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O Eugenismo e o Padre José Maurício Nunes Garcia: revisionismo histórico do Beethoven negro

José Maurício Nunes Garcia and the eurocentrism: Black Beethoven´s historical revisionism

 Pedro Razzante Vaccari 1

Universidade de São Paulo USP, Brasil

 

Revista Orfeu

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN: 2525-5304

Periodicidade: Semestral

vol. 7, núm. 2, 2022

revistaorfeu@gmail.com

Recepção: 30 Março 2022

Aprovação: 04 Julho 2022

 

URL: https://periodicos.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/21896  

DOI: https://doi.org/10.5965/2525530407022022e0202

Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.


Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: Recentemente têm sido aplicadas ao processo histórico revisões em que personalidades notoriamente conhecidas como brancas ou sob a alcunha de “mulatas”, como Machado de Assis, Mário de Andrade e Antônio Carlos Gomes, têm sido efetivamente reconhecidas como de origem afro-brasileira. Termos pejorativos como “mulato” e “pardo” estiveram associados a conotações oriundas da escravidão, quando o Estado brasileiro necessitava eleger símbolos nacionais embranquecidos para exaltar e se tornar um polo industrializado nos trópicos sem o estigma que relacionava negritude com a pecha discriminatória de correntes como o darwinismo social. Um desses símbolos nacionais, além dos supracitados, foi o padre José Maurício Nunes Garcia – cuja germanização passou à história como o “Mozart fluminense”. Ao desmistificar o seu embranquecimento, o objeto deste estudo foi trazer à tona elementos que comprovem que ele fora realmente negro, utilizando para isso a metodologia antropológica, da mesma forma em que discussões recentes mostram que o compositor alemão Beethoven teria ascendência africana.

Palavras-chave: Eugenismo, Padre José Maurício Nunes Garcia, Mozart fluminense, Antropologia, Beethoven negro.

Abstract: Nowadays the historical process has suffered revisionisms in which remarkably personalities known as white persons or mulatto nicknamed, such as Machado de Assis, Mário de Andrade and Antônio Carlos Gomes, have been recognized from afrobrazilian origins. The pejorative terms were born with connotations derived from slavery, when the Brazilian State needed to elect whitened national symbols to exalt and become an industrialized pole in the tropics without the stigma that associated blackness to the discriminatory currents such as social Darwinism. One of these national symbols, in addition to the aforementioned ones, was Father José Maurício Nunes Garcia – whose Germanization went to history as the “Mozart fluminense” – born in Rio de Janeiro. By demystifying his whitening, the object of this study was to bring up elements that prove that he was really black, using anthropological methodology, in the same way that recent discussions show that the German composer Beethoven would have African ancestry.

Keywords: Eurocentrism, Father José Maurício Nunes Garcia, Mozart fluminense, Anthropology, Black Beethoven.

Introdução

Durante anos e mesmo séculos, a história brasileira oficial passou às gerações que, mulheres e homens notadamente afro-brasileiros, eram, na verdade, brancos, ou, em sua visão, “quase brancos”, aludindo à canção de Gilberto Gil e Capinam, “Haiti”. Das remotas coleções de literatura, nos lembramos de Machado de Assis e sua icônica imagem embranquecida, e estudos como o de HOFBAUER (2006) e KRAUSE (2008) procuraram dissipar a aura mística em torno do Machado de Assis embranquecido e, na atualidade, parece ser consenso a sua origem étnico-racial.

Outros personagens da história, entretanto, não tiveram a mesma sorte – alguns deles permanecem sob o vulto iconográfico do século XIX – especialmente os compositores padre José Maurício Nunes Garcia e Antônio Carlos Gomes. Garcia, por um lado, havia sido embranquecido pelo próprio filho, o médico José Maurício Nunes Garcia Jr., que pintara seu retrato a óleo em que os matizes da negritude simplesmente foram apagados ou intencionalmente ocultados. Em minha tese de Doutorado realizei um levantamento de praticamente todos os retratos produzidos a partir da figura do padre José Maurício, desde essa primeira pintura feita por seu filho até o final do século XX, divulgadas, inclusive, em obras de sua principal biógrafa, Cleofe Person de MATTOS (1970, 1997).

O debate reacende uma recente vertente musicológica de valorização das matrizes negras, em torno da cristalização efetiva da negritude em autores como Mário de Andrade, também musicólogo e que, contraditoriamente, escrevera ser o pai de José Maurício, Apolinário, “branco” (ANDRADE, 2006, p. 121). A própria Cleofe Person de Mattos, no entanto, haveria de concluir, apoiada no processo De genere do padre José Maurício – necessário para ordenar-se padre – que ambas suas avós, tanto materna como paterna, foram escravizadas trazidas da África (MATTOS, 1997).

Relativamente recentes também, estão pesquisas que aprofundam a tese de que o compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) possuía ascendentes africanos – mouros – como no artigo de Nicholas Rinehart, Black Beethoven and the ratial politcs of Music History (LUDWIG, 2013), de que tratarei mais à frente.

O próprio padre José Maurício Nunes Garcia, alcunhado de “Mozart fluminense” pelo primeiro escritor a redigir um artigo sobre ele, o aristocrata, historiador, pintor e escritor romântico Manoel de Araujo Porto-Alegre (1806-1879): “Como se poderá hoje executar a miserere, a Missa de Santa Cecília, essa producção immortal do Fluminence Mozart?” (PORTO-ALEGRE, 1836, p. 180).

Mais de 250 anos se passaram, entrementes, após a sua morte e, o revisionismo histórico tem tido apoio, principalmente, de estudos sociais e antropológicos sobre os processos embranquecedores de personalidades negras brasileiras. Ao reescrever a história sob a perspectiva negra, procura-se, hoje, reverter o pensamento acostumado a considerar a África como um todo selvagem, bárbaro, atrasado e anacrônico, visão estereotipada e promulgada ao longo de séculos por europeus ocidentais que buscavam, com suas teorias cientificistas, embasar uma suposta desafagem que não é biológica, mas política. “Durante muitos anos, o ocidente difundiu que a África era um continente desprovido de história, pois seus povos não haviam desenvolvido a escrita e nem formas sofisticadas de organização social. Mas essa crença conta muito mais sobre o profundo desconhecimento que os europeus tinham da África” (SANTOS, 2018, p. 10).

