitas vezes usavam essa expressão.

A mudança do currículo refere-se à resolução CNE/CP n.º 1, de 15 de maio de 2006, (BRASIL, 2006), que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Graduação em Pedagogia, Licenciatura (DCNP). A partir dessa resolução, o egresso do curso de Pedagogia deve estar apto a ensinar, de forma interdisciplinar e conforme as fases do desenvolvimento humano, os conteúdos de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Artes, entre outras. Assim, em 2007, a professora ficou com duas disciplinas na graduação, orientação de estágio de docência e educação musical, sendo ela a responsável pela elaboração do programa da disciplina obrigatória de educação musical no curso de Pedagogia da UFRGS. Ela relata: “E o que inseri no plano é o que eu achava que seria uma boa formação para uma pedagoga que não tivesse tido aula de música […]. Inicialmente […], recebi alunas que nunca tinham tido aula de música” (EN3, 2021, p.1). Leda disse que o plano de ensino tinha como objetivos principais:

Mobilizar a musicalidade do aluno preparando-o para orientar as atividades musicais com crianças e jovens” e “Refletir sobre as contribuições da música na educação, compreendendo os conteúdos, objetivos e práticas que caracterizam a Educação Musical” – conforme constava no meu plano de ensino – significava criar oportunidades para que a música fosse vivenciada intensamente, produzindo conhecimentos musicais em suas variadas formas de expressão: cantar, inventar ritmos e melodias, tocar instrumentos musicais simples e movimentar-se no espaço/tempo das canções. Refletir sobre os fundamentos da educação musical significava tecer considerações sobre as relações estabelecidas com a música na vida escolar, na vida social e cultural do contexto em que ela se situa. (EN3, 2021, p.3).

Para Leda, o significado de ser professora dessas estudantes foi estar “[…] fazendo um trabalho muito importante”. Em suas palavras:

Eu estava trabalhando com quem estaria na linha de frente do trabalho com as crianças. Se eu valorizasse a música e não transmitisse esse valor a elas, seria provável que privassem as crianças dos benefícios da música. Eu acho que, para o bem-estar das alunas e seu futuro trabalho na escola, aprender a propor uma atividade e coordenar o seu desenvolvimento é essencial, e não é tão difícil como as licenciandas pensam. Notei que é no canto que elas têm receio de se expor, mas, se for uma brincadeira cantada, esse receio desaparece. Uma atividade simples, como convidar as crianças para brincar de roda, pode gerar vínculos afetivos que asseguram no futuro aprendizagens musicais mais complexas. As crianças de mãos dadas, cantando e rodando felizes, tem sabor de sucesso e pode encorajá-las a criar oportunidades para que a música aconteça. Por isso, quando observava as orientandas brincando de roda, eu me sentia muito feliz! Porém, eu sei que elas poderão ter dificuldades para corrigir a reprodução de um ritmo, por exemplo. Mas conseguem corrigir as crianças, quando se encontram num ambiente descontraído. Por exemplo: na hora da canção “meu lanchinho, meu lanchinho”, em que as crianças costumam gritar em vez de cantar, já observei as alunas em estágio dizerem “não precisa cantar tão forte, pode machucar a tua garganta”. Porque as crianças são de berrar, de cantar assim, a todo vapor! E claro que não afinam desse jeito, não tem quem afine. Eu explicava que, para cantar bonito, cantar afinado, não é o volume da voz que vai resolver. Cantar com suavidade é até melhor. (EN3, 2021, p.13).

Essa narrativa e o jeito especial que a professora lidava com a dificuldade das estudantes poderiam significar que esperava que elas realizassem o mesmo procedimento com as crianças, sugerindo que também cantassem suave. Possivelmente, considerava que as licenciandas compreenderiam que, para realizar uma atividade musical, nesse sentido, não era necessário ser especialista em Música, isto é, cantar e falar suavemente são recomendações básicas para a saúde vocal de qualquer pessoa. Interpretei que a professora trabalhava os conteúdos musicais de modo a despertar nas estudantes e, consequentemente, nas crianças o prazer de fazer música, almejando uma formação global.

