Dossiê

Saberes emergidos na pandemia: o caso do Coletivo Brasileiro de Trombonistas

Emerging knowledge in pandemic times: the case of the Brazilian Collective of Trombonists

Klênio Barros

Câmara Municipal de Ílhavo, Portugal

 

Samuel Barros

Universidade de Aveiro, Portugal

 

Antonio Seixas

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Contínua

vol. 7, núm. 2, 2022

revistaorfeu@gmail.com

Recepção: 07 Abril 2022

Aprovação: 19 Julho 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/21952

DOI: https://doi.org/10.5965/2525530407022022e0104

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

 

Resumo: Partindo da realização do I Seminário Virtual de Trombone, promovido pelo Coletivo Brasileiro de Trombonistas (CBT) em plena pandemia, este artigo é uma proposta de reflexão sobre a percepção das transformações operadas nas cartografias do saber em tempos de pandemia. Como marco teórico, utiliza-se o conceito de pandemia intelectual e propõem-se ferramentas conceituais para a realização de alguns deslocamentos necessários para uma Ecologia de Saberes. O objetivo é entender como se desenvolvem, em contextos de isolamento, os processos de constituição de saberes, à luz do caso particular do CBT. Esta pesquisa apontou para o questionamento sobre como a lógica da pandemia intelectual em curso se articula com a constituição de saberes em trânsitos virtuais. A análise dos testemunhos conseguidos possibilitou a definição de 8 categorias principais de análise e a construção de uma cartografia social do que emergiu, que nos encaminhou rumo às respostas para as perguntas levantadas neste estudo.

Palavras-chave: Música(s) na pandemia, Trombone, Ecologia dos Saberes, Pandemia Intelectual.

Abstract: This paper addresses knowledge cartography transformations in pandemic times based on the perceptions collected in the I Virtual Trombone Seminar, promoted by the Brazilian Collective of Trombonists (BCT) during the Covid-19 pandemic. The concept of intellectual pandemic underpins the literature review and the conceptual tools proposed to shed light on the necessary shift toward an Ecology of Knowledge. The study aims to understand how the processes of knowledge constitution are developed in isolation contexts, focusing on the particular case of BCT. Therefore, this research discusses how the logic of the intellectual pandemic in course articulates with the constitution of knowledge in virtual transits. The reflection and study of the participants’ narratives enabled the definition of 8 main categories of analysis and the construction of social cartography, which led us to answer the central questions raised in this study.

Keywords: Music(s) in pandemic times, Trombone, Ecology of Knowledge, Intellectual Pandemic.

Partilhando alguns entusiasmos

Há coisas no mundo pelas quais vale a pena lutar.Somos os MosqueteirosUm por todos e todos por um [...]” (Dumas, 2019).

Um golpe súbito toma conta hoje das nossas vidas sob a forma de uma pandemia de novo tipo, algo que as etnomusicólogas e os etnomusicólogos — em tempos difíceis — há muito já escreveram sobre as dimensões das crises e das incertezas à escala planetária. Se seguirmos o pensamento de Santos (2020b), podemos pensar que todo esse quadro pandêmico, na realidade, configura uma pandemia dentro de outra pandemia. Além disso, na multiplicidade de causas que a potenciam e no emaranhado de efeitos e consequências que atualmente se experimentam, emergem processos sociais ativos e profundamente heterogêneos de constituição de saberes, ainda mais no que diz respeito à música, veiculada em trânsitos virtuais.

O conceito de saber que este estudo assume, em articulação com as propostas de Bondía (2002), tem a sua raiz na experiência dos indivíduos, como aquilo que nos atravessa, que nos acontece e que nos toca politicamente. Por essa razão, não se alinha com a máxima contemporânea da informação — vivemos numa sociedade de informação, tendenciosamente acrítica, na qual passamos constantemente de uma tela para a outra, porém pouco nos toca intimamente.

Em primeiro lugar, nesses tempos de pandemia e de instabilidade sociopolítica, o universo artístico e, de forma mais específica, o campo da música em si, tem vindo a atuar como um dos mais importantes elos da sociedade. Em segundo lugar, o mundo tecnológico/virtual teceu novas bases e modos de (r)existir, pensar e agir relacionados à música: são tempos de lives, de concertos transmitidos em direto/ao vivo pela internet (YouTube, Facebook, Instagram, Zoom Meetings, Google Meet etc.), de audiências ocultas, de reconfiguração das formas de coexistir e das sociabilidades performativas. Acrescenta-se a isso mutações recentes na área da educação, em particular das reuniões, das conferências e das aulas ministradas e mediadas impreterivelmente pelas novas tecnologias.

Em suma, a pandemia e tudo o que vem com ela (o encerramento das relações físicas e a incerteza em relação ao futuro, por exemplo) provocaram transformações que são sentidas pelas musicistas e pelos músicos, despertando sentimentos difíceis de enfrentar. Um sentimento de ter que lidar com uma espera que não cessa. Uma sensação de que o tempo e/ou a vida estão acontecendo sem estarmos lá fora. Se considerarmos os desafios e as aflições que as/os performers estão passando, elas/eles próprias/os estão a referir que os dias são mais longos, que é frustrante ter um concerto musical adiado ou uma turnê cancelada. Estas consequências, para além de acarretarem dificuldades financeiras, implicam também na ausência das relações cara a cara e da vida que nós partilhávamos há décadas.

Diante desse novo cenário, etnomusicólogas, etnomusicólogos, artistas, musicistas, músicos e, em especial, as/os trombonistas têm sido rápidos a procurar conhecimento e a promover espaços de diálogo. Constroem-se redes, lançam-se projetos e ativam-se cumplicidades. Esse é o caso do I Seminário Virtual de Trombone, realizado pelo Coletivo Brasileiro de Trombonistas (CBT), um movimento que nasce a partir do desejo de fazer comunidade e de resistir frente aos tempos de pandemia (MACHADO, 2021).

O fato é que a conjuntura na qual o Seminário se deu instigou-nos a refletir sobre as transformações ocorridas nos modos de pensar, ensinar e agir relacionados à prática trombonística no contexto brasileiro. Em face dessa reflexão, o objetivo central deste artigo é compreender como se desenvolvem, em tempos de isolamento, os processos de constituição de saberes no contexto do CBT e produzir uma cartografia social do que emergiu por meio das narrativas das/dos intervenientes.

Dessa maneira, três questões norteiam este trabalho: (i) quais os saberes que emergiram a partir do CBT? (ii) considerando o fato da sua realização ter sido feita por vias virtuais, quais são os mediadores que contribuem para a construção desses saberes? E, finalmente, (iii) como esses saberes se organizam e/ou se encontram edificados em termos de luta política comum própria ao CBT?

O I Seminário do CBT, realizado de 05 a 07 de setembro de 2020, via plataformas digitais, procurou, nesses novos tempos, fomentar as trocas de experiências, o estudo, a docência e o aperfeiçoamento técnico das/os trombonistas. Para isso, foram realizadas cursos, palestras, mesas-redondas, partilha de conteúdos e conjuntos de atividades cujos temas-chave escolhidos foram sentidos pelos idealizadores como escassos na maioria dos festivais e eventos trombonísticos conhecidos até então (MACHADO, 2021 — conteúdo disponível na plataforma Facebook do CBT).

O CBT mobilizou participantes nacionais e internacionais, incluindo professoras, professores e estudantes. Ressaltamos ainda que o seminário despertou interesse de outras comunidades de instrumentistas de sopro (metais e madeiras), agregando outras vozes ao coletivo. Face a isso e dada a heterogeneidade dos processos sociais envolvidos, entende-se o coletivo não apenas como um espaço de consensos, mas também como um espaço pluriverso (MIGNOLO, 2013) de produção de saberes através dos dissensos, oportunizado pelas palestras, mesas-redondas e aulas virtuais.

