Educação Especial e Teatro Contemporâneo: o processo criativo De Lagarta a Borboleta, um vôo pela diversidade e pela autonomia em práticas relacionais.

    Everton Lampe de Araujo, Carlos Alberto Ferreira da Silva

Educação especial e teatro contemporâneo: o processo criativo de De Lagarta à Borboleta, um vôo pela diversidade e pela autonomia em práticas relacionais

 Special education and contemporary theater: the creative process of De Lagarta à Borboleta, a flight through diversity and autonomy in relational practices

Everton Lampe de Araujo

Doutorando em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) –

 mostraxoke@gmail.com – orcid.org/0000-0002-9103-2889

Carlos Alberto Ferreira da Silva

Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) –

carlosferreira1202@gmail.com – orcid.org/0000-0002-5601-7990

Resumo

Este texto propõe um relato do processo criativo De Lagarta a Borboleta com pessoas com deficiência na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Ouro Preto - MG. Dessa forma, o artigo visa contribuir com o campo de estudos acerca do ensino e prática do Teatro Contemporâneo em contextos de Educação Especial; além de debruçar sobre a experiência de criação colaborativa vivenciada nas práticas de teatro desenvolvidas por um grupo de estagiários do curso de licenciatura em Artes Cênicas – UFOP/MG. Por fim, busca compreender o teatro como linguagem e percurso de construção de conhecimentos vinculado a outros saberes, em contexto interdisciplinar.

Palavras-chave: Teatro na educação. Pessoas com deficiência e artes cênicas. Artistas com deficiência. Educação especial.

Abstract

This text proposes an account of the creative process De Lagarta a Borboleta with people with disabilities in the (APAE) Association of Parents and Friends of the Exceptional in Ouro Preto - MG. Thus, the article aims to contribute to the field of studies about the teaching and practice of Contemporay Theater in contexts of Special Education; in addition to focusing on the collaborative creation experience lived in theater practices developed by a group of interns from the Bachelor's degree in Performing Arts - UFOP / MG. Finally, it seeks to understand theater as a language and a path for the construction of knowledge linked to other knowledge, in an interdisciplinary context.

Keywords: Drama in education.  People with disabilities and the performing arts.Artists with disabilities. Special education.

Recebido em: 11/04/2020

Aceito em: 24/06/2020


Este texto visa revisitar procedimentos de criação experienciados nos anos de 2013 e 2014, na Escola de Educação Especial Farmacêutico Dr. Hélio Harmendani mais conhecida como Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Ouro Preto (APAE Ouro Preto), tendo como público crianças, adolescentes e adultos com deficiência, no intuito de traçar uma cartografia conceitual e afetiva acerca de modos de criação em teatro no contexto da Educação Especial.                                Tal experiência aconteceu em parceria com o projeto de extensão universitária intitulado Cia da Gente (2005, não paginado) “[...] que tem como objetivo planejar, executar e avaliar ações pedagógicas de cunho artístico/cultural voltadas para o público alvo do projeto e assim contribuir para uma maior inclusão social e inserção social dos sujeitos atendidos”. Dessa forma, propõe-se que reflexões acerca da prática artística e docente neste contexto, sejam partilhadas com futuros estagiários, novos docentes e qualquer outro público atento ao relato de experiência enquanto troca de saberes.                                

Ao longo da realização do projeto Cia. da Gente na APAE de Ouro Preto, desde o ano de 2005, práticas relacionadas a oficinas teatrais, intervenção urbana, montagem de encenações são produzidas a partir das inquietações de estudantes do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, que semanalmente, desenvolvem práticas com estudantes com deficiência da APAE. O coletivo de pessoas com deficiência que frequenta a APAE é vasto, segundo o Projeto Político Pedagógico da APAE-OP (2012-2014), os beneficiários da instituição são estudantes de todas as idades com diferentes tipos de deficiência: intelectual, atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, distúrbio de equilíbrio, alterações de coordenação motora, diminuição da força muscular, paralisia cerebral, autismo, distúrbio de interação social, traumatismo crânio encefálico, AVC (Acidente Vascular Cerebral), síndrome de Down e outras síndromes; deficiência auditiva e deficiência visual. Na época, ainda encontrávamos estudantes diagnosticados com déficit de aprendizagem e hiperatividade, que acabavam frequentando a instituição por sofrerem exclusão no ensino regular.