A trajetória do padre José Maurício Nunes Garcia mostra, ademais, que o processo histórico vinha se modificando, ainda que paulatinamente, para uma configuração histórica um pouco mais favorável à negritude – isso pode ser confirmado pela ascensão de compositores negros como Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), considerado o “pai da modinha”, e difusor do gênero no seio da corte lisboeta, e o padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819), talvez o religioso pioneiro a arrematar um certo status dentro da arte, notadamente a pintura e a música. Isso não o poupou, no entanto, de ter seu ingresso negado à Ordem do Carmo, pelo fato de ser filho e neto de escravizados (ANDRADE, 2012).


Figura 1
Jesus Cristo– Padre Jesuíno do Monte Carmelo
Padre Jesuino de Monte Carmelo Museu Afro Brasil | Flickr. Acesso em: 26.09.2021, às 12h. Disponível online.

Aqui representa-se, como vinha fazendo seu contemporâneo Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), escultor, entalhador e arquiteto negro brasileiro, no campo da escultura – o aparecimento dos matizes africanos nos santos e divindades cristãs. Assim como os anjos negros de Aleijadinho, o padre Jesuíno do Monte Carmelo imprime em seu Cristo uma significação autenticamente afrodescendente, talvez a primeira do gênero em solo brasileiro: Jesus é apresentado sem os tradicionais fenótipos europeus ocidentais, como olhos azuis e cabelos louros, todavia os traz encaracolados e escuros, como a tez.

Não quero com este argumento defender a tese de que a negritude fora, lentamente, introduzida na arte e na Corte, e que nunca mais seriam, novamente, alijados da história, mas que, importantes figuras foram despontando e traduzindo todo o universo eurocêntrico por séculos afirmado e reafirmado, substituindo a iconografia e a simbologia histórica por uma nova perspectiva, mais inclusiva e holística.

Contemporâneo a esses grandes artistas, situa-se o padre José Maurício Nunes Garcia. Buscando assimilar, como Aleijadinho e padre Jesuíno do Monte Carmelo, a esmagadora cultura europeia do barroco e do rococó então em alta exposição na Corte carioca, cria uma arte única, derivada dos cânones do Classicismo vienense (HAZAN, 2008).

Em suas principais obras, no entanto, conforme veremos ao longo deste texto, sempre há uma acentuação inconfundivelmente nacional – seja em suas quatro modinhas remanescentes, onde é mais óbvio, mas mesmo em peças de grande envergadura, como a monumental Missa de Santa Cecília, sua última obra composta, em 1827, antes de cair em um ligeiro esquecimento (MATTOS, 1997).

Talvez não tenham sido à toa as palavras de Cleofe Person de Mattos ao tratar da Missa de Santa Cecília: “É o depoimento do compositor, já envelhecido e cansado aos 59 anos, que assiste à proximidade do seu fim, cercado de tristeza e de amargura, mas que terá encontrado nesta Missa uma das últimas alegrias que lhe foram concedidas antes de apagar-se” (MATTOS, 1997, p. 168).

O verbo “apagar” aqui, tanto pode remeter ao sentido primeiro, ou seja, a morte, ou ao ostracismo que viria a seguir, por vários anos, até que se recuperasse seu patrimônio pelo Visconde de Taunay, no final do século XIX. Entretanto o vocábulo parece denotar, ainda, o apagamento circunstancial, pictórico e engenhosamente engendrado de sua figura negra simbólica, principalmente a partir do retrato feito por seu filho, amplamente divulgado, e que atravessou, incólume, até os dias de hoje, como seu principal retrato e símbolo de representatividade. A pergunta retórica que ainda devemos fazer é: esse retrato representa realmente um artista negro?


Figura 2
Retrato de José Maurício Nunes Garcia ao lado de outras figuras negras brasileiras
Foto particular, tirada no Museu Afro-Brasil, São Paulo, outubro de 2020.

Ainda causa-me estranheza, todavia, que instituições que deveriam promover a veracidade histórica permaneçam buscando, ainda que subconscientemente, a realidade vista sob a ótica do século XIX e as teorias deterministas. Um desses casos é o Museu Afro Brasil, situado em São Paulo, que, em sua exposição permanente exibe, ao lado de figuras negras brasileiras, uma réplica do retrato embranquecido de José Maurício feita por seu filho – Figura 2.

Além disso, há uma vertente, orientada por um certo reacionarismo, que pretendeu impingir, novamente, o tom determinista racial a José Maurício. Pode ser exemplificado pelo artigo do maestro Júlio Medaglia, quando da comemoração dos 250 anos do nascimento do padre. Nele, Medaglia – apesar de o título do artigo ser A contribuição do negro na cultura do Brasil – incorre, em um anacronismo antropológico, ao chamar José Maurício de “Haydn Brasileiro”, e um histórico, ao afirmar que era filho de “escravos” – o compositor era neto de escravizadas com avôs incógnitos de ambos os lados, e não filho. (MEDAGLIA, 2017).

Medaglia parece almejar um sentido oposto àquilo que finda por consumar – começa o artigo apaziguando os conflitos étnico-raciais no Brasil e se colocando contra o racismo. Porém logo se mune de argumentos claramente freyrianos, que remontam aos anos 1930, com os mesmos intuitos negacionistas: “Apesar de assistirmos às vezes a lamentáveis episódios preconceituosos, não tivemos conflitos raciais. E a prova disso é que foi oferecida ao negro, tanto o de origem africana como aos aqui nascidos, a possibilidade de se desenvolver cívica e culturalmente.” (MEDAGLIA, 2017, p. 8).