Para responder às questões norteadoras deste trabalho, adotamos, como estratégia metodológica, duas vias particulares de trabalho: uma online e a outra offline4 (HINE, 2004). Baseado nesses dois itinerários, os procedimentos metodológicos de ação que este estudo seguiu contaram, mais especificamente, com a observação e análise de conteúdo dos materiais (registros de áudio, de vídeo e de documentos veiculados nas redes) disponíveis nas plataformas digitais utilizadas no seminário do CBT, incluindo os chats de comentários. Além disso, procedemos à realização de uma entrevista semiestruturada com um dos idealizadores do CBT e a realização de um grupo focal com algumas/alguns participantes (oito pessoas), com vista à construção de categorias — das percepções comuns abordadas — para posterior análise.

A participação neste estudo foi voluntária e contemplou as cinco grandes regiões do Brasil (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul). As/os interlocu-toras/es são diversificadas/os em relação ao gênero, à idade, à especialidade e ao grau de instrução. Além disso, foi-nos autorizado, em entrevista, o uso dos seus respectivos nomes, a mencionar: Eduardo Machado, Joyce Peixoto, Nerisvanda Rodrigues, Liliane Santos, Anielson Ferreira, Alessandra Linhares, Pedro Augusto, Juliana Gomes e Wilhian Werle.

Uma pandemia de novo tipo

Quando pensamos em pandemia, pensamos em quarentena (SANTOS, 2020b). Quando pensamos em quarentena, de alguma forma, pensamos em isolamento (SCHWARCZ; STARLING, 2020). Seguindo essa lógica, quando pensamos em isolamento, pensamos no encerramento das relações cara a cara, do abraço, do toque entre pessoas. De modo particular, Santos (2020a) é da opinião de que, com a pandemia, se renovam as formas de relacionamentos e de afirmação do poder de uns sobre outros.

Para além das diferentes perspectivas que se pode levantar, neste ponto, o mais importante a destacar é que tal pandemia/quarentena/isolamento não se dá apenas no plano físico, mas também na esfera intelectual/epistêmica das nossas sociedades de hoje. Isso é reforçado no pensamento de Žižek (2020, p. 39): “a atual propagação da epidemia de coronavírus acabou também por desencadear uma vasta epidemia de vírus ideológicos que estavam latentes nas nossas sociedades”. Também é corroborado nos trabalhos de Santos (2020a, 2020b), Innerarity (2020), Krastev (2020) e em muitos dos textos publicados em Sopa de wuhan (AGAMBEN, 2020).

Nossa percepção tem a ver com o fato de entender que a epistemologia dominante produziu ao longo do tempo, e segue produzindo, uma forma de ver e de gerar conhecimento que descredibiliza/suprime práticas sociais concretas de conhecimentos-outros, incluindo os saberes que são apontados por Foucault (1984) e Haraway (1995) como saberes subjugados. Isso constitui o que Santos (2018) designa por “epistemicídio”, uma espécie de máquina de fabricar ausências. Para Gutiérrez (2007), é um mal herdado, gerador de violência epistemológica, ou, nos termos de Richard Rorty (2001), uma asfixia do mundo sensível que nos impede de reinventar formas de pensar e agir diante do infinito dos mundos.

A concepção de pandemia intelectual que emerge está relacionada sobretudo com o modelo atual de sociedade capitalista, colonialista e patriarcal o tripé que está na base dos processos de dominação nas sociedades contemporâneas (SANTOS, 2020a). Nesta senda, é importante notar que as utopias são tratadas cada vez mais como sendo marginais (SANTOS, 2020a), ao passo que forças dominantes estão nos dizendo que não há nada a fazer, o que configura uma pandemia de novo tipo. Aliás, uma perigosa pandemia, que contamina os diversos domínios da vida social e que é denunciada nos testemunhos das musicistas e dos músicos participantes do I Seminário Virtual de Trombone.

Desobedientes, mas com argumentos

O âmbito musical (talvez um dos espaços que mais voz presta às emoções) e, em si, a música, uma realidade que nos foge (TRAVASSOS, 2008) ao mesmo tempo em que pode ser sentida e apreciada por todas/os, nos mostra que é preciso relacionar as duas pandemias, porque o lockdown a que estamos sujeitos, se analisarmos com atenção, também é dependente da pandemia intelectual.

Isso se reflete, por exemplo, dos palcos da vida5 até a formação escolar das musicistas e dos músicos, uma vez que, em geral, temos um discurso inteiramente classificado e dominado pela tradição de performance ocidental erudita (que se faz sentir em muitas das produções atuais nas áreas de Educação Musical, Práticas Interpretativas, Performance e Musicologia), que precisa ser repensado, senão as/os artistas correm o risco de estarem sempre à tangente de um papel intelectual e criativo. Existe, por exemplo, uma forte hierarquia na relação entre compositor(a)-intérprete e professor(a)-aluno(a). O/a compositor(a) — tendo em conta o próprio conceito tradicional de obra musical — atua como um soberano em relação ao performer, impondo que a escrita da partitura deve ser respeitada sob pena de quebra de lealdade às intenções do compositor (ASSIS, 2018). O mesmo acontece com a figura do/a professor/a que, supostamente, é quem tem o segredo para compreender as intenções e nuances do/da compositor(a) descritas na partitura, impondo que a/o intérprete seja respeitoso, humilde e obediente.

Ora, essas condições sugerem e reforçam uma relação de poder que é hegemonicamente dominante dentro da tradição de Performance Musical (em geral, associada à música erudita ocidental, embora também contamine outros domínios de expressão e de performance na área da música popular) e que, por intermédio da pandemia intelectual, ficamos anestesiados a ponto de não enxergar que essa hegemonia opera de maneira repressora no pensamento crítico, intelectual e criativo das/dos performers.

Não se trata de negar as nossas experiências formativas, tampouco a historicidade que nos atravessa enquanto indivíduos agarrados à sociedade. O nosso argumento vai precisamente no sentido do que Freire (2001) nos ensina; portanto, as influências devem enriquecer a nossa experiência nas diferenças.

Seguindo esse raciocínio, em muitas das faculdades brasileiras, os currículos, as matérias e seus conteúdos programáticos continuam perfeitamente classificados, estagnados e descontextualizados (QUEIROZ, 2017). Na América Latina, sabemos que o sistema sociopolítico e econômico mudou muito nos últimos anos (MARRAFA, 2021), ainda mais com os efeitos da pandemia (SANTOS, 2020a, 2020b). Para termos um bom exemplo em mente, recentemente as relações sociais, os sons e ruídos do cotidiano urbano (VEIGA; MAIA; FRAGA, 2022; NASCIMENTO, 2020) e a indústria da música brasileira se transformaram radicalmente (MARCHI, 2011; SANDRONI et al., 2021; DATA SIM, 2020), de modo que as matérias, em muitas instituições de ensino, incluindo também muitos eventos e Festivais de música, não acompanham tais mudanças. Como diriam os professores José Jorge de Carvalho e Vicenzo Cambria (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA, 2021), temos que ter uma História da Música que não seja somente europeia, temos que ter uma percepção que não seja apenas ligada à Teoria da Música ocidental, enfim, temos que ter um conjunto de outras coisas, como repensar as práticas de Ensino e Educação Musical, por exemplo.

Em geral, se nós conseguimos enxergar alguma diversidade nos cursos de música, essa diversidade está nas alunas e nos alunos, e não nas matérias ou nos cursos. Vejam um exemplo em concreto: depois da política de cotas no Brasil, houve uma mudança considerável não somente no perfil das/os estudantes, mas também nos trabalhos científicos e teses produzidas; apesar disso, os currículos não mudaram uma vírgula (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ETNOMUSICOLOGIA, 2021). É provável que a presença dessas alunas e alunos nos cursos tenha implicado em alguma mudança, mas não é suficiente. Necessitamos de um esforço sistemático para respirar novamente, debater e pensar outras perspectivas. Ou, permaneceremos entubados, confinados intelectualmente?