Com um grupo heterogêneo em fase de pré-adolescência, adolescência e adultos, a proposta era a realização de práticas artísticas teatrais, cuja finalidade, já tradicional da escola, eram apresentações para a comunidade através de processos de criação por vezes hierarquizados até o ano de 2011, em que os sujeitos eram sempre realizadores. Foi aos poucos, com maior incentivo, passando pelo processo de criação “Maria Alice no Brasil dos Apaixonados no ano de 2012” que com maior atenção ao processo de criação, os estudante foram se tornando propositores, daí o interesse em partilhar a virada que aconteceu no processo “De lagarta a borboleta” (2013), tema central deste artigo.  

Sobre a prática de teatro em ambiente escolar é importante destacar que de acordo com o Léxico de Pedagogia do Teatro, no verbete Teatro na Escola, escrito pelo pesquisador Sérgio Farias (2015, p. 184), “[...] nas séries iniciais, seja na educação infantil e no ensino fundamental, os elementos do teatro aparecem misturados ao de contação de história, brincadeiras de faz de conta, imitações, leves exercícios corporais”. Na educação especial o trabalho de teatro não é diferente, pois todos os atributos para a realização de uma prática educativa incluindo ludicidade, desenvolvimento da coordenação motora, as percepções sensoriais, o autoconhecimento e a expressão corporal fazem parte desta busca e de fazer com que o participante se sinta incluído ao longo deste fazer.

Entretanto, o maior desafio ao trabalhar práticas teatrais dentro de um espaço escolar como estagiário, é que, muitas vezes, a escolha do tema da peça teatral vinha de um grupo de docentes da instituição, - que já escrevia a peça com base na adaptação de algum texto teatral, história de contos de fadas, programa infantil -, não estimulando o diálogo entre os envolvidos, na expectativa de saber o que as pessoas querem/gostariam de fazer.

Quando o grupo de estagiários era mais incisivo acerca da necessidade de se pensar na autonomia de todos e todas as pessoas que participariam do processo de criação, acabávamos precisando realizar reuniões e reestabelecer acordos para que os ensaios pudessem ser harmônicos e retomados com qualidade, através de detalhes combinados anteriormente e que acompanhavam todas as fases do trabalho, ou seja,  desde o momento que antecede a apresentação, durante e pós encenação, fazendo parte da equipe  estudantes com deficiência, as/os funcionárias(os), as/os estagiárias(os), os demais profissionais que frequentavam a instituição, de modo que o processo criativo fosse de todos os envolvidos.                                                                         Nos anos anteriores, entre 2010 e 2012, as montagens teatrais realizadas junto aos estudantes da escola de Educação Especial foram inspiradas em programas televisivos infantis ou se deram por meio da transcriação[1]  de obras literárias para o teatro: em 2010, “Sítio do Pica-Pau Amarelo”; em 2011, “Castelo Rá-tim-bum” e, em 2012, “Alice no País das Maravilhas”. Processo este produzido pelas docentes, fazendo com que os discentes reproduzissem a proposta idealizada. Neste aspecto é importante frisar que a escola vai gradativamente retirando das propostas o aspecto lúdico que deveria fazer parte do processo criativo e, com isso, as atividades que correspondem a expressão artística e a atividade corporal passam a ser um aspecto não investigado, pois tais abordagens com uma pessoa com deficiência requer paciência, investigação e aprofundamento, de modo que o sujeito possa se apropriar da ideia sugerida.

Por este viés, em 2013, a partir da maior abertura e do diálogo construído entre os estagiários e o corpo docente escolar, chegamos à proposta de realizarmos um trabalho interdisciplinar que, no lugar de apenas proceder à criação de uma peça teatral isolada das outras atividades que ocorriam na instituição, buscasse integrar as diversas áreas de ensino-aprendizagem em um único tema. Surgiu assim o projeto “De Lagarta a Borboleta”.                                                                        Durante o desenvolvimento do projeto, o tema da metamorfose foi trabalhado nas aulas de língua portuguesa, matemática e ciências, servindo as “descobertas” e os percursos desenvolvidos nas disciplinas, de material para as aulas de teatro e para a criação: foi possível, por exemplo, acompanhar, na aula de ciências, a saída de uma borboleta que, trazida ainda casulo para a escola, foi cuidada por todos durante seu processo de metamorfose. Com isso, acreditávamos poder fixar melhor a compreensão de algumas ideias e desenvolver os conteúdos das diversas áreas envolvidas.