A assertiva redunda em um anacronismo de pensamento, e se há nela qualquer laivo de tentativa de amenizar o desagravo da condição humilhante e subserviente do negro no Brasil, isso se confirma quando Medaglia utiliza, por diversas vezes, o termo “mulato”, pejorativo depreciativo, e ao fim parece jactar-se de um suposto racismo inverso aos brancos ao sugerir que deveria haver cotas para brancos, não para negros:

Sobre as cotas raciais: foram os dois governos que nos deixaram que implantaram essa ideia de separar brasileiros. No momento em que criam um ministério para a “igualdade racial” e “cotas” para aqueles que possuem a tez mais escura, já estão criando dois tipos de cidadãos. Isso é lamentável, num país onde a miscigenação ocorreu sem traumas e impulsionou com brilho nossa formação cultural. Aliás, vendo o descrito neste artigo, se é para ter cotas, que seja para brancos [...] (MEDAGLIA, 2017, p. 8).

Ao minimizar o conflito étnico-racial, o autor incide em uma reconstrução histórica – após décadas de estudos sobre a cultura negra brasileira mostrarem que a visão determinista de Gilberto Freyre era falaciosa – que pretende remontar a sociedade nacional à época do darwinismo social, de Nina Rodrigues e do branqueamento perpetrado pelas elites cafeeiras. Querendo forjar uma nova democracia racial, sem contendas étnicas e sociais, mais uma vez tenta imprimir ao Brasil a alcunha de paraíso da miscigenação. Atua a favor dela a tendência a branquear todas as celebridades e personalidades negras:

A explosão demográfica dos “brancos” brasileiros só é inteligível, pois, em termos de um crescimento vegetativo muito intenso, em números absolutos. É prodigiosamente grande em relação às outras parcelas da população, propiciado pelas melhores condições de vida que fruíam em relação aos negros e aos pardos; aqui também atuou, provavelmente, a tendência a classificar como brancos todos os bem-sucedidos. (RIBEIRO, 2015, p. 173).

A proeminente desigualdade criada, em grande parte, pelo estigma da escravidão, foi apenas suavizada a partir do nacionalismo e sua necessidade de erigir emblemas oficiais miscigenados e, de preferência, plenamente brancos. A propaganda getulista de consagração da então chamada “raça mista” foi endossada pela intelectualidade brasileira de Gilberto Freyre e, parcialmente, por Arthur Ramos. Preconizando o que denominaram de “democracia racial”, propagaram esse pensamento até os dias atuais, como pode-se ver neste texto – o ideal de igualdade fictícia entre as raças esconde, ainda assim, a discriminação e a subjugação do negro.

Os textos referentes ao padre José Maurício, de 1836 até a atualidade, em quase sua totalidade mostram como houve um nítido movimento – em parte inconsciente – de branqueamento de sua figura, seja através de uma germanização por seus primeiros biógrafos (lembrando que até Medaglia o descreve como “Haydn brasileiro”) até o uso claro de retratos branqueados nessas biografias.

Mesmo que não fosse José Maurício, pela sua ascendência, genotipicamente negro de ambos os lados, no entanto é mister ressaltar que há de ser considerado, sim, negro, afrodescendente e, como muitos outros negros brasileiros de sucesso e de envergadura, como Machado de Assis, Carlos Gomes e Castro Alves, devem sim constituir exemplo para gerações atuais e vindouras de que os negros brasileiros têm o direito de ascender socialmente e de usufruir todas as benesses do Estado, sem que precise argumentar que são “mestiços” ou clarear sua pele e sua história.

Para isso deveriam contribuir, finalmente, o próprio Movimento Negro e as organizações intelectuais – vide que confundir 40 com 400 obras de José Maurício na Enciclopédia (LOPES, 2011) me parece bastante simbólico de como o próprio meio subestima suas figuras de relevância.

A musicologia que se ocupou do padre José Maurício foi, em sua maioria, centrada em enfoques estruturais, de análises harmônicas, melódicas, ou com intuito de reeditar ou restaurar partituras manuscritas do compositor. Esta tem sido, inclusive, a tendência das pesquisas em música desde o final do século XX no Brasil, já alertava o etnomusicológo Alberto Ikeda (1995).

Carece-se, dessarte, de uma bibliografia atual que abranja tanto as Ciências Sociais como a biografia do padre José Maurício sob uma perspectiva antropológica, contextualizada e atualizada, considerando a vasta produção acadêmica e documental sobre ele.

A iniciativa de dotar sua biografia de um viés histórico ou social tem partido, aliás, de profissionais fora do campo musical. Como exemplo, o historiador Leandro Karnal que, em 2018, publicou o artigo Tão longe, de mim distante, em que trata de Carlos Gomes e José Maurício, especificamente, com uma abordagem até então inédita:

Padre Maurício e Carlos Gomes foram apontados como talentosos, capazes de algumas melodias interessantes, porém reflexos do Velho Continente, farol do mundo. Éramos o planeta tropical iluminado por um sol maior, uma fonte de verdade e de talento: a Europa. (KARNAL, 2018).

O artigo, além disso, propõe debater, em um veículo de imprensa de grande circulação, O Estado de S. Paulo, questões que raramente ocupam as páginas dos jornais: embranquecimento, eugenismo, associados ao nacionalismo – ainda que Karnal relacione o branqueamento somente a Carlos Gomes, sem mencionar José Maurício. O ponto alto do texto, entrementes, encerra-se na seguinte assertiva:

Outra coisa os aproxima: eram mulatos (ou negros, dependendo do critério e da sensibilidade). Os dois buscaram reconhecimento em um mundo racista e excludente. Ambos conheceram a ordem escravocrata do País e seus espetáculos públicos de violência. (KARNAL, 2018).

Ao enfatizar a importância da terminologia o historiador resume em duas linhas o que a historiografia musical brasileira ainda não sanara: como o fato de reconhecer em José Maurício e Carlos Gomes sua negritude não é atributo menor, mas antes questão dependente de “critério e sensibilidade”. Ao extirpar os eufemismos, estaríamos, talvez, redundando em uma espécie de reconhecimento histórico, necessário e providencial.