Como diria Ailton Krenak (2019, p. 50): “toda pessoa que seja capaz de trazer uma inovação nos processos que conhecemos é [logo] capturada pela máquina de fazer coisas, [ou seja] da mercadoria. Antes de essa pessoa contribuir, em qualquer sentido, para abrir uma janela de respiro”. A convocatória de Krenak nos captura em vários sentidos, porque também o campo da música, por um longo tempo, viveu e ainda hoje vive subjugado por classificações cerradas e por essa coisa que aprendemos a chamar de técnica, assunto sobre o qual se percebe muito consenso e pouco dissenso.

Para diversificar ainda mais os exemplos no campo do Ensino e da Performance, podemos pensar amplamente no fenômeno da improvisação musical. No interior desse domínio tão diverso, experimentar — in the course of performance (NETTL; RUSSELL, 1998) — requer uma projeção profunda sobre o desconhecido (COSTA, 2016, 2018), porque se sabemos o que estamos experimentando, então, não estamos efetivamente experimentando o desconhecido. É paradoxal. Muitas vezes, estamos tão colonizados ao ponto de que o imprevisível, revelado em algumas classes de improvisação (aquelas baseadas impreterivelmente nas teorias norte-cêntricas), constitui apenas uma parte mínima do que restaria por conhecer verdadeiramente, ou seja, a parte pelo todo.

Diante de tudo isso, uma sensação de sufocamento e impotência paira no horizonte. É quando a falta de voz ou de alguma (re)ação que pudesse ser realmente transformadora se somasse com a falta de ar. Será que ainda vamos a tempo de despertar desse quadro pandêmico? É possível ainda abrir uma janela de respiro? Acreditamos que o movimento reflexivo, rumo a um pensamento desclassificado (GUTIÉRREZ, 2007), livre e aberto à cultura popular, seria capaz de produzir a ecologia necessária para nos trazer de volta desse estado permanente de intubação.

Na realidade, com esses exemplos, queremos dizer que a formatação que incorporamos pré-classifica qualquer outro conhecimento possível. Edgardo Lander (2005) chamou a isso de “colonialidade do saber”, mostrando que há um legado epistêmico do eurocentrismo que nos impede de entender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias. Assim, para fazer emergir aquilo que se encontra ausente/oculto/submerso, necessitamos de uma Ecologia de Saberes (SANTOS, 2006).

O conceito de Ecologia de Saberes e o conjunto teórico em que este se insere, resultou, sobretudo, da necessidade de articular conhecimentos diferentes, por exemplo: o saber de elite e o saber de pés-descalços (SANTOS, 2016). O mais importante é que existam perspectivas diferentes ou conhecimentos diferentes sobre temas que nos congregam. O conceito de Ecologia de Saberes, na acepção de Santos (2006), assenta na ideia de que os saberes são todos incompletos. Uns são mais oportunos do que outros para certos objetivos. Todavia, como alertou Santos (2007), o que se observa amplamente é que os conhecimentos não são tratados num pé de igualdade, assim como não são todos válidos. Nesse sentido, a Ecologia de Saberes faz parte de um conjunto epistemológico de construção e validação de conhecimentos no qual o aspecto cognitivo não se separa do aspecto político — que é a grande armadilha norte-cêntrica. Em outras palavras, os aspectos cognitivo e político, apesar de serem distintos, devem viver de modo articulado para que haja um mundo melhor, mais democrático e plural.

Isso implica que, antes de aprender coisas novas, é preciso aprender a repensar o pensamento da epistemologia dominante e, com isso, abrir espaços para outros pensamentos e saberes. É precisamente no seguimento dessas ideias que, no presente artigo, perspectivamos a construção de conhecimentos como sendo uma cocriação (com efeito, são as/os próprias/os interlocutoras/es que dão, a partir das suas percepções, significados a essas questões). O resultado é uma revolução/transformação significativa nos processos de constituição e validação de saberes.

Para dar respostas às questões levantadas neste estudo, dedicamos especial atenção à Ecologia de Saberes (SANTOS, 2006) não com entusiasmo acrítico quanto às Epistemologias do Sul, mas sim introduzindo uma lógica-outra e um novo horizonte a partir do ponto de vista desclassificatório, no sentido que aporta Gutiérrez (2007, 2018, 2020). Se olharmos em profundidade, “Epistemologia” não é só uma invenção eurocêntrica (para não dizer antidemocrática), mas um mero episódio da cultura ocidental, como diria Rorty (2001). Sabemos que a constituição de saberes é um processo absolutamente social e provisório (SANTOS, 2007, 2016), isto é, transforma-se no tempo, ao calor das diferentes culturas e dos distintos modos de sociabilidade e mediação. Basta ver que nas diferentes culturas musicais, a música, seja lá o que for, não sobrevive ao desejo de quem a faz.

Em síntese, o que todo esse contexto nos coloca enquanto desafio é que devemos ser autocríticos das nossas próprias concepções sobre organizar, fazer e pensar acerca da música. É o momento de superar a chamada pandemia intelectual, de mudar de concepção (sair do lugar comum), de saber ouvir os dissensos e de fazer emergir as ausências.

O caso do CBT

O I Seminário do CBT “[...] só aconteceu porque estamos em tempos de pandemia” (MACHADO, 2021). Um tempo em que “[...] nós, como trombonistas, conseguimos refletir um pouco mais do quanto podemos doar para o outro [...]” (MACHADO, 2021). Se analisarmos bem, somos todos tragados cotidianamente pelo ritmo acelerado da vida urbana e “[a pandemia] [...] foi um tempo da gente parar e ressignificar as prioridades [...]” (MACHADO, 2021). ‘Parar’, porque, de uma hora para a outra, sem preparação alguma e de uma forma completamente fora do nosso controle, a vida e as relações mudaram radicalmente. Para muitas musicistas e músicos, em tempos de pandemia, a primeira iniciativa foi oferecer aulas e concertos musicais online, gratuitos e remunerados. Porém, não se podia imaginar que esse tipo de configuração pudesse durar tanto tempo. Por isso, como refere Eduardo Machado, surgiu a necessidade de fazermos um autoquestionamento: “o que que se pode fazer mais?” (MACHADO, 2021). Nas palavras de Machado:

Dei ideia para o Rapha e pro Ricardo, eles compraram [a ideia], e a gente começou a fazer uma série de lives. E aí a pandemia foi se estendendo. As lives também se esgotaram [...]. Era uma coisa que já estava muita gente fazendo [...]. A gente não tinha ideia de que a pandemia ia durar tanto tempo [...]. Eu chamei o Bocão pra fazer uma live; foi super legal [...]. Escrevi no facebook [...]: quem dos amigos trombonistas acha que a gente deveria fazer um festival online? Aí algumas pessoas falaram: vamos fazer, vamos fazer. A gente começou a se reunir [...]: como a gente vai fazer um festival online? Já que estamos fazendo isso aqui junto, vamos tentar fazer alguma coisa que não seja nos moldes das associações que tem hoje, né. Que tem um presidente que manda, um secretário. Vamos fazer uma coisa mais democrática [...]. Vamos nos colocar no lugar dos alunos. O que você gostaria de ver hoje? [ou] de assistir? A gente pensou: trecho de orquestra vai ser legal, uma aula de respiração [...]. Aulas de técnicas. Aí surgiram as mesas e falamos: olha, um assunto que precisa ser muito debatido é esse das mulheres. O que que a gente pode fazer pra incluí-las? E a gente chegou a ver que, realmente, no CBT, só tinha homem [...]. Aí o Elber, como está na pós-graduação, falou: vamos fazer uma mesa da pós-graduação também. [...] E aí, uma preocupação que a gente teve, desde o começo, é incluir as pessoas, não excluir. [...] Então, [concordamos em] termos a maior diversidade possível. O CBT aconteceu com esse prisma, de tentar ser o aluno na hora de fazer o festival e [tentar perspectivar] o que que ele gostaria de assistir numa aula. [...] E foi assim que foi feito o coletivo (MACHADO, 2021).