Além disso, do ponto de vista dos estagiários, buscamos interagir com os conflitos e dificuldades vivenciados pelos alunos e relatados por eles durante as aulas de teatro, tais como a dificuldade para memorizar e falar os longos textos teatrais e o pouco tempo de processo para o entendimento dos conflitos da peça. Também era questionada a importância de horizontalizar a relevância de cada personagem e de  romper com um resultado final da montagem teatral, concentrada historicamente em um protagonista (personagem principal que “aparece” mais que todo mundo), além do fato das montagens, por serem geralmente pautadas em textos para crianças, trazendo personagens infantilizados não atendendo ao desejo de participação dos alunos – alguns dos quais eram, inclusive, adultos – que não desejavam mais usar figurinos com referente estereotipado de animais e insetos com asas, antenas, patas e etc. Por outro lado, havia, por parte das professoras, um desejo de autonomia em relação às decisões que envolviam o processo de criação e a montagem resultante, uma vez que os seus superiores dentro da instituição, mesmo não acompanhando o processo diretamente, acabavam impondo modificações que faziam com que a montagem correspondesse mais às suas expectativas sobre ela, do que refletisse o percurso criativo vivenciado.

Em meio a esses questionamentos, um aspecto parecia concentrar todos os outros: a autonomia. De modo que, durante as reuniões e planejamentos, buscamos refletir sobre os caminhos que nos auxiliariam em sua construção, a fim de garantir uma participação mais efetiva de todos os envolvidos no processo de criação.

 

Mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, que decide, que rompe. (FREIRE, 2006, p. 18).

 

O Processo Colaborativo, como espaço democrático de criação teatral, pareceu-nos uma alternativa possível de praticar, no âmbito da educação, essa presença ativa que deseja, propõe, experimenta.

 

Este [o processo colaborativo] se desenvolve a partir da colaboração de todos os integrantes da equipe, desde as pesquisas iniciais até a finalização, sem hierarquia e com interferências mútuas, que não implicam na dissolução das identidades criadoras, mas na sua autonomia e no seu desenvolvimento. (ABREU, 2005, p. 14)

 

O desafio da prática colaborativa ocorria em diversas dimensões: tanto da perspectiva dos alunos – que buscavam algo diferente, que propiciasse mais liberdade para experimentarem seus corpos e situações construídas em grupo – quanto do ponto de vista dos estagiários e das professoras. Estas últimas buscavam tanto uma aproximação entre o teatro e outras atividades em sala, como também a dissolução de uma hierarquia que concentrava as decisões na direção da escola. Então, tínhamos certeza de que os desejos ali presentes corroboravam para o desafio estabelecido, ou seja, a criação teatral por meio do processo colaborativo.                                                O processo colaborativo, hoje muito utilizado em diversas companhias e projetos de criação teatral, começava a adentrar práticas da instituição, a fim de descobrirmos, por meio de seus princípios metodológicos, formas de estimular a autonomia – liberdade de proposição, participação nas decisões – de todos os envolvidos. No âmbito escolar, esse procedimento artístico pode ser aproximado dos processos de inserção que atravessam a Educação Especial no Brasil. Para, Mônica Santos, (2002, p. 108) estes, sejam de inclusão ou de integração, são sempre relativos: “ [...] aos olhos de quem é inserido, aos olhos de quem insere, aos olhos de quem planeja as possibilidades de inserção e ao contexto em que a mesma acontece”.