Contextualização – democracia racial freyriana e reconstrução histórico-antropológica

A submissão crivada através dos séculos pela escravidão – tendo sempre o contrapeso importante das revoltas quilombolas – mostra que o colonizador português conservara a dominação pela tortura e a imposição de seu modelo aos povos subjugados. Estreito entre dois continentes, resultado da miscigenação de diversas invasões – mouras e mesmo nórdicas – constituiria uma raça única, em que o louro dos bárbaros se fundiria ao negro mourisco, segundo a visão de Gilberto Freyre (2016). Esse contato precoce não parece, entrementes, ter tornado o português menos autoritário e mais altruísta – a suposta facilidade freyriana de mistura étnica não sendo necessariamente a perenização das igualdades sociais e políticas – a ponto de o Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão. A esse respeito comenta a pedagoga brasileira Nilda Lino Gomes: “mesmo importando tantos escravos, o Brasil foi o último País a abolir a escravidão. Abolida a escravidão, não se tem registro de nenhuma política de inclusão. Pelo contrário, legitima-se a exclusão com a Lei da Vadiagem”[2] (GOMES, 2004, p. 107).

Segundo o jornal O pimpão, de 1876, endossando a ociosidade atribuída ao negro liberto, “a lei é benevola com os vadios; castiga severamente o que commete um furto occasional, e usa de brandura com o que rouba constantemente as suas forças para a communidade” (PIMPÃO, 1876, parte 171).

O desfecho do trecho é que o furto seria consequência da vadiagem, no entanto, não se atém ao fato de que os escravizados recém-alforriados não eram incluídos no mercado de trabalho, tornando-se propensos a viver à margem da sociedade – como o próprio termo marginal alude. Essa passagem revela como o negro alforriado permanecera refém de um sistema patriarcal branco e autoritário, que jamais contrataria sua mão de obra – mão de obra que outrora havia sido gratuita e abundante. Levaria ainda meio século para que o negro pudesse, ainda que sutilmente, adentrar com dignidade a esfera limítrofe e seleta concedida aos brancos – e mesmo nas artes e na literatura veríamos ainda resistência à plena emancipação da imagem da negritude associada à escravidão e a elementos eufemísticos e pejorativos.

Com sua visão ainda impregnada do movimento romântico, por exemplo, no romance O mulato Aluísio de Azevedo exagera um pouco sua visão através da reação da sociedade maranhense ao “mulato”. Embora fosse conhecido como filho de uma escravizada, o “mulato” Raimundo tinha salientes traços europeus e era culto – o que o condena ao olhar do português instalado no Brasil, no livro, é a sua propensão ao ateísmo e ao agnosticismo, ao liberalismo protestante de um rapaz que se educara na Alemanha e Inglaterra. Com esse elemento se comprovaria, em parte, a teoria freyriana da implacabilidade lusa quanto aos infiéis (FREYRE, 2016).

A intolerância religiosa portuguesa, mesmo ao subjugar o negro do ponto de vista histórico e social, não o privou de todo de sua religiosidade pagã. O africano seria, em suas raízes, essencialmente religioso e devoto a divindades e, quando inserido na América, especialmente teísta cristão e asceta (JUNG, 2012).

Tornara-se tradição que, nos engenhos pernambucanos, os escravizados, com o aval de seus senhores, remontassem os rituais de suas nações de origem, reproduzindo os personagens e suas vestimentas, o rei, a rainha, e os deuses de Aruanda[3]. Deuses esses representados como orixás e voduns que, à semelhança das entidades Greco-romanas, governam a vida dos humanos na terra.

A música brasileira seria, portanto, em suas fontes mais remotas, portuguesa em grande parte, nativa indígena em menor parcela e vastamente afrodescendente. No que cabe ao lusitano, vale salientar, altamente jesuítica e ascética, constituindo-se, assim, uma fusão entre o escravizado africano e o padre católico português – fusão até então inimaginável. Se a música brasileira seria indígena e ibérica nas suas primeiras manifestações, ela seria, segundo Freyre, antes negra nos seus desdobramentos, do que propriamente descendente de indígenas.

A poesia e a música brasileiras surgiram desse conluio de culumins e padres. Quando mais tarde apareceu a modinha, foi guardando ainda certa gravidade de latim de igreja, uma doçura piedosa e sentimental de sacristia a açucarar-lhe o erotismo, um misticismo de colégio de padre a dissimular-lhe a lascívia já mais africana do que ameríndia. (FREYRE, 2016, p. 222-223).

Sobre esse aventado “conluio entre curumins e padres”, no entanto, argumenta Maria Regina Celestino de Almeida, sobre os sentidos que um mesmo elemento poderia ter: “Esquemas mentais diversos para se entender o mundo e as coisas levavam a diferentes compreensões de uma mesma realidade ou evento. Assim, o que os padres podiam entender como conversão ou submissão, para os índios podia ser algo bem diferente.” (ALMEIDA, 2013, p. 171). Com isso há de se supor que a promulgada democracia racial freyriana teria sido antes imposta do que naturalmente amalgamada, ainda que a música brasileira possa ter encontrado no sincretismo religioso e escravocrata mais um elemento cultural que viria a formar as bases da música brasileira.

Dentro do nacionalismo – antes, durante e após – emergira a onda científica que determinaria os movimentos denominados Teorias ou doutrinas raciais, dos séculos XIX e XX, como o darwinismo social e a antropologia cultural. A primeira era uma tentativa de “purificação racial”, baseada na crença de que a raça deve ser única e toda miscigenação é impura e traz decadência e uma suposta defasagem genética. A segunda procurava desenhar um espectro do homem enquanto criatura fruto do evolucionismo. Para os evolucionistas sociais haveria uma sucessão de estágios de desenvolvimento humano, e todas as raças e povos deveriam, obrigatoriamente, passar por eles, constituindo-se, assim, um gráfico de evolução do estágio “mais simples ao mais complexo e diferenciado.” (SCHWARCZ, 2008, p. 57-58).