O testemunho de Eduardo revela não só um dos momentos importantes da constituição do CBT, mas também mostra como a pandemia sacudiu a sociedade e fez emergir, em tempos de crise sociopolítica, iniciativas musicais comunitárias e inclusivas, tão necessárias ao contexto brasileiro, sobretudo depois da extinção do Ministério da Cultura e do flagelo que se abateu desde então no domínio das Artes em geral.

Dito isso, é hora de esclarecer a travessia para a constituição de uma cartografia social particular sobre o que emergiu a partir do I Seminário do CBT, desta vez, privilegiando as vozes das/dos trombonistas participantes do Seminário.

Apontamentos parcelares

Do contato efetivado com as colaboradoras e colaboradores, consideramos os relatos sobre os saberes fundamentais que emergiram a partir do I Seminário do CBT. Em meio à grande diversificação das experiências individuais, existiu a necessidade de diagnosticar o comum, chegando às categorias de análise fundamentais. Quanto a isso, faz-se ainda necessário uma explicação de novo tipo: dizemos ‘analisar o comum’ não reduzindo ao que é consensual entre as/os participantes, mas, sobretudo, como forma de fazer emergir aquilo que cria conflito e que vai produzir conhecimento e luta política.

Nesse contexto, definimos oito categorias principais de análise que foram assim designadas: 1) impactos da pandemia; 2) “tempo”, porque a vida não é só tocar trombone; 3) resistir às pandemias; 4) abordagens diferenciadas; 5) acrescentar tópicos importantes; 6) as principais lições; 7) a cena trombonística futura em perspectiva; e, por fim, 8) a singularidade do CBT. Essas categorias constituem elementos que, na medida em que são reiterados pelas musicistas e pelos músicos participantes, são entendidos como fundamentos importantes e comuns. Tais categorias são essenciais para a análise e constituição da cartografia própria ao caso do CBT.

Uma cartografia social do que emergiu a partir do I Seminário do CBT

Um dos primeiros temas a ser tratado é de natureza mais ampla, porque refere-se aos impactos da pandemia. As narrativas ganham forma em pelo menos dois sentidos: uma parte positiva e uma parte negativa. Conforme os testemunhos, a parte positiva tem a ver com o fato de entenderem que a internet, nesses tempos, aproximou as pessoas e contribuiu para os seus movimentos de emancipação6 (tal como no caso do movimento feminino brasileiro de trombonistas7). Além disso, o fator “tempo” foi fundamental, bem como a possibilidade de desenvolver outras habilidades (escrever, ler, meditar etc.). Já a parte negativa refere-se sobretudo ao encerramento do contato cara a cara com as pessoas, dos ensaios, das aulas presenciais, do contato com o público e de tocar em grupo.

Face ao exposto, as palavras de Joyce Peixoto sintetizam bem a sua aproximação com o movimento feminino trombonístico: “[...] tive, com a pandemia, a oportunidade de estar mais próxima [do movimento] das meninas, [...]. A grande maioria eu não conhecia” (PEIXOTO, 2021). O movimento ganhou, nesses tempos difíceis, uma explosão de expectativas emancipatórias. O resultado foi a realização de uma mesa redonda totalmente dedicada ao contexto da mulher trombonista. Por outro lado, impactou, “para mim [...], parar de tocar nos lugares” (PEIXOTO, 2021). De acordo com os relatos, há um sentimento comum de que a/o artista precisa sentir a presença de seus corpos no palco e do público presente, “do aplauso, [...] [enfim,] precisa das pessoas junto” (RODRIGUES, 2021). Basta recordar o que dizem as/os performers quando afirmam que nunca uma apresentação musical é igual a outra, porque, como diria Rita Segato (CENTRO CULTURAL RECOLETA, 2020), a vivência se faz com a materialidade de um público presente. Existem ‘impulsos’ que, em algum lugar no corpo das/os artistas, captam estímulos emocionais diversos. Segundo Rodrigues (2021), nós somos motivados por isso: “por emoções e, [...] [com a pandemia] a gente ficou isolado dentro de casa. Isso acarretou muitos problemas emocionais na vida dos músicos”.

Se para uns a pandemia trouxe um sentimento de caos e sofrimento, para outros foram criados laços de cumplicidade e fortalecimento através da internet. É precisamente nesse momento de reconfiguração da vida social que as mulheres trombonistas encontraram uma janela de respiro.

Como a Joyce falou, a gente teve mais espaço para dialogar com os meninos [...]. Passou o que? Passaram-se 20 anos na ABT para ter uma mulher dando aula né. A gente, aos poucos, esse ano, a Joyce, a Juliana, eu, as meninas também, a Luana foi chamada para dar aula nos festivais. Foi um momento histórico para a gente também (RODRIGUES, 2021).

Em tempos de crises, as aspirações e desafios que condicionam as lutas e experiências cotidianas relacionadas à prática da música são outras, conforme mencionado pelas/os participantes: paciência, limpeza da alma, autoconhecimento, valorizar mais as coisas simples, cuidar do emocional e do mental, atualizar-se, fazer comunidade, resiliência e “tempo”. É sobre o “tempo” que iniciamos a nossa próxima categoria de análise: “Tempo, porque a vida não é só tocar trombone” (FERREIRA, 2021). Nas palavras de Liliane Santos:

Antes dessa pandemia eu estava trabalhando muito [...] e estudando, porque, além do quartel, eu toco em vários lugares da cidade e, enfim, eu estava num ritmo louco, e aí, do nada, eu parei [...]. E, de certa forma, foi bom, porque eu descansei. [Entretanto], sinto falta de tocar em grupo [...] falta de estar com as pessoas. O lado bom: eu precisava parar [...]. Questão de estudos, no fundo, até me ajudou nessa pandemia. Eu acho que dei um up nos meus estudos: questão de ler, questão de [...] procurar outras coisas. Para mim, a palavra do momento nessa pandemia é tempo. Precisei de tempo para descansar [...] e entender que tem dias que não vai rolar. Tem dias que eu não vou estar legal com o trombone, que eu não estou bem, que não vou estar a fim. É sentar e entender o que é que está acontecendo. No outro dia eu pego as coisas e engato, sem ficar me cobrando sempre. Então, acho que a palavra certa do momento, neste momento pandêmico da vida é tempo (SANTOS, 2021 — Negrito nosso).

Anielson Ferreira vai no mesmo sentido e complementa afirmando que:

Tem outras coisas que, durante a pandemia, a gente repensa [...]. Quantas vezes, quanto tempo, a gente passa trancado no quarto, numa sala de estudo, tocando trombone, e a vida lá fora [...] acontecendo. E a vida não é só isso né [...]. A vida não é só tocar trombone (FERREIRA, 2021).

Como narram as/os interlocutoras/es, somos assaltados cotidianamente pelo ritmo frenético dos acontecimentos, do consumo e da busca por uma técnica musical de excelência, de modo que já não conseguimos perceber a forma como temos vivido, o que afeta diretamente na capacidade crítica e de criação, tão necessária a um/a artista. Como apontam muitas/os das/os participantes: “já não temos [sequer] tempo de nos pensar” (RODRIGUES, 2021). Em outras palavras, “tocar trombone é legal. É maravilhoso. Técnica é muito importante, mas [...] não pode ser [o fundamental]. Saber transmitir, sentir [...], [formular] outras ideias [...] é muito melhor [...]” (SANTOS, 2021). Contudo, para isso acontecer, temos que olhar para outras esferas da vida. “Vou falar três palavras [...] que estão sendo fundamentais nessa pandemia: tempo, paciência e limpeza da alma. [Temos] que repensar várias coisas” (SANTOS, 2021). Levando em conta os testemunhos, parece necessário salientar os cuidados com a saúde mental e física, saber ouvir e aprender a partir de novas cosmovisões relacionadas à prática de estudo atual e manter-se atenta/o quanto à reconfiguração dos processos de aprendizado e sociabilidade que hoje, em meio aos trânsitos virtuais, estão batendo à porta.