Nesse sentido, o trabalho desenvolvido na instituição, ao pensar a multiplicidade de olhares e as possibilidades relativas dos envolvidos, esteve mais interessado em desenvolver a liberdade do corpo e de expressão de modo a instigar a participação e a criação, do que chegar a algum resultado específico. Porque não podíamos ainda perder de vista as condições reais da escola para o desenvolvimento do trabalho em artes. Pois a realidade de investimento do poder público na área de educação, e ainda mais na marginalizada educação especial é lamentável, desde estruturas físicas às condições de trabalho do corpo de funcionários, fazendo com que a força estrutural da realidade escolar dos estudantes, se dê, principalmente, pela interação constante com as famílias, e doações por parte da sociedade civil, que possibilitou que não como única e elitizada metodologia de educação especial, aquelas oferecidas pelos sistemas privados de ensino.

Apesar do seu regimento prever que essas atividades sejam planejadas tendo como “[...] documentos norteadores desse ensino, o Referencial Curricular para a Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais” (TIBOLA, 2001, p. 20); levando em consideração a premissa de que a atuação do professor de Artes, nas escolas de Educação Especial, deve contar com a parceria de “[...] profissionais de outras áreas como da Fisioterapia, Psicologia, Educação Física, entre outros, com o objetivo de criar o suporte necessário para o desenvolvimento pleno do aluno” (Idem, 2001, p. 21),  nem sempre esta é uma realidade das instituições de ensino no Brasil.

No caso da experiência que neste texto começa a ser reflexionada, não houve a contratação por parte do Estado de nenhum profissional com formação em Artes Cênicas/Teatro capacitado para desenvolver ou coordenar as atividades das aulas de artes, situação agravada pela falta de recursos, como, materiais para o trabalho, como sala apropriada, colchonetes, roupas adequadas para práticas físicas, entre outros. Tais questões estão presentes no cotidiano da escola, pois, apesar de reconhecer o sistema público de ensino como modelo para sua gestão, não recebe, por parte do governo, subsídios para a realização de suas atividades e permanece contando com a doação de empresas e apoio das famílias atendidas como já citado aqui, o que a caracteriza como modalidade de ensino ainda mais à margem da sociedade.

Ora, não basta a escola buscar seguir os Planos Nacionais de Educação, uma vez que não conta, ao nosso ver, com uma estrutura preparada – seja pela falta de espaço físico ou de capacitação dos profissionais da educação – para receber tais alunos e suas especificidades. A solução, no entanto, não é, como se propõe muitas vezes, o fechamento de tais espaços, visto que: “[...] Se a educação inclusiva for uma substituta da ex-educação especial, seria uma incoerência implementá-la a partir da destruição (ainda que conceitual) de tudo o que se produziu até então em termos de educação especial” (SANTOS, 2002, p. 111), pois enquanto a educação pública inclusiva não for uma realidade, estão nas práticas de educação especial, os caminhos e especificidades para torná-las uma realidade possível.

Retomando a experiência de criação colaborativa dentro da escola, vale relatar algo interessante que ocorreu ainda no início deste processo: a sugestão do próprio corpo docente que, ainda que intuitivamente, propôs construir uma encenação que partisse de um tema e não mais de um texto pronto e anteriormente pré-estabelecido, como ocorre, em geral, nos procedimentos tradicionais de montagem teatral.

Trabalhamos, em nossa prática, a partir de algumas noções e investigações do teatro contemporâneo, as quais entendem o texto como um dos elementos que compõem uma dramaturgia, sendo esta também percebida de forma mais ampla, como um tecido composto por “[...] todas as relações, todas as interações entre as personagens ou entre as personagens e as luzes, os sons e os espaços”.( BARBA e SAVARESE apud CAETANO, 2011, p. 37), ou seja, como uma tessitura de ações. Nesse sentido, como afirmam Eugenio Barba e Nicola Savarese, “[...] tudo o que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua sinestesia, é uma ação” (Idem; Ibidem).    

Desse modo, podíamos trazer para nossa encenação elementos como a projeção de vídeos, utilizada para marcar as transições das fases da metamorfose (que constituíam os atos da peça), ou áudios, utilizados no início do espetáculo para contextualizar o que estaria sendo apresentado por meio de um texto de abertura; além de experimentações corporais que podiam evidenciar os acontecimentos e ações, bem como comunicar e transitar por emoções e sensações.

 Assim, por meio da experimentação de uma dramaturgia corporal, buscamos também entender, no processo de criação, este lugar ativo de comunicação do corpo, que já não recebe ou reproduz textos, mas que os sente por meio da memória ou das relações produzidas entre os corpos dos participantes.