A problematização teria surgido de influências diretas de Charles Darwin, conforme o nome explicita, e sua Origem das espécies. Partindo de um ponto de vista puramente biológico, as teorias supracitadas tomaram Darwin literalmente, principalmente no que tange à “pureza racial” – as características deveriam ser, por exemplo, num cruzamento entre raças, de qualidades similares, ou então se perderia o seu suposto “vigor” genético. No esboço da Origem das espécies, que data de 1842, Darwin já traz essa ideia plenamente formada:

Cada genitor transmite as suas características; então, se estas variedades pudessem cruzar-se livremente, a não ser no caso de haver a união de duas características com as mesmas peculiaridades, tais variedades seriam constantemente perdidas. Caso se permitisse o cruzamento de dois indivíduos de variedades muito diversas, haveria a formação de uma terceira raça – uma fonte de variação mais fértil nos animais domésticos. Se isto fosse permitido livremente, as características dos genitores puros se perderiam… (DARWIN, 1996, p. 20).

A consideração de que haveria, de fato, não uma hierarquia de raças e culturas mas, uma policultura, foi ganhando força na medida em que trafegava no solo híbrido de novas investigações em antropologia e etnografia. O relato, já anteriormente citado, de Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, embora publicado somente em 1955, possui escritos sobre impressões e viagens etnográficas do antropólogo a partir da década de 1930, e constitui um marco na forma de abordar as civilizações, suas crenças e seu aparato cultural.

Enquanto, por exemplo, Paul Descamps (1930) considera selvagens os povos que acreditam em espíritos, Lévi-Strauss procura, durante grande parte de seu relato, descrever e produzir um apanhado sólido e panorâmico das crenças dos povos com que teve contato, principalmente com nativos no Brasil, deslumbrado com a profusão e riqueza de detalhes de suas culturas – produzindo, inclusive, uma impressão indianista romântica às vezes (LÉVI-STRAUSS, 1996).

No Brasil, entrementes, demoraria ainda um pouco para a discussão abandonar a ideologia cientificista. Reforçavam-na, além de Sílvio Romero, o médico legista e antropólogo Raymundo Nina Rodrigues. Na primeira página de As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, cuja primeira edição data de 1894, assim define o grau de inteligência entre as raças:

A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza em todos os povos, tendo como consequência uma inteligência da mesma capacidade em todas as raças, apenas variável no grau de cultura e passível, portanto, de atingir mesmo num representante das raças inferiores, o elevado grau a que chegaram as raças superiores, é uma concepção irremissivelmente condenada em face dos conhecimentos científicos modernos. (RODRIGUES, 2011, p. 1).

Em face dessa ciência da época, seria natural que símbolos nacionais, nas letras e nas artes, permanecessem ocultos à luz da antropologia, mesmo após muitas décadas depois de seu falecimento – como é o caso do compositor Carlos Gomes, embranquecido pela iconografia, e Mário de Andrade, escritor e musicólogo negro, emblemáticos signos da negritude eclipsados pela historiografia do século XX, especialmente.


Figura 3
Carlos Gomes – embranquecido arquivo público
Disponível em: https://agenciasn.com.br/arquivos/12002. Acesso em 10 jan. 2021.

Uma outra figura de proa no pensamento moderno brasileiro, Mário de Andrade, também teria sofrido esse branqueamento. Em uma série de ensaios publicados sob o nome de Aspectos do folclore brasileiro (ANDRADE, 2019), pela primeira vez reúnem-se todos os escritos de Mário sobre a questão negra no Brasil. No artigo Cinquentenário da Abolição, originalmente publicado em 1938, por exemplo, assim introduz o tema delicado e tão caro à sua ascendência, ao comentar um fato que ocorrera em uma sessão organizada pelas associações negras de São Paulo:

[...] não pude deixar de sorrir melancolicamente ouvindo um dos oradores negros da noite falar em “negros de alma de arminho”. Assim, era ele mesmo, um negro, a esposar essa fácil e trágica antinomia de origem branco-europeia, pela qual se considera a cor branca simbolizadora do Bem e a negra simbolizadora do Mal. (ANDRADE, 2019, p. 83).


Figura 4
Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segall
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros IEB/USP (São Paulo, SP)

Perceba como neste retrato os sinais mais visíveis e expressivos são os lábios grossos e vermelhos, salientes, e o nariz de tipo negróide, ambos ressaltando qualidades africanas.

A dificuldade em olhar Mário de Andrade como intelectual preto, tal qual se dá com Machado de Assis, Francisco Otaviano, Tobias Barreto e tantos outros, […] é que não se desvende a raiz racial africana de certos homens e mulheres encontrados desde muito no rol dos brancos (CAMARGO, 2018, p. 55).

No entanto Mário parece ter se sentido incomodado com a representação – dotando-o de elementos da ordem do Mal: perversão, e a tão reiterada sensualidade negra, personificadas no Diabo.

Essa dualidade era comum quando referindo-se ao embate de negro e brancos. Encarnado como o Mal, o negro parecia representar tudo o que estava escondido no subconsciente, mesmo que em forma de anseios reprimidos. Conforme o relato de Mário, mesmo a sensualidade e a sexualidade eram relacionadas ao afrodescendente. As expressões pejorativas que surgiram dessas associações eram, ainda, consideradas comuns e plenamente aceitas na sociedade brasileira até o final do século XX. Petrônio Domingues explica como tornou-se constante o “amenizar” da raça, alcunhando o negro de “moreno”, porque o substantivo-adjetivo havia incorporado a chaga da escravidão (DOMINGUES, 2008, p. 47).

Essa oposição cromática entre preto e branco não existe, porém, somente na cultura urbana ocidental. Entre os indígenas brasileiros da tribo Bororo, que habitam o estado do Mato Grosso, por exemplo, há o costume de se pintar de preto para não ser visto pelas almas do mal, que teriam sido responsáveis pelo falecimento de algum membro da tribo (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 248). Ou seja, neste caso, a cor preta é entendida como algo que traz neutralidade ante o mal, um disfarce necessário à existência, sendo, portanto, alinhada junto às qualidades benignas. Na sociedade de classes, no entanto, a personificação do Mal estereotipada como o preto, o negro, traduzidas pelas expressões coloquiais “humor negro”, “a coisa está ficando preta”, “o lado negro da força”, só reiteram o pejorativo simbolismo perpetrado, inconscientemente e mesmo a nível da consciência, no âmbito das relações humanas modernas.