As teias de significados que atravessam as narrativas das/dos participantes nos levam a pensar, amplamente, que as práticas musicais, num sentido oposto das homogeneizações patriarcais e sociais que conhecemos, nos convoca a repensar as práticas relacionadas à Educação Musical, ainda tão focada no contexto erudito ocidental. Acreditamos que a experiência musical pode ser vivida de uma maneira mais expansiva e plena na relação com os outros e com nós próprios, incluindo o corpo — aspecto reiterado pelas/os participantes e correlacionado, através dos relatos, com a saúde mental e física.

A leitura transversal do material coletado nos leva a pensar que as pandemias em curso e as exigências desses novos tempos, apesar das consequências negativas já referidas ao longo deste texto, têm nos tornado performers e indivíduos muito mais fortes, reflexivos e preparados ao combate (no contexto das mudanças abruptas, das lutas e dos desafios cotidianos), de modo que as ‘representações de si’ e ‘do nós’ oferecidas na nossa sala de reunião (grupo focal) são entendidas pelas/ os próprias/os interlocutoras/es como uma forma de resistir às pandemias.

Resistir, para as/os participantes, significa, em primeiro lugar, superar o que chamamos aqui de pandemia intelectual. Se olharmos mais em profundidade, as narrativas das musicistas e dos músicos estão dizendo que resistir implica também o existir da sua voz como algo importante e que deve ser levado em consideração — tal como aborda Spivak (2021), em “Pode a subalterna tomar a palavra?”. Mais concretamente, resistir, para elas e eles, significa criar coisas novas, aprender e partilhar outros saberes, ampliar as redes de contato, fazer comunidade, criar relações e/ou formas de autoajuda, enfim, realizar um trabalho/investimento sobre si mesmo para autoconhecer-se e emancipar-se. Além disso, existe o entendimento comum de que o Estado e as instituições brasileiras, considerando as crises sociopolíticas e o fracasso atual com relação ao enfrentamento da Covid-19, não vão abrir espaços que favoreçam a existência de outros saberes. Por isso, para as/ os participantes, é cada vez mais relevante aproveitar as oportunidades.

Como disse Ferreira (2021), “oportunidade não pode deixar passar” e o I Seminário do CBT constituiu, para elas e eles, esta oportunidade. Uma oportunidade de “saber como é que os professores e as pessoas, que já são profissionais da área, estavam lidando com a pandemia, com essa situação [...]” (LINHARES, 2021). Oportunidade de sentir a vida pulsar e habitá-la de uma outra forma, ainda que confinados ao espaço de suas casas.

Se analisarmos com atenção o background sociopolítico que está implícito, as percepções das/dos participantes têm por base um momento histórico inédito de ressignificação de saberes em trânsitos virtuais, no qual o saber é socialmente convertido através de práticas de ensino instrumental mais inclusivas e livre de ansiedade, sobretudo porque procura compreender de maneira holística o perfil individual de cada indivíduo. Por isso, entre as/os trombonistas existe claramente a percepção de que “a gente tem que buscar o conhecimento cada vez mais [...]” (RODRIGUES, 2021). Aliás, uma das coisas mais importantes desses novos tempos, “eu acho que é a construção de conhecimento” (RODRIGUES, 2021) ou melhor: de outro tipo de saber.

Mas, onde está esse saber? Que tipo de saber é que estamos a falar? Os testemunhos analisados nos mostram que os saberes (ocultos, submersos ou ausentes) existem soando permanentemente por aí. Eles conversam o tempo inteiro conosco na vida cotidiana e nas nossas experiências locais ou regionais. O que ocorre é que esses saberes não são ouvidos, ou seja, não têm reverberação (pensem na cosmovisão feminina, ou nos infindáveis saberes oriundos da cultura popular, por exemplo). No caso do I Seminário do CBT, tal reverberação encontra a amplificação que se quer através do uso privilegiado de abordagens diferenciadas, que serão explicitadas a partir de agora.

“Foi bem gratificante [...] participar da mesa-redonda das meninas” (LINHARES, 2021) e “acompanhar a mesa sobre pós-graduação” (AUGUSTO, 2021). “Teve [também] duas palestras que ficaram na minha mente, e até hoje eu penso nelas que foi: a palestra da professora que deu sobre o nosso corpo (Técnica Alexander) e o do professor de tuba [...] [sobre] respiração” (GOMES, 2021). No entanto, do ponto de vista transformador sobre o que marcou efetivamente a experiência pessoal das/dos participantes, é unânime e claramente visível nas narrativas o protagonismo que teve a mesa-redonda das meninas, cujo tema foi equidade, liberdade, sororidade e representatividade no meio musical:

Foi a primeira vez que tivemos esse encontro num festival. [...] Realmente, foi um marco histórico no Brasil [...]. A gente nunca tinha reunido as meninas para falar da nossa realidade, da nossa vivência. Um outro fator que me impactou muito foi o quanto os meninos estavam abertos a nos ouvir e a nos entender. Isso realmente me causou um impacto muito positivo. [...] Eu não sabia que eles estavam abertos [...] (PEIXOTO, 2021).

Ao ir juntando os retalhos dispersos nessa teia de relações, e também para romper com a hegemonia da abordagem estritamente técnica (de matriz eurocêntrica), as/os participantes externalizam a relevância de acrescentar tópicos importantes nos Festivais e articular com temas que estejam relacionados às práticas de ensino atuais, como planejamento de carreira, mercado de trabalho, atividade física, ansiedade na performance musical e outros temas voltados à saúde e bem-estar do/a músico/musicista. Ademais, abrir espaço para a cosmovisão feminina (incluindo gêneros não binários) e incentivar a pesquisa através da construção de artigos científicos.

Eu acho que a gente deveria ter uma abordagem em relação à atividade física e o trombone. Criar essa relação, a importância disso. Além da mente e do autoconhecimento, de fato, a ativi-dade física impacta [as relações com] o nosso instrumento. Eu acho que isso a gente poderia ter (PEIXOTO, 2021).

Sinto falta disso nos Festivais [...] até de trabalhar o nervosis-mo. Essa questão de subir no palco, porque é difícil subir no palco: adrenalina, tem que controlar. Acho que tudo isso é váli-do (SANTOS, 2021).

Se ouvirmos bem o que falam as participantes, elas próprias nos ensinam a ver as coisas por um outro prisma:

No nosso Instagram, das trombonistas brasileiras, [por exemplo] a gente não fala praticamente de técnica. A gente fala sobre afinação, [...] fala sobre [outros aspectos] relacionados ao instrumento, a função dos acordes quando a gente toca, falamos sobre a ansiedade. [...] Quando você, às vezes, fica muito nervoso, [...] tudo que você estudou vai-se embora (RODRIGUES, 2021).

Em seguida, a fala de Peixoto reverbera outra posição comum entre as/os participantes:

Estou falando das trombonistas antigas, né, que a gente ouvia muito. A gente não tinha referência feminina. E elas eram o quarteto [Bones Apart] que era a nossa referência. Então, ouvi-las foi uma coisa bastante importante pra nós, porque elas são uma referência (PEIXOTO, 2021).

Augusto acrescenta prontamente:

Eu queria dizer que o Bones Apart é uma referência também pra gente. O CBT trouxe essa diversidade [...] [sobretudo, no que toca à visão feminina]. Acho que isso é muito rico [...]. Da gente poder ter várias vertentes, da técnica alexander [até] questões que, de certa forma, estão interligadas à prática do trombone, [...] promovendo diversas discussões e temas que vão se conectando e enriquecendo o nosso vocabulário (AUGUSTO, 2021).