Muitas vezes, por falta de referências mais diversas, no período de realização deste trabalho pelos estagiários de Artes Cênicas, buscamos referências em artistas como Pina Bausch, pois a coreógrafa trazia para nós a intenção de aproximação entre dança e teatro, que prevalecia sobre os resultados artísticos da mesma, que contavam sempre com corpos hegemônicos, altamente técnicos, magros. Porém, como dito, a aproximação de dança e teatro como interesse técnico e de linguagem foi apropriado por nós e possibilitava aos sujeitos, modos de expressarem suas questões em cena, para além da criação concreta de um personagem, tipicamente teatral.

 

Bausch fala de cenas fundadas no que “move as pessoas”, referindo-se a emoções ou feridas psíquicas, trajetórias privadas do corpo individual, que ela, fisicamente, mostra ao público através de um processo de criação onde o corpo se apresenta como núcleo dramático, fonte original de suas histórias recordadas. (CALDEIRA, 2009, p. 36)

 

Nesse sentido, no lugar dos longos textos que, muitas vezes produzidos por apenas uma pessoa a partir da “costura” dos materiais criativos gerados por todos, acabava resultando em dramaturgias confusas, passamos a experimentar uma prática processual pautada na experiência dos sujeitos, em suas memórias e desejos, vistos como matéria-prima para a cena teatral. Essa expressão, tanto individual, subjetiva quanto coletiva, era potencializada, ainda, pela utilização de objetos relacionais. Estes, mais do que apenas elementos mediadores entre corpos, são potentes, em suas diversas materialidades, para serem utilizados na produção de afetos, desejos, descobertas, são vistos como objetos de experimentação sensorial.

 

O objeto relacional não tem especificidade em si. Como seu próprio nome indica é na relação estabelecida com a fantasia do sujeito que ele se define. (...). Ele é alvo da carga afetiva e passional do sujeito, na medida em que o sujeito lhe empresta significado, perdendo a condição de simples objeto para, impregnado, ser vivido como parte viva do sujeito. (CLARK, 1980, p. 49)

 

Desta forma, norteado também pela proposição advinda da prática artística de Lygia Clark, o trabalho ganhou uma metodologia mais clara, que possibilitava experimentar de forma sensível o tema da metamorfose, ao partir não somente da potência de significação, acima citada, dada pelo indivíduo na manipulação do objeto, mas também da percepção do modo como o corpo, ao mesmo tempo que o objeto, é ressignificado nesta relação. Assim, seguindo algumas das proposições da artista plástica, foram experimentados, inicialmente, materiais que pudessem despertar o movimento, entre eles, elásticos, barbantes, malhas de tecido, peças de roupas cotidianas, bambolês e sacos plásticos.

Minha nova proposição é intimista. Dou um simples pedaço de plástico com sacos cosidos em suas extremidades e cada um faz a experiência que quiser, inventado proposições diferentes e convidando outras pessoas a participarem. O Tocar se exerce sobre os próprios corpos: eles podem ser dois, três ou mais. Seu número sempre cresce segundo o desenvolvimento celular que se tornará cada vez maior conforme o número de pessoas que participarem dessa experiência. Assim se desenvolve uma arquitetura viva em que o homem, através de sua expressão gesticular, constrói um sistema biológico que é um verdadeiro tecido celular [...]. O meio que vive o homem só existe na medida em que há esta expressão coletiva [...]. Trata-se de um abrigo poético onde habitar é equivalente a comunicar. (CLARK, apud SPERLING, 2008, p. 131)

 

Dentro dessa perspectiva prática, começamos a inserir, aos poucos, algumas informações que trilharam a criação da dramaturgia da encenação. Partindo de elementos temáticos – como as fases da metamorfose, ovos, lagartas, casulos e borboletas – começamos a improvisar cenas a partir do uso dos objetos. Passamos pela experimentação de roupas que, colocadas em grande quantidade sobre o corpo, criavam um casulo para aquecer a “lagarta” durante seu processo de transformação.