Unindo as duas disciplinas, Estágio e Educação Musical, Leda desenvolvia atividades musicais procurando “assessorar a parte de educação artística” e orientar as estudantes de Pedagogia quanto à elaboração de seus planos de aula, discutindo com elas como a atividade musical poderia ser registrada. Ensinava-as como construir uma justificativa, objetivos, procedimentos, bibliografias e organizava com elas a planilha com as atividades da semana. A proposta era que as licenciandas estruturassem seus planos de aula com, pelo menos, três atividades – uma delas poderia ser uma atividade musical, como Leda relatou:

Eu ajudava as alunas a coordenar onde iriam situar uma atividade musical como parte integrante da rotina e como registar o objetivo. Um exemplo simples: se as crianças serão convidadas a cantar e bater palmas, o objetivo poderia ser “acompanhar com palmas seguindo o tempo da canção, ou seguindo os acentos, ou somente quando canta trá ” […]. Então, na verdade, ensinava extrair da atividade o objetivo que lhe corresponde. Na escola há horários fixos que organizam seu funcionamento como um todo, porque envolve o atendimento da merenda, rodízio no uso do pátio, almoço ou janta, e limpeza da sala antes do horário do sono. Por exemplo, as crianças chegavam às 7h, 7h30min, e o que fariam depois? Qual o horário do lanche ou da mamadeira? Da troca das fraldas, que hora é isso, que hora é aquilo. Era importante que as alunas aprendessem a prever em que momento poderiam propor, não só aquela atividade que fizeram comigo na aula de música, mas qualquer outra atividade pedagógica. (EN3, 2021, p.10).

Entrecruzar as disciplinas, conectando suas ações, era algo presente nas aulas da professora. Do mesmo modo, observei em suas falas que procurava propor às estudantes uma base para que, futuramente, elas por si só encontrassem seus modos de ser professora. Verifiquei, assim, que a formação profissional e humana se dava pela vivência, experiência, sentido e reflexão, permeada pelo diálogo e pelo vínculo que Leda mantinha com as futuras pedagogas.

Experiências e conhecimentos compartilhados

Referente à dimensão pedagógica da disciplina Educação Musical, Leda narrou quais eram e como pensava os conteúdos e atividades para as estudantes. Ficou evidente, por meio de suas narrativas, a articulação de suas experiências e conhecimentos ao preparar suas aulas, ou seja, como alinhava a prática com os fundamentos da formação de professoras para o Ensino Fundamental. Leda elaborou uma pasta intitulada “Orientações Didáticas” para as pedagogas, uma espécie de roteiro para cada conteúdo trabalhado com as estudantes ao longo do semestre, auxiliando-as também nos estágios. Estão descritas, nesse documento, sugestões de atividades musicais em forma de objetivos, conforme as seguintes temáticas: ritmo, orientação espaço-temporal, canto, percepção auditiva e atividades de apreciação. De acordo com o objetivo deste artigo, destacamos suas narrativas sobre as atividades de canto e percepção auditiva, as quais foram desenvolvidas com as licenciandas na disciplina de Educação Musical.

A professora iniciou seu relato dizendo que aprendeu em seu primeiro curso de formação pedagógica, em 1968, que havia três tipos de canções: didáticas, folclóricas e recreativas. Para ela, as canções didáticas são as que mais acontecem nas escolas, citando, por exemplo, canções para lavar as mãos ou ir para o lanche. Essas canções de rotina, comentou que não faziam parte do repertório de canções, mas as canções folclóricas (rodas cantadas, versos e rimas) estavam presentes em suas aulas, como também as brincadeiras cantadas – que correspondem às canções do tipo recreativas. A professora contou sobre como pensava essas atividades com as estudantes:

[…] as músicas que eu ensinava para as alunas acabavam sendo um momento importante de descontração no relacionamento com as crianças no estágio. E eu acho que a música cumpre bem esse papel de estabelecer um vínculo positivo. Eu procurava criar nas minhas aulas um clima tal que as alunas ficassem com vontade de participar. Nem sempre todas se engajavam, mas, no geral, elas eram receptivas e achavam bom e gostoso fazer as atividades propostas. Elas eram minhas alunas no sexto semestre. No semestre seguinte, o sétimo, iniciavam o estágio de docência. A disciplina estava bem situada na grade curricular do curso, favorecia o interesse pelas aulas. (EN3, 2021, p.6).