Na contribuição franca e direta que deram as/os nossas/os colaboradoras/ es, as narrativas transitam em redes que envolvem estímulos, afetos, cuidados e desejos de mudança na atual cena trombonística brasileira. Entretanto, a mudança só é possível quando suspendermos a racionalização eurocêntrica: a que mais produz classificações cerradas (GUTIÉRREZ, 2020), conflitos e dilemas pela sua violenta bagagem histórica de definição e hierarquização do saber.

Os testemunhos coletados nos ensinam que, diante da pandemia e de seus efeitos na área da música, é oportuno enunciar mundos e saberes sem fechá-los em unidades cerradas e sem constituí-los impreterivelmente em jogos hierárquicos, porque, em algum momento — ou melhor: o tempo inteiro —, precisamos voltar a eles. Para que isso ocorra, devemos omitir a enunciação, de certa forma, onipresente da lógica dominante e enviar a sua centralidade para nossas periferias. Isso não nos desvaloriza; pelo contrário, permite-nos entrar e sair à vontade desses processos de constituição de saberes. Enfim, permite-nos desviar dessas demarcações essencialistas e pouco frutíferas que, segundo apontam os testemunhos, geram estresse, sentimentos de fracasso e sofrimento psicológico.

Por essas e outras razões, mais do que meramente obedientes, as musicistas e os músicos se autopercebem como atores reflexivos, de modo que a dimensão da sua percepção intelectual é muito importante para os seus movimentos de emancipação. A questão sobre as pesquisas em música, que também aparece sublinhada nos testemunhos, é um bom exemplo disso.

Acho que, no início, sempre estamos muito preocupados em tocar, tocar, tocar e, muitas das vezes, nós tocamos e não deixamos nada escrito. Um ponto importante é que vocês [no Seminário do CBT] falaram sobre pesquisa: como pesquisar, como formular um artigo ou TCC [...]. Acho que seria importante reforçar essa questão do incentivo à pesquisa (FERREIRA, 2021).

Em outras palavras, o incentivo à pesquisa é importante para as/os trombonistas porque aquilo que se quer é habitar o mundo nas suas mais diferentes formas de representação e, habitá-lo dessa forma, implica na possibilidade concreta de o transformar. Além disso, enxergam as pesquisas em música como algo central, ou seja, uma forma possível de sair do confinamento. Para esee efeito, Rodrigues (2021) afirma que, através das pesquisas, conseguimos expor a nossa voz: “É preciso falar por nós [próprias/os] [...]”. Para reforçar a importância deste tema, o participante Ferreira indaga: “existe a possibilidade de ter submissão de artigo científico, nas próximas edições do CBT?”.

Portanto, tão significante quanto o confinamento físico, é a sensação de confinamento mental/intelectual que aparece nos testemunhos como algo importante, o que, com a maior urgência, deve ser desclassificado. É a partir desse pano de fundo que as/os trombonistas passam a externalizar quais foram as principais lições que ficaram do I Seminário.

Um dos pontos mais fortes é que, apesar de tudo, “sim, é possível continuar firme [...]” (PEIXOTO, 2021). Para as/os trombonistas participantes, a realização do I Seminário online do CBT e, neste caso, o próprio CBT enquanto coletivo são entendidos por elas/eles não só como um microcosmo de amplificação de vozes, mas também como uma maneira — veículo/transporte/meio — de viajarmos juntos, num momento em que o distanciamento social se tornou uma norma.

Foi fundamental ver “o quanto o nosso time de trombonistas é parceiro [...]. Essa corrente ficou muito marcada pra mim” (PEIXOTO, 2021). O que tudo isso nos traz como lição é que, ao invés de lutarmos sozinhos e/ou separados, temos que (re)aprender a fazer comunidade. Como diria Santos (2020b), o vírus é, de certa forma, um pedagogo. As/os trombonistas são conscientes de que a pandemia trouxe muitas mudanças, mas, também, veio nos lembrar e ensinar sobre a importância de algo que parece ter ficado adormecido em nós que é fazer comunidade. De acordo com Machado (2021), o I Seminário do CBT foi concebido com esse prisma de fazer comunidade. Esse prisma é confirmado nas palavras de Peixoto: “como a gente cresceu e como o grupo foi acolhedor [...]. Pra mim ficou essa lição: a gente é mais unido do que a gente imaginava” (PEIXOTO, 2021).

Parafraseando as/os participantes, a união é fundamental e trouxe uma força extra para o coletivo, “tanto é que o CBT continua. E está bem maior agora [...]. Todo dia entra gente [...] e, literalmente, virou um coletivo brasileiro” (WERLE, 2021). O CBT representa para as/os participantes a possibilidade concreta de seguir dialogando e construindo o que aspiramos para o futuro. Além disso, oportuniza abertamente — através da internet — a divulgação de conhecimento para todas e todos, conforme menciona Wilhian Werle:

Você não vê muita gente daqui indo pra fora, [ou seja] tem pouca coisa vindo pra cá. Aí, de repente, você entra num grupo desse [o CBT] e vê que, pô, a galera está unida, a galera tá querendo ajudar [...]. É muito legal mesmo, dá um ânimo (WERLE, 2021).

Para além dos pontos ressaltados até aqui, vale enfatizar ainda a relevância das abordagens voltadas à música popular e/ou às práticas a ela associadas. “Sempre tem coisas novas pra gente aprender e entender também o popular [...]” (RODRIGUES, 2021). Na realidade, em muitos desses Festivais, nós demandamos muito investimento pessoal para, no fundo, tentar ser mais ou menos parecidos com os europeus, o que é visivelmente paradoxal e perfeitamente incompatível quando comparado com a prática concreta das experiências musicais diárias, vividas pela esmagadora maioria das/dos trombonistas nacionais. Por isso, as mesas-redondas, as aulas de improvisação e linguagem brasileira, as experiências de gravação e de arranjos “são coisas que a gente vai acrescentando e aprendendo” (RODRIGUES, 2021). Adicionalmente, uma lição que ficou clara na experiência das/dos participantes é o sentimento comum de que, diante da pandemia e das incertezas próprias desses novos tempos, é necessário perdoar a si próprio e partir para outras estratégias existenciais: “praticar o [auto]respeito de você entender a sua [própria história e] evolução, a sua construção, seu desenvolvimento [pessoal]” (RODRIGUES, 2021)

Para além dos pontos ressaltados até aqui, vale enfatizar ainda a relevância das abordagens voltadas à música popular e/ou às práticas a ela associadas. “Sempre tem coisas novas pra gente aprender e entender também o popular [...]” (RODRIGUES, 2021). Na realidade, em muitos desses Festivais, nós demandamos muito investimento pessoal para, no fundo, tentar ser mais ou menos parecidos com os europeus, o que é visivelmente paradoxal e perfeitamente incompatível quando comparado com a prática concreta das experiências musicais diárias, vividas pela esmagadora maioria das/dos trombonistas nacionais. Por isso, as mesas-redondas, as aulas de improvisação e linguagem brasileira, as experiências de gravação e de arranjos “são coisas que a gente vai acrescentando e aprendendo” (RODRIGUES, 2021). Adicionalmente, uma lição que ficou clara na experiência das/dos participantes é o sentimento comum de que, diante da pandemia e das incertezas próprias desses novos tempos, é necessário perdoar a si próprio e partir para outras estratégias existenciais: “praticar o [auto]respeito de você entender a sua [própria história e] evolução, a sua construção, seu desenvolvimento [pessoal]” (RODRIGUES, 2021).

Seguindo esse fio condutor, os testemunhos, naturalmente, põem em perspectiva a cena trombonística futura. As narrativas comungam da opinião de que os Festivais devem continuar seguindo o modo online, ou, pelo menos, o já conhecido formato híbrido, e ressaltam, inclusive, os benefícios do online para democratizar a construção de novos saberes, para promover a emancipação individual e coletiva, fortalecendo também a autoprodução.

É claro que presencial é muito melhor: estar com os colegas, conhecer os colegas, tocar juntos, trocar informações pessoalmente é muito melhor. Mas acredito que os festivais têm e deveriam ter essas duas opções: o presencial e tentar providenciar o online, que pudesse abarcar todo mundo. Eu sei que isso requer uma estrutura, mas acredito que isso já é uma realidade. É o que a gente já está vivendo e tende cada vez ficar mais comum (FERREIRA, 2021).

