EDITORIAL

Nós, integrantes do NUDHA, recebemos com grande prazer a oportunidade de organizarmos esta edição da revista DaPesquisa, do CEART, e trazermos a público algumas reflexões que movem nosso projeto enquanto uma plataforma para debates contemporâneos sobre a diversidade, os direitos humanos e as ações afirmativas.

O NUDHA, este núcleo investigativo, na contramão de projetos coloniais, mas alinhado com investigações e reivindicações contemporâneas se propõe a acolher pesquisas sobre a heterogeneidade do corpo e modos de vida como constituinte da sociedade que nos propomos a viver. Entre os significativos textos que recebemos, destacamos o texto de Jaider Esbell, A DIVERSIDADE QUE AVISTO DA MINHA CANOA, e o colocamos como um texto de abertura que nos permite avistarmos a diversidade que nos propomos a discutir enquanto grupo de pesquisa acadêmica. Jaider Esbell é um artista indígena da etnia Macuxi, norte do Brasil, que faz de sua arte um protesto e de sua palavra uma manifestação em processo pelos direitos de povos desconsiderados de sistemas da cultura ocidental. Seguimos num primeiro momento seu texto:

“Eis que o mundo perece, parece, abaixo dos sentimentos de alguns mais sensíveis que a grande maioria que vai apenas morrer e nada mais. Seriam estes seres os sensitivos?

Existem alguns poucos que ainda não perderam por completo as ligações indissociáveis da natureza una, salvem. Seriam tais os seres de luz? Uma coisa parece bem certa; homem e natureza nunca poderiam ter sido concebidos como ideias e organismos distintos.

Coisas inventadas a partir de outros poderes-armadilhas como a ciência acadêmica, por exemplo, não suportam mais morar nas suas próprias casas. Ainda assim, teimam, me parece, a maioria dos cientistas, com eles mesmos. Teima-se em construir o casulo, aquele canto sagrado que a lagarta constrói para ele se transformar e sair, livre, voando feliz,  a borboletear.

Nem ao menos é permitido por eles mesmos, ou elas, que seus seguidores lhe vejam de soslaio. Seus alunos são formados nas forjas. Nem ao menos um rompante fenomenal, como ela mesma, a ciência acadêmica adora pesquisar, é permitido.

Eu cá, de dentro da minha canoa furada, estou desconfiando, que a ciência acadêmica é macho-homem, um bicho genioso do gênero fracassado. Acho mesmo que ela é um macho, um tolo como todos os machos somos. Os machos são tolos e isso só cabe talvez aqui, quando esse escrito é feito por outro macho em uma edição especial sobre DIVERSIDADE.

Ela, a ciência acadêmica, não pode ser feminina senão estávamos em outras esferas. A gente vê tantas publicações radicais por aí. São radicais pois estão vagando. Estão vagando mas não alheias a influenciar negatividades.

Por aí pelos mundos e submundos se encontram pilhas e pilhas de revistas velhas e ainda mais agora, nos tempos dos arquivos digitais, esses lixos inorgânicos, se acumulam. Pensamos a ideia de lixo como algo apenas residual de ordem material. Nem nos passa o fato de lixo ser resíduo de energia.

Me pergunto sobre para onde vão as energias que moveram esses movimentos degenerativos? Me pergunto onde estavam os corações e as cabeças desses escrevedores de palavras? De certo, suas intenções ou a falta delas, geraram energias. Essas forças geradas se amplificaram e ficaram agindo no transcorrer da ‘evolução’. Rastreando tudo isso podemos perceber onde foi dar esse sofrer. Isso tudo veio dar aqui: nos absurdos da “modernidade”.

Ainda me pego pensando em viver mais. Evidente que isso só se aplica no campo das performances. Pego duas aspas e as fixo, em definitivo, sobre meu corpo-ser. As aspas são como vespas, elas tentam abrir os nossos olhos para entrar. As vespas ferram nossos olhos para que nunca esqueçamos de suas existências. Se deixarmos, se não lutarmos contra, as vespas nos viram ao avesso e isso é maravilhoso.

As vespas de Makunaimî ferraram os olhos da esquila Kali e é por isso que até hoje esquilos têm olhos inchados. Eles têm essa memória, do tempo em que viviam na penumbra. O escuro, para que a gente saiba, nos persegue ainda hoje. Pudéssemos nós poder viver sem ele. Não dá, é nele que a gente sonha. Temos parâmetros das coisas daquele tempo, aqui no templo, a Academia.  

A gente vai passeando sobre o sentido da Palavra. A palavra é a DIVERSIDADE. A diversidade nos campos das ideias. Talvez narrativas, oralidades expositivas de vivencias plurais.