Realizava atividades de improviso de melodias para quadrinhas populares ou versos, fazendo coletâneas de versos populares; levava brincadeiras de roda cantada, por exemplo, Roda peneira menina, em que colocava os versos dentro de uma peneira, que era passada de mão em mão, e, quando a música parava, a estudante que ficou com a peneira na mão tinha que tirar um verso e cantá-lo improvisando; além de relacionar a atividade de canto a outros conteúdos, como o ritmo. O objetivo era que as licenciandas cantassem e realizassem o acompanhamento com palmas em acentos e pulso no ritmo da canção. Disse que brincava de regência com as estudantes e preparava um movie maker8.

[…] legendado com as palavras “acento”, “pulso”, “ritmo”, situadas nas partes da música onde as alunas deveriam bater conforme constava na legenda. A marcha militar Schönfeld Marsch, do compositor Carl Michael Ziehrer, era perfeita para essa brincadeira. Eu pegava uma vareta e brincava que era regente e fazia assim no acento [apontou para a diagonal com movimentos levantando a mão e o braço, simulou gestos de regência]. Depois, eu fazia dessa forma, no pulso, [idem], txá, txá!, seguindo cada parte da música, comandando o som a todo vapor! [risos]. Era uma canseira maravilhosa! Chamava as alunas para reger, algumas se aventuravam. Eu trabalhava o acompanhamento (acento, pulso e ritmo) primeiro em canções com toda a turma. Depois, em pequenos grupos, elas escolhiam uma canção conhecida e cantavam acompanhando com palmas, ou pés do acento, por exemplo. Eu ficava livre, circulando entre os grupos, para ver como é que elas estavam trabalhando esses conceitos sozinhas. Eram nesses momentos, em que eu circulava entre elas, que podia fazer anotações sobre a participação individual das alunas. (EN3, 2021, p.7).

O modo como ela pensava e organizava suas atividades se entrelaçava, mesmo que tivesse objetivos distintos para cada conteúdo. Percebi, por exemplo, que, trabalhando roda cantada com as estudantes, conseguia desenvolver os conteúdos de ritmo, percepção, entre outros. Ao contar sobre percepção auditiva, a primeira observação feita pela professora foi: “não confundir com apreciação musical”. Segundo Leda, era “simplesmente ouvir o som procurando identificar o que é e onde está” (EN3, 2021, p.7). Como exemplos, disse que chamava a atenção das estudantes para a importância de identificar e nomear os sons, dizer o que é; localizar onde está, longe ou perto, dentro ou fora do ambiente; se o som está parado ou se movimentando de um lado para o outro; qual o tipo do material, madeira, metal, identificar a voz da colega etc.

Ao realizar essa narrativa, lembrou-se de um episódio em sala de aula quando visitava uma estagiária: “Em uma turma de maternal (três anos), minha orientanda colocou, no gravador, um barulho de chuva. Acredita que as crianças olharam para a janela quando escutaram o barulho de chuva? Elas não se deram conta de que aquilo era uma representação da chuva” (EN3, 2021, p.8). Eram nesses momentos do cotidiano da escola, observando as atividades desenvolvidas pelas estudantes, que a professora aproveitava para nos assessoramentos destacar a compreensão teórica do fato observado, trazer as fundamentações e compartilhar conhecimentos. Falou sobre a importância de ter o conhecimento sobre a noção de representação,

As crianças pequenas, que ainda não têm interiorizada a imagem do evento sonoro, em vez de representá-lo mentalmente enquanto ouvem, voltam os olhos para a janela, para conferir, ao vivo, a chuva que deveria estar lá fora. Bem interessante essa cena! Piaget, Vygotsky e Wallon tratam dessa temática – cada um com sua teoria, claro! (EN3, 2021, p.8).