Complementando o pensamento de Ferreira, Peixoto refere que:

Vai impactar, daqui para frente, um nível a mais na vida do trombone, em geral. [Ou seja:] no conhecimento de estudo, porque a gente conseguiu atingir lugares do Brasil que não conseguimos atingir quando era só no presencial. […] tivemos acesso à informação que não chegaria de outra forma. Então, eu acho que o nosso nível, com certeza, daqui uns anos, estará muito maior, por conta da comunicação que a gente conseguiu iniciar. Ainda há um caminho árduo pela frente, mas, pelo menos, conseguimos mudar de chavinha [...] acho que daqui para frente os festivais serão híbridos (PEIXOTO, 2021).

Todas essas transformações nos colocam novas exigências para enfrentar desafios futuros, quer enquanto performers quer como docentes. “Hoje, o trombonista, o professor, não é apenas só trombonista. Ele tem que saber editar vídeo e áudio. Acho que essa pandemia também nos proporcionou isso: aprender a mexer nos programas de edição [...]” (FERREIRA, 2021).

A imagem que se forma no horizonte ainda é demasiada turva, como admitem as/os participantes, mas promete desafios de outra natureza que teremos que enfrentar daqui para frente. Em contrapartida, teremos que reinventar o nosso campo. “Isso me assusta um pouco, porque eu não sou tão ligada à tecnologia, mas é isso. Vou ter de me atualizar [...]” (SANTOS, 2021). De qualquer forma, ainda que sejam destacados os benefícios do online em tempos de pandemia, as/os participantes sentem que têm que equalizar bem as relações, de modo que “não se desligue totalmente das relações presenciais [...]” (RODRIGUES, 2021).

Sobre a singularidade do CBT, em suma, “o diferencial [...] é a pluralidade dos temas [...] representados” (PEIXOTO, 2021) e o fato de “estar mais ativo [...], [ou seja], não ficar dependendo só de um determinado festival [...]” (WERLE, 2021). No CBT, conforme os testemunhos mostram, abrem-se espaços para o dissenso e para a emancipação de saberes ausentes. Além disso, produzem-se “ações enraizadas” que têm a sua raiz na pluralidade das experiências dos indivíduos que constituem o meio musical ativo, as musicistas e os músicos em si. A estratégia fundamental para a organização das ações, conforme Machado (2021), “é tentar se colocar no lugar do aluno [...]”, e isso, depois, reflete-se em feedbacks positivos em relação ao Seminário: “É um diferencial em relação a todos os festivais que já participei [...]” (PEIXOTO, 2021). Se ouvirmos bem o que dizem as/os participantes:

Acho que é mostrar para o trombonista que ele não precisa tocar só em orquestra, porque o leque é grande [...]. E o professor fica martelando na cabeça do aluno: tocar em orquestra, tocar em orquestra, tocar em orquestra. Aí ele se depara que não tem mais vaga na orquestra (PEIXOTO, 2021).

Se torna um pouco frustrante [...] (RODRIGUES, 2021).

A gente precisa conversar mais [...], mostrar exatamente o plano B. Se fala muito sobre trombone e orquestra, sobre repertório erudito. A gente precisa conversar mais sobre esse espaço da música popular, das bandas [...]. É importante a gente ter um olhar para além do repertório orquestral. Parece [...] que o trombone só tem essa possibilidade de orquestra. [Na realidade,] temos poucas orquestras [no Brasil]. Acho que é importante ver, trabalhar e conversar mais sobre esse mercado, [e] ampliar a visão dos participantes [...] (AUGUSTO, 2021— Negrito nosso).

Os relatos expostos acima, sugerem um suposto plano “B” que, neste caso, requer uma alternativa possível às canonizações convencionais já conhecidas. Tal plano implicaria, antes de mais, instalar um pluralismo lógico (GUTIÉRREZ, 2020); um pluralismo que, tal como nos ensina as/os trombonistas, deveria superar o testemunho passivo e assumir uma posição ativa e transformadora; ou, ainda, um plano B concebido como um espaço transfronteiriço de convergência de vozes, à procura da irrupção epistêmica (GUTIÉRREZ, 2018).

Como vimos nesta seção de análise, as vozes das/os participantes tentam cumprir o espectro desta árdua tarefa. Em meio às pandemias, “o plano B [hoje] passou a ser fundamental” (PEIXOTO, 2021 — chat do grupo focal — Negrito nosso).

Ensaiando algumas respostas?

Ao iniciar o trabalho de pesquisa em plena pandemia, rapidamente percebemos que as transformações que se seguiram no domínio da música possuíam uma natureza plural, que passava por nuances artesanais e por um forte sentimento de comunidade. Se inicialmente tivemos a clara impressão de que a cena trombonística brasileira era tomada por uma lógica de classificações e certas ausências, esse ponto de vista foi progressivamente corroborado pelos nossos interlocutores. Decerto, temos de considerar que a nossa experiência enquanto agentes participantes do CBT fez com que a escrita, as opções metodológicas e conceituais tivessem também um viés contra-hegemônico.

A pergunta sobre quais os saberes que emergiram a partir do CBT foi, em muitos momentos da pesquisa, uma espécie de bússola que nos levou em direção ao entendimento das transformações operadas em tempos difíceis. As/os interlocutoras/es nos ensinaram que o saber não é algo que se deixa capturar docilmente para ser classificado, porque as/os trombonistas têm conhecimentos sensíveis, transitórios, intuitivos e extremamente práticos sobre os seus significados. Isso quer dizer que os saberes emergidos não podem ser descritos objetivamente como um objeto, pois estes possuem uma presença sensível e, ao mesmo tempo, substancial na experiência de cada um. Conforme demonstrado pelas/os trombonistas, o seu significado é melhor sentido.

O caráter multifacetado dos saberes em causa evidenciou múltiplas percepções de autoempoderamento. Nesta senda, surge o primeiro deslocamento, que é refletido através das cartografias do saber8. Estas não são pontos fixos/estagnados, pelo contrário, elas se transformam no tempo e são absolutamente dinâmicas, refletindo experiências sociais de instabilidade (no caso do CBT), própria destes novos tempos.

Outro deslocamento aparece a partir da consciência de que “a vida não é só tocar trombone” (FERREIRA, 2021), o que cria espaço para o dissenso e para a luta política contra a ideia ilusória de um modelo único de desenvolvimento associado às práticas musicais. Consequentemente, sobressaiu o enfraquecimento da hegemonia de abordagens técnico-instrumentais nos Festivais de trombone, dando lugar a novas percepções e outros temas-chave. Da mesma maneira, há outras temporalidades centradas na ideia do “buen vivir” (MIGNOLO, 2015), da saúde psicológica e física e de um aumento de expectativas de horizontalização nas relações de poder que, dentre outras coisas, chega a tocar profundamente as relações de gênero.

Dessa maneira, a análise do caso do CBT mostrou que há uma nova imagem política se formando, porque surge no horizonte das/dos trombonistas participantes como forma de luta comum, própria das ações desse coletivo. Assim, a paisagem política que se forma, ainda que turva, converge para três pontos centrais. O primeiro diz respeito à mudança de expectativas e o segundo relaciona-se com o caráter combativo das musicistas e dos músicos na busca por mudanças. Já o terceiro prende-se com a redistribuição de poder social. Hoje, podemos ver nas lutas locais (pensem no caso do CBT) uma visão concentrada do que poderia potencialmente ser uma alternativa possível de práticas verdadeiramente emancipadoras.

Em articulação com tudo isso, a indagação levantada a respeito de quais são os mediadores que contribuíram para a construção dos saberes emergidos, encontra uma face de luz nas ideias de Latour (2012), pois os mediadores operaram por duas vias fundamentais: uma em modo offline e a outra em modo online (relações entre humanos e não humanos). Essas vias podem corresponder a vários ou a uma infinidade de mediadores que transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado dos elementos veiculados em redes de associações.