De acordo com Florestan Fernandes, foi por meio da organização dos movimentos negros que forjou-se uma “[…] maior autonomia moral e intelectual da “população de cor”. Por fim, logram até suplantar o temor pela identificação através do termo negro” (FERNANDES, 2008, p. 27).

Fora Vicente Ferreira, do movimento social afro-brasileiro quem havia introduzido “[…] o termo negro para substituir o então vazio e usado homem de cor. Homem de cor também é o amarelo e o índio; acabou com essa baboseira de homem de cor, que não quer dizer nada” (MOREIRA; LEITE apud FERNANDES, 2008, p. 577) Elisa Nascimento (2003, p. 229) coloca: “À expressão ‘homens de côr’ ou ‘população de côr’ contrapunha-se o termo negro”.

Somente após a hercúlea batalha empreendida pelo sociólogo Florestan Fernandes, o antropólogo Darcy Ribeiro e o ativista e escritor negro Abdias do Nascimento é que pôde-se entrever, ainda que levemente, o dissipar das alcunhas de cunho eufemístico perpetradas pelos movimentos científicos sociais do século XX, que relacionavam raça com desenvolvimento, austeridade e evolução de pensamento e civilização. São relativamente recentes, ainda, os trabalhos que reconhecem o padre José Maurício Nunes Garcia como afrodescendente, dentre eles HAZAN (2009), FIGUEIREDO (2012) e HERTZMAN (2013).

O padre José Maurício Nunes Garcia e a etnomusicologia – o “Beethoven negro”

A crescente onda de valoração da música sob um enfoque antropológico tem ganhado ainda mais relevo nas últimas décadas. Vista a princípio como uma disciplina dedicada exclusivamente a estudar a música não ocidental, periférica, popular urbana ou folclórica, a etnomusicologia tem tido êxito também ao incluir em suas análises de dados científicos a intersecção e multidisciplinaridade, inclusive com a música de concerto. O etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto argumenta:

A inserção da música nas várias atividades sociais e os significados múltiplos que decorrem desta interação constituem importante plano de análise na antropologia da música. A relação entre som, imagem e movimento é enfocada de forma primordial neste tipo de pesquisa. Aqui música não é entendida apenas a partir de seus elementos estéticos mas, em primeiro lugar, como uma forma de comunicação que possui, semelhante a qualquer tipo de linguagem, seus próprios códigos. (OLIVEIRA PINTO, 2001, p. 3)

Dessa maneira, a música sob este prisma é entendida antes como produção social específica de determinada etnia, povo ou representantes dele, que, muitas vezes, absorvem a sua culturalidade, traduzindo-a em sons, ou simplesmente apropriam-se de sonoridades desenvolvidas pelo próprio coletivo. A partir da perspectiva etnomusicológica, conforme veremos a seguir, procura-se abolir adjetivos de valor, sempre atrelados a crenças socioculturais, tais como “música rica”, “complexa” ou “evoluída”. Tal como a antropologia, investiga-se a música como fenômeno primordialmente social, e não estético, como salientou Tiago de Oliveira Pinto acima.

Aplicada à música de concerto, o mesmo procedimento antropológico é utilizado. O padre José Maurício Nunes Garcia é visto, sob essa ótica, como um indivíduo que aglutinou tendências e influências múltiplas, oriundas de seu meio, o Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX, de sua classe, baixo clero, e de sua raça, negra, quando ainda o Brasil estava sob o domínio de um Portugal ainda escravista. Feita essa ressalva, analisemos um trecho de seu Tantum Ergo, e a análise que dele fizera o musicólogo Luiz Heitor, em 1930, princípio da onda nacionalista artística do Brasil.


Figura 5
Tantum Ergo do padre José Maurício Nunes Garcia
HEITOR, 1930, p. 77.

O trecho se configura, efetivamente, como de estilo modinheiro – modo menor, cromático, dramático e com caráter de melodia acompanhada. Perceba que o baixo está constituído, basicamente, de um acompanhamento homofônico, que apenas dá suporte à melodia do violino.

O comentário de Heitor, abaixo da figura, que corrobora a dicotomia racial, é o seguinte: “Não ha ahi um compromisso entre a arte brejeira do mulato fluminense e a serena elevação da musica sacra? Não guardam essas harmonias a pureza de uma apezar de rescenderem o aroma fortemente popular da outra?” (HEITOR, 1930, p. 77). Novamente há o antagonismo entre arte brejeira, popular, doméstica, “mulata”, quiçá pagã e pecadora, e a arte elevada, sacrossanta, remissora, excelsa. Na frase seguinte Heitor pontua que há uma suposta qualidade “refinada” na obra de José Maurício.

A conceituação que remete a arte a adjetivos como “refinada”, “elevada”, “purificada” e “rica’, só para citar alguns deles, é de uma hermética subjetividade. O que é agradável para mim pode não ser para o outro, e não será para um terceiro; a imposição de adjetivação visando à hierarquização de estilos musicais levaria séculos para ser questionada.

O marco do pensamento nesse sentido seria, indubitavelmente, o antropólogo social inglês John Blacking (1928-1990). Ampliando a discussão por meio da então incipiente etnomusicologia, que trazia, pela primeira vez de forma sistemática, métodos da antropologia e da sociologia para a pesquisa em música, Blacking procurou sanar questões que acompanharam a trajetória da dita música erudita ocidental, tida até então pela crítica europeia como a maior e mais “bela” arte musical produzida pelo homem. Em How musical is man, de 1973, ele salienta que toda música é étnica, porque é feita por seres humanos, sociedades e povos, e que a separação entre o que é belo ou sublime, sempre associado à música europeia de concerto, em oposição ao que é feio, periférico e marginal, seria associado à música não-europeia, oriental, que não utiliza o sistema tonal ocidental ou os parâmetros de timbragem, instrumentação e textura desse sistema específico (BLACKING, 1973).

