São Luís, patrimônio cultural entre ruínas, grafites e pichações: estética ou política?

    Marcus Ramusyo de Almeida Brasil

São Luís, patrimônio cultural entre ruínas, grafites e pichações:

 estética ou política?[1]

 São Luís, cultural heritage between ruins, grafites and picks: aesthetics or politics?

Marcus Ramusyo de Almeida Brasil

Doutor em em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) –

 ramusyo@ifma.edu.br - orcid.org/0000-0003-2675-1825

Resumo

O presente trabalho se propõe a interrogar, a partir de uma produção fotográfica e uma posterior digressão reflexiva, as relações existentes entre as ruínas do Centro Histórico de São Luís e os registros que, através de grafites e pichações/pixações, os jovens da periferia têm efetuado nas paredes, portas e janelas das casas históricas da capital do Maranhão, no Brasil. A metodologia utilizada para a produção e inventário das imagens da pesquisa se calca entre uma antropologia visual e uma antropologia da imagem. Do ponto de vista do modo de operar o pensamento, utilizo algumas ideias do filósofo Walter Benjamin (2012, 2009, 2013) sobre fotografia, rememoração e alegoria. Por fim, teço alguns comentários sobre os significados e potências estéticas/políticas dos grafites e pichações/pixações no Centro Histórico de São Luís – MA e a correspondência estabelecida com as ruínas do casario ali presente. O texto não se pretende revisionista dos temas relacionados ao grafite e pichações/pixações ao patrimônio, mas um ensaio crítico no tocante a como as artes visuais operam no contexto da correspondência entre abandono e apropriação do espaço público.

Palavras-chave: Arte e fotografia. Grafiteiros-São Luís (MA). Antropologia visual. Etnologia - Filosofia

Abstract

The present work proposes to interrogate, based on a photographic production and a later reflexive tour, the existing relationships between the ruins of the Historic Center of São Luís and the records that, through graffiti and “pichações/pichações”, young people from the periphery have carried out on the walls, doors and windows of historic houses in the capital of Maranhão, Brazil. The methodology used for the production and inventory of the research images is based on a visual anthropology and an anthropology of the image. From the point of view of the way of operating the thought, I use some ideas of the philosopher Walter Benjamin (2012, 2009, 2013) about photography, remembrance and allegory. Lastly, I produce some commentaries on the meanings and aesthetic/political powers of graffiti and “pichações/pichações” in the Historic Center of São Luís - MA and the correspondence established with the ruins of the houses present there. The text is not intended as revisionist of themes related to graffiti, pichações/pixações and heritage, but a critical essay regarding how the visual arts operate in the context of the correspondence between abandonment and appropriation of public space.

Keywords: Art and photography. Graffiti artists-São Luís (MA). Visual anthropology. Ethnology-Philosophy.

Recebido em: 29/03/2020

Aceito em: 19/11/2020


1 Primeiros Rastros

Figura 1 - Grafite arqueológico

 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Grafite_(arqueologia)

O grafite, tradução do termo ao português, é hoje em dia uma das artes urbanas mais conhecidas do século XXI. Desde um ponto de vista etimológico, a palavra grafitti é o plural de grafito, que significa rabisco. Sua origem deriva do latim graffiare, que quer dizer traçar sobre a superfície. Em grego, a palavra graphien significa gravar ou deixar rastro. A palavra graffiti passou a ser usada desde o século XIX, cunhada pelos arqueólogos da época, para se referirem às representações gráficas e escrituras gravadas sobre superfícies, a partir das mais diversas técnicas. (SÁNCHEZ, 2012) Considero que, na atualidade, essas chaves de leitura se completam com as práticas dos coletivos de jovens urbanos, passando a configurar uma das estéticas mais significantes nas paisagens das grandes cidades. As crônicas, denúncias, poéticas e textos expostos em lugares de passagem onde transitam os olhares e os corpos humanos em movimento, inscrevem novas formas de fruição estética e de estar-no-mundo. Porém, não é só isso, os grafites urbanos contemporâneos instauram uma dimensão autoral dos jovens na construção da visualidade compartilhada. Essa mediação comunicativa está estabelecida predominantemente pelas instituições de controle e poder, como o Estado e a publicidade, que possuem, aqui, na cidade, a hegemonia dos espaços e dos lugares de fala, sendo, os grafites, de alguma maneira, o lugar do contradiscurso e da contestação.

Por outro lado, também existe uma forte discussão sobre a institucionalização do grafite por parte do Estado, ou inclusive, pela publicidade, ambos se apropriam dessa manifestação para adotá-la aos seus discursos, ao mesmo tempo que o trabalho dos grafiteiros começa a ser mais valorizado. Enquanto isso, os grafiteiros menos afamados, por outro lado, são objetivo e vítimas de contínuas ações policiais. Em São Paulo, capital financeira do Brasil, o atual governador e à época prefeito, o empresário e apresentador de TV João Doria, promoveu uma trágica, antiética e antiestética gentrificação dos espaços da cidade, ao cobrir com tinta cinza alguns dos maiores grafites da América Latina. Considerados obras inestimáveis das artes urbanas do mundo, que localizavam e identificavam São Paulo como um dos lugares mais significativos no que se refere à prática dessa linguagem. Este ato desproporcional e fora de lugar do ex-prefeito / governador midiático causou uma forte onda de protestos e críticas. Ele tentou desculpar-se ao contratar grafiteiros para fazer novamente um grande mural de grafite, financiado, desta vez, com o dinheiro do Estado.