Desse modo, a ação de sair de dentro dos tecidos correspondia ao nascimento, às vezes como lagartas, às vezes como borboletas. Neste caso, as “borboletas” saiam voando, como balões coloridos. Experimentamos também fazer com que as lagartas andassem juntas, guiadas às vezes por cordões ou elásticos que traçavam o caminho. Os alunos, assim, descobriam um andar de lagarta rápido, que era criado na hora, como também seus instantes de calmaria, ou, ainda, maneiras de cuidar dos ovos, cobrindo-os, por exemplo, com tecidos de diversas texturas, entre outras experimentações. Ou seja, buscava-se pensar o corpo não apenas como receptor de informações e, sim, como uma potência expressiva e em constante descoberta.

 

O entendimento de que as linguagens são constituídas com corpo, com natureza gestual, possibilitam entender o movimento do corpo como gerador de linguagem, de comunicação. Atentar não somente para o que é oral e escrito, como tradicionalmente se tem feito, incita reconhecer o gesto, a imagem, a dança como elementos, configurações, ou outras linguagens, que comunicam, que instauram relações e interações (BERTÉ, 2011, p. 203).

 

O processo de criação, ao propor tal reflexão, gerava abertura de discussão e a percepção das várias possibilidades de comunicação presentes na prática contemporânea, para além de registros já estabelecidos tradicionalmente. Assim, na experiência aqui descrita, buscávamos investigar signos abertos que permitissem, por meio das imagens projetadas ou da expressão corporal, diversas leituras sobre uma mesma ação ou cena, uma vez que trabalhávamos uma criação teatral voltada, antes, para uma noção de expressão livre do que para uma ideia de representação.                        De fato, aconteceram  mudanças significativas na relação com as aulas de teatro, pois os alunos, cativados por possibilidades mais livres de expressão na relação coletiva e individual, com objetos e materiais, puderam sentir-se mais donos e presentes no discurso da encenação que, por sua vez, era expandido, polifônico e polimórfico por se tratarem de diversas vozes e formas que se relacionavam em uma mesma situação. Além disso, um dos pontos favoráveis para a realização da prática teatral é que, quando experienciado na sua função performativa (função em que os alunos participam como atores/performers/propositores no processo), promove a socialização entre os participantes num ambiente de cooperação e criação artística, bem como o interesse por se sentirem parte do processo. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo discute que, “[...] o teatro dramático tem como modelo a criação de uma ilusão, a representação de um cosmo fictício, o teatro pós-dramático se insere numa dinâmica de transgressão dos gêneros e abre perspectiva para além do drama” (2008, p. 223).                                                 

Por este viés, vale ressaltar que a encenação com os alunos e as alunas com deficiência se desenvolveu mais pelo viés da presença do que da representação; mais a experiência partilhada entre o coletivo do que a experiência transmitida; mais o processo do que o resultado em si; mais o estado de manifesto pela perspectiva da metamorfose do que a significação; por fim, mais impulsão de energia por meio de seus corpos do que a necessidade de transmitir uma informação.         

É importante lembrar que foi sugerido pelas professoras que fizéssemos relações possíveis entre a vida da borboleta e o ser humano: sobre as transformações que temos que passar, sobre a espera, proteção, desejo de voar, beleza, entre vários outros aspectos que surgiram durante as experimentações. Desse modo, eram alimentadas as possíveis relações entre sentimentos e situações presentes nesta metamorfose e que acontecem também em nossa vida enquanto seres humanos. Os diversos desafios, superações, mudança de espaços, de amigos, e pessoas em seu significado afetivo, corporal, espacial.        Essa percepção era acompanhada por vídeos, fotos, desenhos, memórias de uma metamorfose presente em nosso cotidiano, de modo a tentar desvincular um pouco a encenação apenas do aspecto concreto, biológico, da metamorfose vivida pela borboleta, e apontando para os significados e metáforas descritas acima, buscando não voltar para o conflituoso espaço de termos apenas vários “animais” ou “insetos” em cena. Aqui, trago parte da reflexão feita pelos envolvidos no processo, em especial as professoras, sobre as relações entre indivíduos e borboletas:

 