Música para ele era antes um modo de organizar os sons que, culturalmente, foi adquirindo uma linguagem que pode ser reconhecida entre os compositores e os ouvintes. Desse modo, cada sociedade ou povo teria uma maneira particular de organizar esses sons de modo a transmiti-los para as audiências, o que não justificaria uma hierarquia de sistemas, como o tonal ocidental, sobre o oriental, ou da música de concerto sobre a popular (BLACKING, 1973).

Quando, por exemplo, Luiz Heitor classifica a influência da música profana na obra sacra de José Maurício como uma interferência de uma suposta “arte brejeira”, ele não parece estar julgando a organização de sons, mas a procedência dela – o brejo, os negros e pobres não seriam “musicais”, ou seriam “menos musicais” que um compositor da Corte. O autor argumenta que o processo de geração de sonoridades musicais em uma espécie de sistema de códigos é natural a todos os povos:

[…] um som musical não é tão moderno ou sofisticado como seus criadores podem argumentar: é simplesmente uma extensão do princípio geral de que a música deve expressar aspectos da organização humana ou percepções humanamente condicionadas de organização “natural” (BLACKING, 1973, p. 12, tradução minha).[4]

Comumente vemos como a adjetivação levou muitos musicólogos a classificarem a música de José Maurício como “fina”, “obscura”, para dar dois exemplos antagônicos, variando pouco desde os primeiros escritos até o século XXI, até, por exemplo, o artigo de Medaglia (2017).

Essas conotações que críticos conferem à música por si só, por meio de qualidades subjetivas, devem ser olhadas sob o ponto de vista do contexto sociocultural de quem escreve – e há de se levar em conta que todos esses musicólogos, com exceção de Mário de Andrade, eram brancos, de classe média ou classe média alta ou puramente aristocratas, como Manoel de Porto-Alegre e o Visconde de Taunay.

Muito embora o significado da música se materialize, em última análise, “nas notas” que os ouvidos humanos podem distinguir, pode haver diversas possíveis interpretações estruturais de qualquer padrão sonoro, e um quase infinito número de respostas individuais à sua estrutura, dependendo do contexto cultural e estado emocional de seus ouvintes. (BLACKING, 1973, p. 19-21, tradução minha).[5]

Desta forma, muitas vezes os juízos de valor atribuídos por musicólogos a determinado repertório musical podem ter sido influenciados pelo ambiente cultural e sonoro dos quais eles provêm, além de sua própria história pessoal. O problema reside no fato de que poucos ou quase nenhum musicólogo brasileiro que versou sobre José Maurício tenha se debruçado, efetivamente, sobre sua produção musical como consequência direta de seu meio sociocultural, com desdobramentos nas estruturas sonoras que condizem com a contextualização política de sua época. A sua música, como a de muitos compositores, é tratada de maneira superficial – as notas e a harmonia sendo entendidas apenas sob a perspectiva estrutural, como se possuíssem vida própria independente. Esquecese que a arte é proveniente, antes de tudo, do ser humano e das relações sociais e culturais – a música só seria possível com a interação humana, e suas relações técnicas e de ordem teórica só são possíveis devido à existência humana e suas construções culturais. Explicando sua metodologia, um dos pioneiros da antropologia da música, Alan Merriam, argumenta: “Aqui a ênfase foi colocada não tanto nos componentes estruturais do som musical, mas no papel que a música desempenha na cultura e na mais ampla organização social e cultural do homem” (MERRIAM, 1964, p. 4, tradução minha)[6].


Fig. 6
José Maurício Nunes Garcia

A perspectiva seria de que, com o avanço e desenvolvimento dos movimentos sociais e a própria transformação da sociedade, se transmudasse também o modo de encarar as questões raciais. Entretanto vemos, por exemplo, na capa de um disco lançado recentemente, apenas em LP – 2019 – nos EUA, que traz uma gravação do Réquiem de José Maurício de 1816, a imagem acima (Figura 5).

O que mais me intrigou a respeito desta capa é o nome da série de discos: Black Series. Todavia José Maurício na ilustração aparece, além de embranquecido, com um tom rosado quiçá utilizado para lhe conferir uma feição parda ou mestiça. Causa estranheza que quase dois séculos após sua morte, as pesquisas em música tenham contribuído, quase nulamente, para a afirmação do padre enquanto afrodescendente.

Observe a imagem que trazia a biografia do compositor, por Taunay, de 1930:


Figura 7
José Maurício Nunes Garcia em capa de biografia de Taunay
TAUNAY, 1930, capa.

Os 89 anos que separam esta imagem da do disco de 2019, não parecem ter auferido grande diferença racial estrutural – não estão, nem nunca estiveram interessados nisto. Esta, como aquela, denota antes um homem branco – mesmo considerando as marcas do tempo na ilustração, percebe-se o nítido clareamento com que foi pensada e reproduzida no papel.

Um CD, por outro lado, lançado na França em 2010, da Missa de Nossa Senhora do Carmo de José Maurício, apresenta uma santa negra em sua capa:


Figura 8
Missa de Nossa Senhora do Carmo
GARCIA, 2010.

A representação, aqui, é de Santa Ifigênia, negra, e parece ter sido uma evolução no campo da equidade racial dos santos católicos – antes somente o São Benedito sendo ilustrado e reconhecido como “Santo dos pretos”. Também Santo Antônio da Mouraria foi santo padroeiro dos homens pretos no Rio de Janeiro (LOPES, 2014).

Tradicionalmente, houve uma associação, ainda, de Nossa Senhora Aparecida com os negros, ocorrendo um processo reverso ao que comumente se dá, ou seja, um processo de “enegrecimento” da santa.