Figura 2 - Casarão abandonado no Centro Histórico de São Luís - MA

 Fonte: arquivo do autor.

2 Dimensões Políticas das Imagens

Só a fotografia mostra esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente instintivo. (BENJAMIN, 2012, p. 100-101)

As pichações/pixações se inscrevem em um contexto completamente marginal. Primeiramente se faz necessário distinguir entre “pichação” e “pixação”. Enquanto as pichações são inscrições com palavras legíveis nas paredes e murais dos espaços, a maioria das vezes com textos de crítica, sublevação e ironia, as pixações se constituem de tipologias e grafismos que só são decodificados por grupos de iniciados que tenham o nível de codificação suficiente para entender essas mensagens. São tipologias identitárias. Geralmente, pichadores e pixadores são desafiados por outros grupos de pichadores e pixadores para demarcar suas tags e mensagens nos espaços mais inacessíveis das cidades, seja por causa da altura dos edifícios ou pela dificuldade de aceder a alguns espaços, devido à extrema vigilância policial nas zonas centrais dos centros urbanos. Os pichadores e pixadores sempre desafiam, com sua coragem, a arquitetura das cidades e suas formas de controle, e, por isso, a conhecem tão bem.

Figura 3 - Porta e sacada de casa em ruína no Centro Histórico de São Luís - MA.

 Fonte: arquivo do autor.

3 O locus: Centro Histórico de São Luís - MA

São Luís é reconhecida pela UNESCO, desde 1997, como Patrimônio Cultural da Humanidade. Este título se deve pelo fato de albergar um sítio histórico que está caracterizado por aproximadamente 3000 propriedades preservadas pelo organismo de Patrimônio Histórico Estadual, e 1400 propriedades preservadas pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. O Centro Histórico está formado por peculiares casas de arquitetura colonial portuguesa (ANDRÉS, 2012). Depois de ter sido reabilitado há pouco mais de 20 anos, através de um projeto que durou mais de 10 anos, o sítio histórico se encontra em grave estado de abandono pelos donos dos casarios, órgãos e políticas públicas locais, estatais e federais. No entanto, o Centro Histórico de São Luís suspira vida. As escolas, repartições públicas, museus e centros culturais, o barulho das máquinas das pequenas gráficas, que compõem a paisagem sonora do lugar durante o dia, ditam o ritmo. À noite reina a zona do baixo meretrício, a venda de drogas, os bares, a música, a presença da polícia, a juventude, os “malucos”, a boemia e toda uma economia do turismo e do entretenimento que se retroalimentam e se conformam nessa ambiência/atmosfera.

Figura 4 - Pichação em detalhe, na porta de um casarão do Centro Histórico de São Luís - MA

 Fonte: arquivo do autor.

A arquitetura como obra de arte, tal qual se configurou no gótico e no barroco, como é o caso do sítio histórico de São Luís, se refere a toda uma ideia de civilização, ornamento e construção dos espaços, que proporcionam una experiência estética àqueles que, ao adentrar nesses ambientes, se deixam penetrar por sua dimensão sensorial. Para Diderot, a arquitetura é a maior de todas as artes, dado que as outras artes se exibem dentro de um edifício, objeto criado, portanto, pela arquitetura. Devido à crescente especulação imobiliária que supervaloriza as zonas mais modernizadas da cidade de São Luís, como a zona da Península da "Ponta da Areia" ou a do "Araçagi", onde estão os maiores condomínios privados da Ilha, as zonas mais centrais, onde está localizado o Centro Histórico, por exemplo, morrem (ou definham) por falta da procura do mercado imobiliário ou de atenção das autoridades. Os casarões antigos estão caindo ou em péssimo estado de conservação. A principal atividade econômica nas mansões do centro da cidade, que se convertem em ruínas, vem através de sua transformação em estacionamento para carros. A força devastadora do fordismo e do capitalismo passa por cima e por dentro das moradias do século XIX, atravessando as ruas e calçadas de pedra de lioz e pé-de-moleque trazidas diretamente da região de Sintra (Portugal). Para piorar a situação, o “Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN”, instituição que cuida da salvaguarda e fiscalização do patrimônio histórico brasileiro, quando há solicitações de mudanças nas estruturas dos casarões do Centro Histórico, exige uma extremada fidelidade para manter a arquitetura original em função das políticas de manutenção e conservação do patrimônio. Como o local não tem suficiente valor econômico para o mercado imobiliário e como alguns dos proprietários e moradores são de baixo poder aquisitivo, tais políticas inviabilizam as possíveis melhoras que poderiam ser realizadas nesses sítios. Para além disso, há a falta de políticas públicas e culturais voltados para as moradias do Centro Histórico. A desaceleração brutal de programas federais como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) Cidades Históricas, tirou uma das poucas esperanças de reabilitação urbana do Centro Histórico de São Luís. Processos de empobrecimento, desvalorização e ruína, surgidos por falta de políticas públicas efetivas de preservação, restauração, conservação e ocupação social dos espaços, põem em risco toda uma riqueza e beleza arquitetônicas, cujo valor histórico, artístico e cultural é inestimável. Esta riqueza poderia estar sendo convertida em valor para o bem turístico e cultural da cidade de São Luís, seguindo o exemplo de tantas outras cidades no Brasil e no mundo. Uma teoria e uma práxis crítica e propositiva da arquitetura deveria defender e prover mais usabilidade para os espaços do Centro Histórico, assim como constituir uma política pública de Estado que esteja dirigida a cuidar e possibilitar a concretização de moradias de qualidade, assim como promover atividades propriamente culturais nesses espaços históricos, onde memória e presente se entrelaçam, através de uma trama de reatualizações e releituras.