Quem sou e de onde vejo a diversidade? Para quem escrevo? Quem lerá meus sentimentos? Quem se importa e o que é “se importar”? Saibam que nesse exato momento os Guarani estão sendo escorraçados pela Polícia de São Paulo?

Pode ser que nada aconteça, mas acontece sim.

Os corpos se movem constantemente e a mente, mente. As mutilações são corriqueiras nas academias, nas clínicas, nas praças, nos interiores das estruturas. Sabemos lidar com sofrimentos? Sim, sabemos.

Sofrimentos são estimulantes? Sim, me parece. Sofrer causa dependência? Em princípio, sim, infelizmente. Infelizmente, a mente, mente. A gente mente? Sim, o agente mente. A agência mente? Sim a agentividade é uma atividade que ainda mente.

Pois como mente? Mente pois nasceu com os genes da mentira e mais lá pra frente é que tá a verdade.

A verdade nunca se alcança, é um caminho vago. Vago, vagas. Há vagalumes, aqueles piscados de luzes nos breus. Um anjo morreu para uns, a outros, um demônio. O corpo era o mesmo, espírito, não tinha. Espíritos, nãos o tinham. Tiveram tempo, padeceram de felicidade e a feliz idade hoje chama-se tentativa.

Há um jogo que ninguém ganha.

Então não é um jogo senão uma armadilha. Armada está a amada, na ilha. A ilha vaga, há vaga na ilha. Quando a poesia é o mero sofrer do outro, plante uma flor no ar. Solte algo no ar para desafiar. Desafiar a lógica da loja.

Plante um implante para lhe modificar. Diversa idade que me espera velho, pensamento de criança. Sem as malícias dos cortes nas pernas mãos sofridas. Calo os calos que me calejas quando cego fico para teus tipos. Teus tus que no muito de mim em ti já não te aceito.

Rejeito, vejo defeito no teu leito, escrevo sobre ti. Escrevo sobre ti, mas não é para ti, é para ela a Matriarca má, a ciência acadêmica.

Arrodeei a estaca onde amarram os asnos, os burros estão aos urros. Parei cansado, estava com asma. Pasma, me vi mulher, meu espelho embaçou e era o bafo, bafo de bofe-bode. Bode preto não venha, hoje estou de bode branco, mestiço e vermelho. É que eu estou de bobe, quero encaracolar meu cabelo ao contrário. Já quis ser otário e foi até bom mas eu cansei e hoje luto, de luto. Há lua esplendorosa hoje e há luto, lutas!

A luta que nunca cansa é poético demais, vira lírico, coisa para iniciados e eu sou apenas um vício, filho e neto de viciados. Triste dos iniciados, eles têm pais no cio, no fio, no prelo. Ainda vem mais livros de capas limpas, dentro, a imundície. Paciência com a ciência foi o que me disse a onça ao golfar pela última vez a rês que comeu pela primeira vez. Veio o fim dos tempos e a carta final só podia ter mil palavras. Assim pesou ainda mais escrever sobre a diversidade e eu teimei em viver, só para teimar mesmo e triunfar.

                                                                                                                                    Jaider Esbell[1]

A partir da diversidade avistada da canoa de Jaider Esbell, de seus “vagalumes, aqueles piscados de luzes nos breus (...), que desafiam a Matriarca má, a ciência acadêmica”, alinhamos as pesquisas de outros artistas e pessoas da cultura, que avistam eles também a partir das Artes a diversidade de ser e estar na sociedade para além da ciência acadêmica tradicional, mas como um encontro de ideias e ideais, e organizamos este dossiê, não só como divulgação de pesquisas acadêmicas e projetos de extensão, mas como incentivo a outros grupos a olhar em seu entorno e perceber onde podem atuar na redefinição da sociedade no âmbito da investigação, mas também na atuação social.  

Pensamos que a Universidade, ao nos permitir um estudo sistemático de conhecimento e investigação contemporânea deve olhar muito além de salas de aula, mas o modo de ver e viver o mundo em seu movimento. Nosso objetivo é também impactar uma visão restrita que a arte tem sido assentada e organizada estruturalmente nas instituições, onde muitas vezes ainda perpetua relações de poder colonizadoras, heteronormativas, por vezes excludentes.

Agradecemos a todos que publicaram seus trabalhos neste dossiê e aos que contribuíram na viabilização da publicação, especialmente Luciana Perozin, bibliotecária responsável pela editoração e aos pareceristas  ad  hoc.

Maria Aparecida Clemêncio

Celia Maria Antonacci


[1] Arteativista indígena do povo Makuxi-RR. www.jaideresbell.com.br