As orientações didáticas que Leda tinha como roteiro já indicavam algumas mudanças no seu modo de ver e agir com relação ao ensino de música para crianças, consequentemente, nas aulas com as estudantes de Pedagogia. Foi a partir dessas narrativas que a professora retomou uma reflexão sobre como foi modificando sua forma de compreender a aprendizagem musical das crianças:

[…] quem provocou mudanças no meu modo de pensar foi Mary Louise Serafine (1983)9. […]. Em seu artigo sobre os processos cognitivos musicais, faz uma crítica à transposição dos elementos utilizados em análise musical – melodia, ritmo e harmonia – para os planejamentos de educação musical, como se fossem o padrão de compreensão das crianças; como se fosse a maneira da criança pensar a música. Aqui eu me encaixei! Orff e Willems apoiam seus métodos nesses elementos, mas o equívoco de imaginar que eles corresponderiam ao modo de pensar das crianças fica por minha conta: eu não tinha parado para pensar… Hoje eu penso que o que poderia ter acontecido comigo foi uma “associação imediata”, processo que pode acontecer sem a interferência da reflexão: melodia, ritmo e harmonia associados/modo da criança pensar a música. (EN4, 2021, p.2).

Conhecendo as ideias de Serafine sobre uma compreensão diferente de aprendizagem musical, a professora buscou rever os seus conceitos, no intuito de reorganizar sua concepção pedagógica sobre o ensino de música. Essas ideias permearam suas aulas com as estudantes de Pedagogia, pois compartilhava esses conhecimentos, visando à formação profissional das licenciandas, e propiciava que se sentissem mais segurança nos contextos em que trabalhariam. Observei que seu conjunto de referenciais teóricos era enriquecido constantemente, mas, como lembrou e relatou a professora, “toda mudança é sempre lenta” (EN4, 2021, p.2). Foi na participação e publicação de um artigo em um evento da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), da qual a professora também foi sócia-fundadora e membra da diretoria, que ela identificou indícios dessa mudança nos seus modos de pensar e começou a buscar por novos autores que respondessem às suas inquietações:

No II Encontro Anual da ABEM em Porto Alegre, do qual fui coordenadora, (1993) – na época eu era coordenadora da Educação Musical nas escolas municipais de Porto Alegre –, por esse motivo, a Prefeitura financiou a distribuição de um livreto de minha autoria, onde constam três artigos, sendo um deles “As funções sociais da música na escola”. Esta foi a primeira vez que fiz críticas ao modo como via a música na escola, me apoiando em autores que tinham um olhar para o aspecto social e cultural da Educação Musical. Há um espaço grande depois disso, que não procurei encontrar rastros nos arquivos que tenho guardados sobre minha docência. (EN4, 2021, p.2).

Foi após terminar o doutorado, em 2005, que Leda observou mais claramente sua transição de referenciais, por meio de outras pesquisas e leituras. Segundo ela, “Uma marca nessa transição certamente foram as leituras que fiz, como A natureza cultural do desenvolvimento humano, de Bárbara Rogoff (2005), e Origens culturais da aquisição do conhecimento humano, de Michel Tomasello (2003)” (EN3, 2021, p.19). Citou, também, Colwyn Trevarthen e Daniel Stern, os quais sustentam suas reflexões. Afirmou: “Eu me sinto mais nessa linha hoje […], uma abordagem da educação infantil com os autores de referência, autores da linha do desenvolvimento cultural da criança” (EN3, 2021, p.19). De forma sucinta, a professora falou como percebeu essa transição:

Meu olhar esteve sempre voltado para a compreensão do que minhas alunas já sabiam sobre música. Em 2007 fiz um estudo sistemático sobre isso, procurando identificar nos depoimentos das alunas sobre música os conhecimentos que elas expressavam. Mas ainda muito distante do que hoje entendo como episódios de histórias de vida. Os estudos sobre a musicalidade humana me mantinham na linha mais sociocultural.