Figura 5 - Imagens e textos plasmados nas portas de casarões do centro histórico de São Luís - MA.

Fonte: arquivo do autor.

Figura 6 - Pichação de cunho político na parede de casarão do centro histórico de São Luís - MA

. Fonte: arquivo do autor.

4 Potências Estético-políticas: considerações (a)finais

A ideia aqui apresentada é que as pichações e grafites são significantes estéticos, gritos visuais dos excluídos na “carne” da cidade. A escolha do Centro Histórico como um espaço para tais escrituras, talvez, possa se dar pela percepção, inconsciente ou não, de que os centros das grandes cidades, assim como os próprios grupos sociais de grafiteiros e pichadores/pixadores, sofrem de abandono, negação de direitos e falta de equidade de oportunidades dentro das políticas públicas estatais e desse mundo meritocrático. Tais políticas poderiam inverter os valores ali impostos e reconhecer/valorizar as pessoas que vivem no Centro Histórico, proporcionando-lhes um mínimo de bem-estar.

Figura 7. Rorschach do grupo Risco Coletivo, em parede do casario do Centro Histórico de São Luís – MA

. Fonte: arquivo do autor.

Ao colocar as imagens fotográficas produzidas para este ensaio em perspectiva dialética, pode-se dizer que as pichações/pixações e grafites não entram em diálogo com as ruínas das casas históricas, mas que estabelecem com elas uma correspondência. Uma correspondência estética, política e também histórica. Porém, uma história das relações transversais e dispersas na tessitura do tempo, que se ressignificam no encontro entre o “velho” e o “novo”. Pois, como disse Benjamin: “Para que um fragmento do passado seja tocado pela atualidade não pode haver qualquer tipo de continuidade entre eles.” (2009, p. 512) Não há uma continuidade ou um diálogo, senão uma correspondência, uma alegoria possível. “Alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas.” (BENJAMIN, 2013, p. 189). Tanto que, nessa trama, uma é o suporte onde a outra se realiza: a parede da ruína e a pichação/pixação/grafite.

Figura 8. Rorschach do grupo Risco Coletivo, o descascado da parede se torna um elefante.D:\BACKUP O.S 3710\imagens\ROSCHARCH\17671216_1415741478498581_1337765216_n.jpg

Fonte: arquivo do autor.

O melhor exemplo da conexão entre esses dois universos histórico-temporais são as “Rorschach” (Figura 7), propostas pelo grupo “Risco”, artistas visuais da cidade de São Luís, cujas obras utilizam as marcas do tempo nas paredes das casas históricas, para inspirar a forma de seres animados que passam, assim, a compor parte da paisagem urbana e dar mais vida ao lugar. As pichações/pixações/grafites nas ruínas do Centro Histórico de São Luís são alegorias visuais do estado das coisas, alçados aos gritos dos excluídos, para quem a história sempre foi negada. Se o abandono e o desinteresse são a negação de ações afirmativas destinadas aos espaços públicos e às pessoas “comuns”, os grafites e as pichações/pixações são a negação dessa negação.

Figura 9. “O ornitorrinco”, Rorschach do grupo Risco Coletivo.

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Fonte: arquivo do autor.

REFERÊNCIAS

ANDRÉS, L. P. de C. C. São Luís: Reabilitação do Centro Histórico – Patrimônio da Humanidade. São Luís: IPHAN, 2012.

BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.

BENJAMIN, W.  Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BENJAMIN, W.  A origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

SÁNCHEZ, J. F. “Jofras”. Trepes, bombas y piezas: transgresiones diferenciadas. In: VALENZUELA, J. M. (org.). Welcome amigos to Tijuana: graffiti en la frontera. Tijuana: El Colef, p. 25 – 31, 2012.

DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-10, fev. 2021.

DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0006


[1] Artigo com apoio FAPEMA - Edital Cooperação Internacional (COOPI-07877/17)