Intervenções musicais no contexto hospitalar: humanização do cuidado

    Daniele Pincolini Pendeza, Beatrís Mengarda, Lucas Block Abich, Suzel Lima da Silva, Amara Lúcia Holanda Tavares Battistel

Intervenções musicais no contexto hospitalar: humanização do cuidado

 Musical interventions in a hospital context: humanization of care

Daniele Pincolini Pendeza

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) –

danielependeza@gmail.com -orcid.org/0000-0001-5827-6307

Beatrís Mengarda

Acadêmica do curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - beamengarda@outlook.com – orcid.org/0000-0003-4642-4397

Lucas Block Abich

Acadêmico do curso de Música e Tecnologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) -lucasblockabich@gmail.com –orcid.org/0000-0003-1521-0281

Suzel Lima da Silva

Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional e Tecnológica da  Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) suzellima2@gmail.com – orcid.org/0000-0003-1279-2781

Amara Lúcia Holanda Tavares Battistel

Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) - amarahb@gmail.com –

 orcid.org/0000-0002-7932-3659

Resumo

Baseado na política do HumanizaSUS, desde o ano de 2011 o Programa de Extensão Cuidado e Atenção ao Adolescente e Criança em Tratamento Oncológico (CAACTO), desenvolve atividades diversas junto à crianças e adolescentes acometidos por neoplasias. Em uma tentativa de atenuar os sofrimentos que se somam àqueles do diagnóstico e do isolamento que a vida hospitalar pode vir a causar, as intervenções musicais desenvolvidas semanalmente podem vir a ser um espaço de acolhimento e de promoção da saúde e do desenvolvimento humano. No ano de 2018, as intervenções cumpriram com seus objetivos de colaborar na humanização hospitalar e na proposição de um espaço educacional por meio da música. Essa experiência soma na formação dos alunos do Curso de Música no contexto educacional hospitalar, além de ser potente os momentos de trocas nas reuniões entre todos os integrantes do CAACTO, onde a interlocução teórico-prática para além do processo de adoecimento, permite a interdisciplinaridade na busca por melhores intervenções em benefícios de todos os envolvidos no programa.

Palavras-chave: Musicoterapia. Terapia ocupacional para crianças. Oncologia.  Hospitais infantis. Humanização dos serviços de saúde.

Abstract

Based on the HumanizeSUS policy since 2011, the Extension Program on Care and Attention to Children and Teenagers ongoing Onchologic treatment (CAACTO) has developed various activities with children and teenagers affected by neoplasms. To diminish suffering after diagnosis and treatment plus what hospital isolation may cause, weekly musical interventions certainly act as a pleasant interlude and promotes health and human growth. Repeated interventions during 2018 have accomplished the aim of hospital humanization and the construction of an educational space based on music. Music undergraduates enjoy this practice and it enriches the exchange of ideas during CAACTO meetings where theory and practice are discussed in order to search for interdisciplinarity actions and benefits for all involved persons.

Keywords: Music therapy.  Occupational therapy for children.  Oncology.  Children-Hospitals. Quality of health services.

Recebido em: 30/01/2020

Aceito em: 23/11/2020

1 INTRODUÇÃO

Desde o ano de 2011 o Programa de Extensão CAACTO – Cuidado e Atenção ao Adolescente e à Criança em Tratamento Oncológico (BATTISTEL, 2018) – desempenha ações dentro do contexto hospitalar no Centro de Tratamento de Crianças e Adolescentes com Câncer (CTCriaC) unidade de internação, e no Centro de Convivência Turma do Ique, do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Este programa objetiva articular ações de extensão com o ensino e a pesquisa na promoção da atenção integral à saúde das crianças e adolescentes em tratamento no serviço hematológico e oncológico no HUSM e de seus cuidadores e familiares.

Assim, por meio do programa, foi criada uma rede de cuidado que envolveu alunos voluntários dos cursos de Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Psicologia, Artes Visuais e Música. Esse quadro de participantes foi de grande importância, pois ao considerarmos que as crianças e seus familiares, vítimas de doença prolongada, necessitam de apoio físico, psicológico, social e educacional (PENGO; SANTOS, 2004), a rede multidisciplinar é fundamental na promoção da humanização hospitalar e potencialização do tratamento.