Entre 2009 e 2010, meus estudos mostram temas que mesclam interesse em “Apreciação Musical” e “Modos de Compreensão da Música”. As leituras de Bolívar, Bakhtin e Josso me aproximaram da pesquisa (auto)biográfica. O texto publicado em 201010 marca minha inserção mais clara no campo da pesquisa (auto) biográfica. Pouco depois, a perspectiva sociocultural passou a se integrar em minhas aulas no curso de Pedagogia e nas minhas publicações referentes à música na educação infantil e formação de professores. (EN3, 2021, p.19).

Percebi que as mudanças foram acontecendo pelo seu modo atento em relação às ações das crianças e dos adultos. Ela notava que as estudantes se sentiam bem fazendo as brincadeiras cantadas e observava que, no estágio, essas atividades aproximavam as estudantes e as crianças, “criando o contexto eu/nós” (EN3, 2021, p.2), referindo-se ao apego e ao vínculo. Exemplificou e detalhou como trabalhava com as pedagogas, as questões dos referenciais que utilizava em suas aulas, entre a música e outras áreas, mostrando vários livros e falando das concepções e pesquisas de cada autor(a) que fundamentava suas reflexões. Ela disse:

Colocava uma linha horizontal no quadro, representando a linha do tempo de zero a seis anos, e falava sobre o desenvolvimento das crianças, mostrando sempre a importância de a música estar presente; como ela poderia contribuir, quais atividades seriam potencialmente mais adequadas, considerando as fases em que determinada aquisição se mostra no desenvolvimento infantil. Por exemplo, o bebê recém-nascido tem memória do que ouvia antes de nascer? Quando o bebê é capaz de segurar o chocalho? Imitação é o mesmo que expressão livre? (EN4, 2021, p.4).

Em uma das entrevistas, escolheu compartilhar um texto de sua autoria, intitulado “A música e as primeiras aprendizagens da criança” (MAFFIOLETTI, 2014), no qual buscou mostrar de que modo as sonoridades e inflexões da voz tornam-se episódios melódicos e rítmicos, com intencionalidade comunicativa. Em suas próprias palavras:

Muito cedo, as crianças aprendem o repertório comunicativo da língua materna e passam a utilizar de modo adequado para expressar concordância (Tá!, Hã-hã!), desaprovação (Xi!!!!), desejo (Tomara!), surpresa (?), desânimo (Oh!), alegria (Êba!) ou reclamação e dor (Aiê!). […] Elas também apreendem o significado de irritação contido na separação prolongada das sílabas na frase: “eu-já-faa-leei!”. (MAFFIOLETTI, 2014, p.120).

Dessa forma, a professora iniciou dizendo: “Mas, então, eu vou te falar de um momento muito importante na vida das crianças, que comento com as professoras e acentuo bem quando estou tratando da música no berçário, que é o vínculo entre a mãe e o seu bebê” (EN4, 2021, p.4). Leda disse que o primeiro cientista a distinguir o mecanismo que explica como ocorre o apego ou vínculo foi Konrad Lorenz, em 1970, o qual ficou conhecido como o cientista dos gansos:

Loretz descobriu que o filhote das aves, assim que sai do ovo, seguirá o primeiro objeto em movimento que passar por ele, não importa quem seja. Chamou este fenômeno de printing, ou impregnação filial, que corresponde ao que mais tarde tornou-se conhecido como “teoria do vínculo”. (EN4, 2021, p.4).