O processo criativo se apropriou de diferentes linguagens artísticas, como o teatro, a dança, a música e as artes plásticas para investigar o processo de Metamorfose das Borboletas. As atividades voltadas para a sensibilização das qualidades físicas, associadas à apropriação de ações pessoais, se convergiram em realizações coreográficas e materiais expressivos criados pelos próprios alunos no percurso da criação deste espetáculo. “De tudo que se transforma” representa, antes de tudo, uma transformação. Um eco do que fomos ontem, do que pensamos ser hoje e daquilo que desejamos para o futuro. Seres que se transformam a fim de transformar sua realidade. Ser corpo ao nascer - se descobrir, optar por um caminho e trilhar como uma lagarta, a passos lentos, buscando formas de se colocar no mundo. Renovando um ciclo, construir um casulo, um recolhimento necessário para se reinventar e assim, se transformar. Quando estamos borboletas, desafiamos o desejo de voar, um alento na plenitude de ser únicos, mas também iguais em nossas diferenças. Talvez o ser humano e a borboleta sejam tão próximos que ainda não nos demos conta disso. Que a poesia nos aponte o caminho, como já dizia o poeta Manoel de Barros “Eu penso renovar o homem usando borboletas" (PROGRAMA DA ENCENAÇÃO DE FINAL DE ANO 2013).

 A encenação resultante desse processo de criação colaborativa, acabou por se chamar “De tudo que se transforma”, talvez por influência da metamorfose ou mesmo do próprio processo, que estava em constante transformação.

Foi o momento de juntos encontrarmos elementos que pudessem auxiliar a relação da encenação com os espectadores. Além do programa, que buscava contar por quais caminhos passaria nossa história, criamos uma exposição, no hall de entrada do teatro, com trabalhos sobre o tema desenvolvido o ano inteiro por todas as docentes.                As ações realizadas durante a encenação eram simples, mas podiam desafiar o espectador e sua compreensão da obra, uma vez que, ao pensarmos o teatro contemporâneo como um gerador de experiências potentes e autênticas para os indivíduos, aceitamos também pensar em deslocá-los de suas percepções cotidianas. No caso do espectador, reafirmando a poltrona do teatro não mais como a poltrona da televisão – lugar em que se escolhe o que se vê em signos fechados e extremamente explicativos – mas buscando, neste processo, possibilitar leituras também sensoriais, advindas da relação do espectador com os elementos da encenação, como músicas, luz, figurinos, vídeos, entre outros.

Sobre esse caráter ativo da recepção no teatro contemporâneo, se aceitarmos a noção de Teatro pós-dramático: “[...] O espectador do teatro pós-dramático não é impelido a uma imediata assimilação do instante, mas a um dilatório armazenamento das impressões sensíveis com atenção flutuante”. (LEHMANN, 2007, p.145).

 Esse modo de percepção, mais dilatado, propõe ao espectador materiais para reflexão, para além de entretê-lo, como já fazem outros meios como a televisão.

Isso possibilitou que o público de “De tudo que se transforma”, descobrisse, mesmo com certo estranhamento, momentos extremamente interessantes e ainda não vistos em trabalhos anteriores, que eram menos experimentais, como a participação das pessoas com deficiência motora, ao estarem fora de suas cadeiras, realizada através de movimentos no solo, partituras, rolamentos e brincadeiras trabalhadas, em cena, junto aos estagiários de artes cênicas, de modo a comunicar com gestos, movimentos, para além de um texto que buscasse fazer rir ou que, ainda, pretendesse explicar tal liberdade do corpo.

Este processo trouxe, como reflexão sobre o trabalho do educador de teatro dentro da Educação Especial, a percepção da enorme potência das investigações do teatro contemporâneo, pois ao trazermos as práticas de grupos teatrais para nossos processos em Arte Educação, passamos a ter mais abordagens metodológicas que permitem não só explorar possibilidades inusitadas do fazer teatral na escola, como também, muitas vezes, desmistificar as práticas contemporâneas como um lugar elitizado, de difícil compreensão, passando a observá-las por uma ótica aberta, ampliada, e que visa fortalecer a relação de pertencimento dos participantes com a obra.

REFERÊNCIAS

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DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-13, fev. 2021.

DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0004


[1] O termo transcriação – cunhado por Haroldo de Campos para designar a operação de tradução poética – é utilizado nos estudos teatrais para referir-se à operação de adaptação de um texto a outros sistemas semióticos, principalmente no que diz respeito à passagem da literatura para o palco.