Os rastros deixados pelas/os interlocutoras/es apontam que o terreno virtual é um ambiente que pode se transformar numa cadeia profundamente complexa de mediadores, no qual opiniões e atitudes se bifurcam a cada instante. Da mesma maneira, quando há falhas nos cabos, na rede wifi, e o som e a imagem não correspondem ao “aqui e agora”, os objetos técnicos, como o computador e suas infindáveis conexões, também se tornam mediadores potenciais das realidades socialmente construídas e dos significados emergidos.

Embora seja fundamental reconhecer o grau de agenciamento exercido por diferentes atores (humanos e não humanos), próprios desses tempos difíceis também é importante, nesse momento de instabilidade sociopolítica e de neoliberalização da vida social no contexto brasileiro, reconhecer os atores coletivos — organizações filantrópicas, movimentos sociais organizados, corporações, associações locais, dentre outras — que criaram uma mediação capaz de melhorar as condições em que as musicistas e os músicos se formam, vivem e trabalham. Tais mediadores, por vezes invisibilizados, são ascendentes e, embora isso possa trazer contradições e complexidades para a sociedade, as/os interlocutoras/es deste estudo acham que é um momento ideal para se colocar questionamentos e aprender.

A cartografia construída nos mostrou que há muitos conhecimentos a circular na sociedade. No entanto, muitos não são reconhecidos como tal, provavelmente porque nós convivemos com a ideia de que certos saberes não são rigorosos. Nesse sentido e considerando o momento de reconfiguração das relações sociais, como podemos perspectivar a convivência entre diferentes saberes no domínio da música? Em relação a isso, será que os Festivais de música (suas matérias e conteúdos) acompanham as transformações que se seguem e que são sentidas pelas/os performers? Será que os cursos de música no Brasil (incluindo aqueles direcionados à prática trombonística) estimulam o pensamento crítico e reflexivo ou continuam a replicar abissalidades, ausência e violências epistêmicas? Por fim, quais saberes precisamos para (re)construir a sociedade pós-pandemia, de modo a criar diálogos que permitam que uma ecologia de saberes emerja?

Embora a estrutura do que ocorreu no I Seminário do CBT seja, de certa forma, similar a outros Festivais de música que se seguiram em contexto pandêmico, a análise dos saberes emergidos evidenciou passos importantes rumo a um movimento de mudança nos modos de pensar e agir musicalmente. Um caminho que pode ter sido iniciado, mas que ainda há muita luta pela frente para que possamos experimentar não só uma ecologia de saberes aplicada à música, mas também um mundo mais diverso e democrático que possa vivenciar e partilhar modos de pensar e agir mais desclassificados. Para que isso possa acontecer: a tecnologia, o mercado e os conhecimentos cristalizados não bastam. É necessário que se instale uma nova configuração política para aceder o conhecimento ausente. Precisamos de uma nova contaminação, agora idealizada por um vírus novo e benigno. Nas palavras de Žižek (2020, p. 39), “é possível que outro vírus ideológico muito mais benéfico se propague e, com sorte, nos infete: o vírus de pensar numa sociedade alternativa”.

Tudo isso nos leva ao entendimento de que o saber e a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, solicita um movimento de interrupção ao qual as/os participantes atribuem uma face positiva à pandemia. Tal movimento, ainda que atípico e/ou impensado no contexto do atual modelo de uma sociedade neoliberal, requer: desacelerar para escutar e contemplar; desacelerar para sentir, demorar-se nas minúcias, suspender o juízo classificatório, o automatismo da ação; cultivar o senso crítico, escutar os outros, ter calma e dar-se tempo. “Tempo” porque “a vida não é só tocar trombone”.

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WERLE, Wilhian. Entrevista, 06 de julho de 2021

Notas

Notas de fim Tal como na vida, este artigo ganhou forma à conta de muitas ajudas, infindáveis partilhas, de múltiplas cumplicidades e de algumas perdas. Das perdas mais difíceis está a do nosso querido irmão, Dr. Antônio Henrique Seixas (in memoriam). O “Bocão do trombone”, o nosso Antonio, Mosqueteiro e parceiro de lutas, cuja memória dedicamos este artigo. Para nós, Antonio ocupa um lugar muito especial tanto neste trabalho como também em nossa vida acadêmica e musical. Por essa razão, guardamos para ele este importante lugar de agradecimento. Antonio, desde o início, para construção deste artigo, nos apoiou e seguiu com muito interesse, carinho e motivação em nossas reuniões semanais: debatendo, questionando e argumentando leituras e textos provisórios, com a profundidade e o cuidado que lhe eram comuns. Além disso, abriu todas as portas para que no CBT nós pudéssemos chegar às pessoas, à música e aos diferentes modos de a fazer e a pensar. A ele gostaríamos de expressar o nosso profundo agradecimento e gratidão. Amigo Antonio, este trabalho pertence-lhe também

1 Performer Norte-Rio-Grandense e atuante nas vertentes artísticas e acadêmicas do Brasil e em Portugal. É doutor e mestre em Música pela Universidade de Aveiro (Portugal), com ênfase na área da Etnomusicologia. Pós-graduado em Música ¾ Práticas Interpretativas do século XX e XXI ¾ pela UFRN. Desenvolveu atividade docente na UFRN, na área de Trombone e Música de Câmara. Atualmente, é professor de Expressão Musical pela Câmara Municipal de Ílhavo (Portugal). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2374-1085

2 Doutorando em Música pela Universidade de Aveiro. Desenvolve pesquisas na área da psicologia da música no contexto da educação e ensino. É pesquisador associado ao INET-md (Instituto de Etnomusicologia Centro de Estudos em Música e Dança) e bolsista de doutorado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Como trombonista, toca em orquestras de tipos variados, em grupos de música de câmara e música brasileira, atuando também no processo de ensino e aprendizado do instrumento.

3 É doutor em Memória Social, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Musicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Bacharel em Administração de Empresas, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É também trombonista na Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira e diretor artístico titular na Banda Filarmônica do Rio de Janeiro.

4 Essa dimensão offline caracteriza-se pela realização de reuniões de trabalho presenciais, envolvendo os autores deste artigo, com sessões de leituras, debates, análise e escrita.

5 A expressão ‘palcos da vida’ é usada frequentemente entre as musicistas e os músicos que habitam o universo musical popular e que tocam para entreter um público específico de pessoas.

6 Vale acrescentar que as/os participantes do Seminário CBT tiveram acesso à internet, podendo participar do evento.

7 De acordo com Natália e Nerisvanda, o movimento surgiu a partir dos trânsitos virtuais que as mulheres trombonistas, influenciadas pelo movimento das mulheres trompetistas brasileiras, iniciaram e incentivaram a divulgação do Instagram “Trombonistas Brasileiras”. Segundo os seus testemunhos, o objetivo principal é fazer conhecer, unir e defender as causas das mulheres trombonistas no Brasil, independentemente de ser iniciante, amadora ou profissional. Apesar das diferenças, “temos que nos conscientizar que esse movimento é de todas e o que importa é que estamos juntas” (NERISVANDA, 2021). Além disso, o grupo é descrito por elas como um local seguro para discutir outros assuntos para além do trombone, como assédio moral, sexual e machismo, temas assumidos por elas como importantes e que permeiam o universo feminino. Conteúdo disponível em: https:// www.instagram.com/tv/CI9TNqEjTeu/?utm_medium=copy_link. Acesso em: 19 jan. 2022.

8 Mundos de representação simbólica, atravessados por uma espécie de linha abissal, com fortes implicações ao nível das relações de poder, que divide o conhecimento científico-racional (entendido como superior ou dominante) de outros tipos de saberes (sensíveis, populares e/ou com engajamento local) (SANTOS, 2007).