Posteriormente, continuou Leda, Hubert Montagner (1993) defendeu a ideia de que as pesquisas de Lorenz poderiam contribuir para a compreensão do comportamento dos bebês humanos; seus gestos, mímicas, vocalizações e outras sensibilidades formam o conjunto dos comportamentos realizados nas interações dos bebês com suas mães ou pessoas próximas. Baseada nesse autor e em outros, a professora defendeu que a música poderia desempenhar um papel relevante na relação das pedagogas com as crianças do berçário. Complementando, relatou de que modo direcionava a atenção das alunas para a observação de um detalhe importante na comunicação dos bebês, aproximadamente aos oito meses de idade, que é o vínculo pelo olhar. Por meio de uma pequena encenação, instigava as alunas a descobrir do que se tratava:

Dramatização: Eu era o bebê, uma das alunas me entregaria um objeto qualquer, o restante da turma deveria observar o que acontece com o bebê quando recebe o objeto, em dois momentos – aos quatro meses e aos oito meses de idade. E reproduzia as cenas de entregar o objeto para o bebê pegar, destacando a referida idade. “Olhem o que um bebê de quatro meses faz – e fazia a cena de manipulação do objeto –; agora olhem o que acontece com bebê de oito meses – e fazia a cena de manipulação, mas recebia o objeto de forma diferente”. Nos comentários, pedia que dissessem o que notaram. As respostas eram superconhecidas, “ele colocou na boca, sacudiu, largou, pegou”. Repetia, pelo menos, quatro vezes, até que as alunas notassem alguma diferença. Por fim, eu repetia as duas cenas, desta vez exagerando o olhar do bebê de oito meses ao receber o objeto. Então, sim, ficava explícito o vínculo pelo olhar do bebê de oito meses, dirigido à pessoa que lhe entregava o objeto. Esse vínculo é fundamental! A música pode prolongar o tempo de duração desse olhar, essencialmente humano, que a criança estabelece com quem se dirige a ela. O vínculo pelo olhar abre as possibilidades para o surgimento das relações intersubjetivas no ser humano. Essa informação vem de Tomasello. (EN4, 2021, p.4-5).

No exemplo citado pela professora, busquei relacionar os referenciais teóricos que embasavam suas reflexões, sendo essa apenas uma das tantas narrativas que ela me contou durante as entrevistas. Ficam claros para mim seus modos de pensar e agir sobre o ensino e aprendizagem musical na relação com outras áreas do conhecimento.

Então, vou falando da importância de todos os elementos que fazem parte da vida da criança, das brincadeiras, do seu modo de interagir e vou associando com a aprendizagem musical que ocorre a partir da estrutura dos versos, da estrutura das brincadeiras, por exemplo: Seu Joaquim quirim quim, da perna torta ratá [cantarolou]. Essa estrutura repetitiva é diferente daquela estrutura que forma sequências ordenadas: Estava a velha no seu lugar, e veio a mosca lhe incomodar, a mosca na velha, a fiar… lá rá, lá rá… e vai e fazem um cacho sem fim! [idem] E a criança, quanto mais ela aprende coisas da cultura, mais facilidade terá para dominar a estrutura da língua materna, consequentemente, maior domínio expressivo. Porque a estrutura da linguagem e dos sons da cultura, das brincadeiras culturais, ajudam e dão flexibilidade para a criança entender a estrutura da língua materna. Belinante [Gustavo Belinante], que é um especialista no Brasil em alfabetização, deu uma palestra em Porto Alegre [e] chegou aqui dizendo: para a criança aprender, para se alfabetizar, ela tem que aprender os instrumentos da cultura, por excelência: as músicas, as quadrinhas e as brincadeiras musicais. Fiquei feliz, tive vontade de gritar de alegria! Então, no que se refere à alfabetização, a música é reconhecida como essencial […]. Disse o palestrante que essas associações que a criança faz, [por exemplo], a música do sapo [o sapo não lavo o pé], levam a criança a escrever. Então, ensinar música para as crianças é o que melhor se pode fazer – disse Belinante. (EN4, 2021, p.8).

As atividades e os conteúdos incluídos em seu roteiro de orientações didáticas foram permeados por esses diálogos entre as áreas de conhecimento e a busca constante por autores que auxiliavam suas reflexões e observações, em especial demonstrados na escolha deste tópico, para este artigo. Penso ser, também, um momento de perceber os conhecimentos adquiridos e compartilhados ao longo de uma trajetória. Na perspectiva de Burnard (2013) e Shulman (1987), visualizo Leda como uma professora de música e formadora de pedagogas que possui esses conhecimentos e que de modo direto ou indireto compartilhou-os com seus estudantes em sua carreira como docente.