Foi a partir do mês de março de 2018 que o programa passou a contar com a presença de um grupo de alunos dos cursos de Música, tendo voluntários das áreas de Licenciatura em Música (2), Música e Tecnologia (1), Bacharelado em Violão (1) e Musicoterapia (1), sendo a participante musicoterapeuta egressa de outra universidade e os demais todos alunos da UFSM. Esses alunos passaram a realizar reuniões semanais para estudo e construção das intervenções musicais que seriam realizadas no CTCriaC. Além desses encontros específicos de formação, quinzenalmente também ocorreram encontros com os voluntários de todos os cursos, a fim de delinear planejamentos transdisciplinares e também trabalhar anseios e dificuldades que eventualmente ocorriam.

As intervenções musicais no contexto hospitalar podem ter diversos objetivos, tais como recreação, a promoção da saúde e a educação. Considerando sua grande variedade de possibilidades, juntamente com a ludicidade que lhe é inerente, mostra-se como uma ferramenta potente no que tange à humanização hospitalar. Esse contexto vem ao encontro da Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2013), também conhecida como HumanizaSUS, ao prever a mudança na gestão e no cuidado no ambiente hospitalar, de forma coletiva e multidisciplinar, a fim de “incluir para estimular a produção de novos modos de cuidar e novas formas de organizar o trabalho” (BRASIL, 2013, p.04). Além disso, as pessoas que se encontram hospitalizadas necessitam ser atendidas de forma integral para que ocorra sua reabilitação, e fatores como o bem-estar físico, psicológico, social e educacional devem ser considerados (PENGO; SANTOS, 2004).

Quando crianças e adolescentes são acometidos por neoplasias, suas vidas sofrem mudanças drásticas e globais, havendo o afastamento de suas famílias, amigos, escola, trabalho, entre outros. Em uma tentativa de atenuar os sofrimentos da separação, que se somam àqueles do diagnóstico e do isolamento que a vida hospitalar pode vir a causar, as intervenções musicais no ambiente hospitalar podem vir a ser um espaço de acolhimento e de promoção da saúde e do desenvolvimento humano.

        Ao olharmos para além da doença, consideramos a integridade dos indivíduos que estão hospitalizados, e nesse sentido a humanização hospitalar se torna possível e até mesmo óbvia. Portanto, o trabalho desenvolvido pelo Programa CAACTO, que tem como objetivo geral de articular ações de extensão com o ensino e a pesquisa na promoção da atenção integral à saúde das crianças e adolescentes em tratamento no serviço hematológico e oncológico no HUSM (CTCriaC) e de seus cuidadores e familiares na perspectiva da Política Nacional de Humanização da assistência em saúde, entendeu a importância de realizar intervenções musicais e atividades integrando a música com brincadeiras, jogos e oficinas com crianças e adolescentes e os seus familiares.

        O presente artigo tem como intuito apresentar as ações desenvolvidas no programa, que se configura como um projeto de extensão que visa a humanização hospitalar, através de um relato de nossas experiências que ocorreram durante o ano de 2018. Os dados apresentados são uma análise documental, provinda de nossos relatórios semanais, construídos de forma conjunta entre os participantes, que visavam relatar o que ocorria durante as intervenções, bem como planejar as ações a curto prazo, com as ações semanais e a longo prazo, no caso dos recitais. Primeiramente serão apresentados alguns benefícios do uso da música no contexto hospitalar e, após, o relato de nossas ações propriamente ditas.