O fato é que acostumada ao embranquecimento de célebres figuras históricas, religiosas, políticas ou da cultura, em todas as partes do mundo não há uma contestação quanto a possível negritude ou origem africana de muitas delas. Uma personalidade que tem posto historiadores em dúvida é o compositor alemão Ludwig Van Beethoven (1770-1827). Em sua obra Beethoven, Emil Ludwig argumenta que ele não possuía características germânicas, sendo tão escuro que o denominavam como espanhol (LUDWIG, 2006).


Figura 9
Máscara de Beethoven tirada em vida do compositor em 1812.

Ludwig van Beethoven – máscara tirada em vida.

Disponível em: http://daliraquesuspira.blogspot.com/2014/10/beethoven-era-negro.html. Acesso em: 23 jun. 2020.

Na figura 9, poderíamos ver os traços de que dissertam alguns teóricos: nariz largo, especialmente. No entanto, é óbvio que não era o compositor negro – o indício de ancestrais africanos em sua genealogia era uma proveniência moura. Sobre isso discute Nicholas Rinehart no artigo Black Beethoven and the ratial politcs of Music History:

A família de Beethoven, do lado materno, remonta suas raízes a Flandres, que esteve por algum tempo sob o domínio monárquico da Espanha, e porque a Espanha manteve uma conexão histórica duradoura com o Norte da África através dos mouros, de alguma forma o único germe de negritude relacionado ao nosso amado Ludwig (LUDWIG, 2013, p. 117, tradução minha)[7].

Dessa maneira foram se redesenhando, aos poucos, as biografias de compositores como Beethoven – sempre associado com a música germânica, ícone maior do romantismo, tinha ascendentes mouros. A quebra de paradigma que se dá a partir de então não é pequena. A associação de proeminência e protagonismo sempre com o caucasiano, encontrou em Beethoven o seu contraponto necessário e, espera-se, permanente.

 

Conclusões

Forjou-se, durante séculos no Brasil, uma configuração histórica que pudesse, ao mesmo tempo, apagar os estigmas oriundos dos horrores da escravidão – principalmente no que tange o papel do negro e sua ulterior abolição e inserção na sociedade incipiente capitalista. Com a Era Vargas (1930-1945), entretanto, precisava-se eleger figuras simbólicas que condensariam a então promulgada e difundida democracia racial do protótipo freyriano de casa grande e senzala, e algumas personalidades negras de impacto sociocultural foram cuidadosamente escolhidas para exercer essa função. Entre elas destacam-se Machado de Assis, maior romancista nacional, o padre José Maurício Nunes Garcia, figura de proeminência na música colonial carioca, Antônio Carlos Gomes, compositor brasileiro de ópera aclamado na Europa, e Mário de Andrade, personalidade central do modernismo na literatura. Com a reverberação desses fatos fez-se um liame com a historiografia musical europeia ocidental, que, similarmente, parece ter se utilizado de um de seus mais disseminados compositores, o alardeado “gênio alemão” Ludwig van Beethoven, para tentar consolidar a ideia de que a condição de gênio seria inerente aos países europeus nórdicos, concepção de um eugenismo anacrônico que remonta ao fim do século XIX, com a emergência das teorias raciais na Europa e EUA. Recentes estudos, entrementes, analisaram a biografia de Beethoven e sua máscara tirada em vida, pontuando como de fato o alemão era descendente de mouros, e possuía, possivelmente, mais traços de ascendência africana do que se costuma supor. O mesmo tipo de branqueamento que atingira as personalidades literárias e musicais brasileiras, portanto, norteara a divulgação da imagem de Beethoven na Europa ocidental e no mundo, amparado por um movimento antropológico e sociológico determinista, que havia reinterpretado Darwin de modo eugenista – o darwinismo social.

REFERÊNCIAS

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Notas

2 A autora refere-se à Lei 141, de 20 de junho de 1895, do Estado de Minas Gerais, autorizando a criação de duas colônias de correção agrícolas, onde os acusados por vadiagem poderiam permanecer reclusos de seis meses a dois anos (GUIMARÃES, 2006).

3 Aruanda é uma variação de Luanda, que, além de ser capital de Angola, na África, era o lugar mítico em que os escravos negros ascendiam após a morte. Ou seja, após passarem uma vida de privações e maus-tratos desumanos, eles tinham direito a um Paraíso talvez semelhante ao cristão, onde finalmente alcançavam a liberdade que em vida tanto almejaram e jamais alcançaram. Esse ideal de Éden tropical era o mesmo almejado pelos portugueses quando aqui desembarcaram no século XVI – vide Sérgio Buarque de Holanda (2000), Visão do Paraíso, originalmente publicado em 1959.

4 No original: “[…] musical sound is not as modern or sophisticated as its creators might claim: it is simply the extesion of the general principle that music should express aspects of human organization or humanly conditioned perceptions of “natural” organization”.

5 No original: “Even though the meaning of music rests ultimately “in the notes” that human ears perceive, there can be several possible structural interpretations of any pattern of sound, and an almost infinite number of individual responses to its structure, depending on the cultural background and current emotional state of its listeners”.

6 No original: “Here the emphasis was placed not so much upon the structural components of music sound as upon the part music plays in culture and its functions in the wider social and cultural organization of man”.

7 No original: “Beethoven’s family, by way of his mother, traced its roots to Flanders, which was for sometime under Spanish monarchical rule, and because Spain maintained a longstanding historical connection to North Africa through the Moors, somehow a single germ of blackness trickled down to our beloved Ludwig.”.

Autor notes

1 Pós-doutorando em Música pela USP. Integra o Coral Paulistano do Teatro Municipal de São Paulo desde 2008. Em novembro de 2021 foi solista do Réquiem (1816) do padre José Maurício Nunes Garcia, com o Coral Paulistano do Theatro Municipal de São Paulo, com o qual foi solista também da ópera Café, em 2022, libreto de Mário de Andrade e música de Felipe Senna. Em julho de 2022 apresenta-se no Complexo do Theatro Municipal de São Paulo com o ciclo Dichterliebe de Schumann e Serestas de Heitor Villa-Lobos.