Considerações

Ter a oportunidade de conhecer e escutar as narrativas da professora de música e formadora de pedagogas Leda Maffioletti foi importante na construção da minha formação humana e profissional. Afirmo que suas palavras impactaram minha formação como pesquisadora, professora de música de crianças, motivando-me a continuar investigando a relação entre música na Educação Infantil e música e Pedagogia, em contextos de formação de professoras. Nesse sentido, compreendi que olhar com uma lupa para a experiência da professora, escutá-la e aprender por meio das conversas me formou e me transformou, como, por exemplo, a entrevista que focou sobre as fundamentações teóricas, na relação da música com autores que abordam o desenvolvimento cultural da criança. Leda trouxe, em sua fala, conceitos e ideias suas e de outros autores que eu não tinha conhecimento. Considerando essas aprendizagens, de forma positiva em minha formação, não há como ir para a escola trabalhar música com as crianças do mesmo jeito que ia antes. As (trans)formações me acompanham. E, para além disso, demonstrou respeito e compromisso comigo e com a pesquisa, sendo didática nas entrevistas e atenciosa com o compartilhamento de outros materiais, deixando marcas de como se produz uma pesquisa com ética e responsabilidade social.

Da mesma forma, poder compartilhar e contar junto com ela parte de sua história é contribuir para a produção de conhecimento e, especialmente, o reconhecimento do seu trabalho na educação musical e na Educação no Brasil. Busquei apreender e desvendar os significados atribuídos pela professora Leda Maffioletti às atividades de canto e apreciação desenvolvidas na disciplina de Educação Musical no curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Refletindo sobre suas experiências e em diálogo com as autoras que fundamentaram minhas reflexões no presente artigo, considero que seu modo de pensar, agir e fundamentar sua prática em sala de aula é, também, uma maneira de compreender a educação musical em cursos de Pedagogia.

Compartilhar suas experiências com as licenciandas, escutar suas histórias, era a maneira de aproximá-las da realidade da profissão e estimulá-las a tomarem suas próprias decisões futuras. Esses conhecimentos compartilhados com as estudantes, ao longo da trajetória da professora Leda, expressam suas ações e modos de pensar uma educação musical em determinado tempo e espaço.

Conforme apontado pelas pesquisadoras, o retorno do sujeito-ator-autor tornou legítimas as experiências vividas de professores, por meio de suas narrativas, memórias e histórias de vida como fonte de produção de conhecimento. Essas autoras auxiliaram a compreensão sobre a abordagem (auto)biográfica e o método biográfico, assim como as questões que envolvem a experiência como forma de conhecimento, em particular na percepção da interface individual e social, reconhecendo o sujeito como ser singular e plural.

Verifiquei a constante busca pelo conhecimento na curiosidade e no interesse que movimentaram as observações e pesquisas desenvolvidas pela professora, ressaltando e confirmando as sete categorias elaboradas por Shulman, assim como o terceiro gênero apontado por Nóvoa, como apropriação de uma experiência refletida. Conectando teoria e prática, Leda aproximou diversas áreas de conhecimento e constituiu-se professora de música formadora de pedagogas. Nesse sentido, as narrativas de experiências vividas da professora Leda corroboram a discussão e a pertinência sobre a formação musical de futuras professoras que trabalharão na Educação Básica, sobretudo, neste artigo, as que atendem à modalidade de Educação Infantil.

Ao mesmo tempo, despertar a musicalidade dessas estudantes é possibilitar uma formação global, no sentido profissional e humano, e, consequentemente, proporcionar mais segurança em seus momentos de atividades com as crianças. Isso pode ser verificado em suas narrativas, nos modos como a professora preparava e articulava suas aulas e nas maneiras como auxiliava as elaborações de planos de aulas com as licenciandas. Para mim, Leda tem uma visão humana e intelectual de ensino, despertando nas estudantes as emoções e os sentimentos que a música proporciona, para além dos conhecimentos técnicos.