2 BENEFÍCIOS DO USO DA MÚSICA

Desde a Antiguidade o ser humano percebe o impacto positivo da música em seu corpo e mente e a usa como instrumento de cura e bem-estar (OLIVEIRA; GOMES, 2014). Porém, foi apenas com a Segunda Guerra Mundial que o uso da música na saúde passa a ser de interesse da medicina, pois foram observados resultados progressivos e evolutivos naqueles que passavam por sessões de música nos hospitais (GODOY, 2014). A partir de então a Musicoterapia foi consolidada como uma área com métodos e técnicas específicas, bem como foram desenvolvidas outras atividades musicais direcionadas ao setor da saúde, como a música em medicina e intervenções musicais realizadas por músicos profissionais. Atualmente, com o advento das neurociências, sabe-se que a música, em suas diversas formas de utilização, traz benefícios significativos para o cérebro e para o desenvolvimento global dos seres humanos, pois atividades musicais como compor, tocar algum instrumento e escutar música estimulam diversas áreas do cérebro, sendo ela coadjuvante no aprimoramento de funções cognitivas (LEVITIN, 2013).

Abrams et al. (2013), no intuito de identificar as respostas neuronais de indivíduos típicos ouvindo música, realizaram um dos primeiros trabalhos que indicam como nossa musicalidade, identificada como a habilidade de integrar componentes musicais em um todo coerente e entendido como música, afeta nosso sistema nervoso. Os autores descobriram que a música e as respostas cerebrais entram em sintonia no momento das audições, havendo ativação de diversas áreas, como no mesencéfalo, tálamo auditivo bilateral, córtex de associação auditivo-auditivo primário, estruturas lateralizadas à direita no córtex parietal e regiões de planejamento motor do cérebro. Estes efeitos foram maiores para a música natural, ou seja, estímulo musical como um todo, em comparação com condições de controle pseudo-musicais (elementos musicais isolados).

Pesquisas realizadas com músicos demonstraram que este grupo apresenta algumas vantagens globais, em comparação com não músicos, como redução de problemas auditivos desenvolvidos por causa do envelhecimento (PARBERY-CLARK et al., 2011; ZENDEL; ALAIN, 2012), reforço da capacidade auditiva (STRAIT & KRAUS, 2011; STRAIT, KRAUS, PARBERY- CLARK, & ASHLEY, 2010) e aumento de memória auditiva e verbal (CHAN; HO; CHEUNG, 1998; HO; CHEUNG; CHAN, 2003).

Nos hospitais, a música se mostra de grande valia quando utilizada na redução da dor e promoção do bem-estar dos usuários. Segundo Silva Junior (2008),

A música é benéfica em pacientes com dor, alivia a ansiedade, reduz os batimentos cardíacos, ameniza a pressão arterial e o sofrimento pós-cirúrgico (...), auxilia na redução dos distúrbios de humor em pacientes nos tratamentos com altas doses de quimioterapia, seguidos de transplante autólogo de células-tronco. (SILVA JUNIOR, 2008, p.18).

Maslar (1986) aponta que a música pode agir no mecanismo de controle ou até mesmo inibir a sensação de dor do paciente. Tocar algum instrumento, cantar e escutar uma música faz com que o cérebro passe a ter mais foco na atividade que está realizando e, de certa forma, passa a ignorar a dor. Joly e Alliprandini (2008) apontam que a música no ambiente hospitalar facilita a aceitação de situações desagradáveis como a internação e rotina do hospital.

Em um estudo feito em Enfermarias de Clínica Ortopédica do Hospital Central do Exército (HCE) e no Centro de Terapia Intensiva (CTI) em hospital do Rio Grande do Sul, os dados apontaram que a música reduz o sentimento de solidão fazendo com que os pacientes sintam prazer e possam se distrair do ambiente hospitalar. Nesse estudo, as músicas eram escolhidas de acordo com a vontade do paciente, fazendo-o recordar lembranças de antes da internação e valorizando suas identidades sonoras. Com a separação, por muitas vezes de longo período, dos familiares e pessoas de convivência do paciente, o uso de música aumentou a convivência entre os pacientes, criando um sentido positivo de coletividade e suporte no ambiente hospitalar (BERGOLD et al., 2009).

Além de atividades musicais como ouvir e tocar, a composição também é utilizada como intervenção musical, podendo trabalhar a criatividade, autonomia e exploração de sentimentos e anseios. Os pacientes podem expressar seus sentimentos com a criação de músicas por meio de composições próprias ou paródias de músicas conhecidas. Baker e MacDonald (2013) afirmam que os pacientes sentem uma sensação de realização e satisfação nesse tipo de atividade, sentindo-se realizados e mais confiantes ao poder expressar seus sentimentos através das músicas criadas por eles, por esta ser uma forma considerada menos direta de se expressar.