As mudanças e transformações foram acompanhadas pelo significado de ser professora de música, formadora de pedagogas. Valorizar a música e transmitir esse valor para suas estudantes eram formas de chegar até as crianças na Educação Básica. Por isso, encorajá-las a despertar suas musicalidades era prioridade, tendo como guia o desejo de “contribuir […] para a construção do ser humano na sua totalidade” (MAFFIOLETTI, 1996, p.7-8).

Ademais, observei que, oferecendo as disciplinas eletivas de música antes de a disciplina de Educação Musical passar a ser obrigatória, em 2007, Leda estava à frente de seu tempo. Talvez, na tentativa de reorganizar a estrutura do ensino, busca incluir a música como disciplina específica, sabendo da importância dessa para a formação das estudantes, já que no período vigorava a Lei n.º 5692 do ano de 1971, a qual tinha como característica a formação polivalente. Portanto, mais uma vez, reitero que legitimar o conhecimento empírico de profissionais da Educação Musical e de outras áreas é contribuir para os aspectos educacionais, políticos, sociais e culturais do próprio sujeito e da sociedade.

Dessa forma, apreendi os sentidos dados pela professora, como sujeito epistêmico e biográfico, no movimento de tríplice mimese, entre a narrativa e o tempo, no qual Ricoeur (1994) relata a observação, interpretação e compreensão da narrativa que constitui a identidade. Essas são questões fundamentais para chegar ao conhecimento de si e do mundo, segundo o autor. É nesse sentido que, ao narrar parte de sua história, Leda possibilita a legitimidade e o potencial epistemopolítico almejado pela pesquisa (auto)biográfica.

REFERÊNCIAS

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Notas

3 Dissertação de mestrado intitulada “Leda Maffioletti: música na infância e na formação de pedagogas” (PEDROLLO, 2022), com apoio de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil CAPES – Código de Financiamento 001.

4 Optei pelo genérico feminino para me referir a ambos os gêneros por considerar que a maioria dessas profissionais e estudantes é mulher. Da mesma forma, essa escolha se estende às autoras e pesquisadoras, que compuseram, em ampla maioria, as referências teóricas desta pesquisa. Entretanto, manterei o gênero masculino para os demais sujeitos citados(as) no decorrer do texto.

5 Sobre detalhes do “giro linguístico”, vide Rojas (2001).

6 Conforme Projeto Pedagógico de Curso Licenciatura em Pedagogia (2019). Disponível em: https://www.ufrgs.br/pedagogia/wp-content/uploads/2019/03/PPC__Curso_PEDAGOGIA_FACED_2018_VERSAO-2019-1.pdf. Acesso em: Jun. 2022.

7 Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/comissoes-cns/conep/

8 Editor de filmes que o usuário pode criar, editar seus filmes no computador. Disponível em: https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/windows-movie-maker.html. Acesso em: Fev. 2022

9 SERAFINE, Mary Louise. Cognitive processes in music: discoveries vs definitions. Bulletin of council for research in music education, n. 73, p. 1-14, 1983.

10 MAFFIOLETTI, Leda. Formação de professores na licenciatura: processos narrativos na/da apre-ciação musical. In: ROCHA, Simone Albuquerque da (org.). Formação Professores: licenciaturas em discussão. Cuiabá: EdUFMT, 2010. p. 43-54.

Autor notes

1 Professora de música na Educação Infantil e doutoranda em Música – Educação Musical (PPGMUS/ UDESC) com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES), Código de Financiamento 001. Licenciada e mestra em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e licenciada em Pedagogia pela Universidade Paranaense (UNIPAR). Integrante do grupo de Pesquisa “Educação Musical e Formação Docente” (ForMusi/UDESC/CNPq).

2 Licenciada em Música, mestra e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atuou como orientadora dos estágios de Docência em Educação Infantil e professora de Educação Musical no curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação da UFRGS. Dedica-se à pesquisa nas áreas de Educação Infantil e Formação de Professores. Atualmente é uma das coordenadoras do GT da ABEM Pesquisa (auto)biográfica e Educação Musical