Tendo esses estudos como base, realizamos encontros formativos a fim de identificar as necessidades a serem desenvolvidas dentro do Programa CAACTO, buscando a promoção e humanização da saúde, bem como a participação ativa dos usuários do CTCriaC, conforme relatamos a seguir.

3 AS INTERVENÇÕES MUSICAIS NO PROGRAMA CAACTO

As intervenções musicais no Programa CAACTO tinha frequência de duas vezes por semana, na sala de convivência do CTCriaC. No momento de nossa chegada, um de nós passava pelos protocolos de segurança para adentrar nos leitos e convidar todos os usuários para participar da intervenção no espaço coletivo. Aqueles que não tinham interesse eram respeitados em sua individualidade, mas diversos foram os momentos que a música “invadiu” os leitos e tanto usuários como demais profissionais que estava no CTCriaC se dirigiram à sala de convivência para participar das atividades, mesmo que brevemente.

Apoiados na Política Nacional de Humanização de Assistência em Saúde (BRASIL, 2013) e sabendo-se da importância do brincar e do lúdico durante a infância (BRASIL, 2016), entende-se como necessário as propostas de atividades musicais que têm sido apresentadas aos pacientes e seus acompanhantes que estão expostos a esse ambiente de estresse, que os tira de sua rotina, e produz sentimentos de medo e incerteza. O trabalho realizado foi embasado por teorias, métodos e atividades relacionadas aos estudos de neurociência, musicoterapia e de educadores musicais, através de uma proposta de vivências musicais lúdicas e interativas (KOELLREUTTER, 1988; SWANWICK, 2003). Assim, foram realizadas diversas atividades musicais, como música e movimento, histórias sonorizadas, dramatização com fantoches, paródias, criação de instrumentos musicais e recitais. Adaptações com relação às teorias estudadas foram realizadas a fim de adequar as intervenções às necessidades e às condições fisiológicas das crianças e adolescentes em tratamento, bem como para envolver os seus pais e cuidadores.

O primeiro instrumento musical privilegiado nas intervenções foi o corpo, e além da estimulação do canto coletivo, utilizamos atividades de movimento e de percussão corporal. Considerando que o ambiente hospitalar e a condição de saúde dos pacientes exigem adequações quanto à realização de movimentos, estes foram realizados de forma simplificada, de forma a manter todos usuários bem acomodados em poltronas e sofás para evitar o esforço físico excessivo e incluir aqueles com dificuldades de mobilização.

Podemos utilizar como exemplo o dia em que realizamos uma atividade com uma corda, onde todos sentados, segurando a corda, realizavam movimentos no ritmo da canção, e a movimentavam de acordo com o que a letra da música solicitava. Esta atividade foi recebida com grande entusiasmo, pois todos puderam se movimentar e participar. Outras atividades também foram pensadas dessa maneira, como a percussão corporal baseada no ritmo da canção Borboletinha (música infantil), onde todos ficavam sentados, batiam palmas, estalavam dedos, batiam os pés no chão, e faziam sons com palmas nas coxas. A exploração corporal vem ao encontro de Mantovani (2009, p.20) que nos diz que:

O corpo brinca, corre, dorme, canta, chora, pula, dança. Não pensamos sem um corpo, nada fazemos sem o corpo e sem ele tampouco podemos ser. Aprendemos com seus movimentos, suas atitudes, sua força e suas dores. Sentimos cada parte do nosso corpo, assim como podemos vê-lo, e aprendemos a ver o mundo por meio dele. Ouvimos e sentimos as vibrações com todo o nosso corpo. Temos nele nosso único bem real, que nos acompanhará por toda a vida (MANTOVANI, 2009, p.20).

É importante citar que muitas vezes tivemos que mudar o planejamento pelo fato de o ambiente hospitalar ter grande rotatividade dos seus usuários, mesmo no setor de internação, sendo assim, nossas intervenções poderiam passar de uma atividade com músicas infantis, para atividades com canções de Animes ou gêneros como o Sertanejo, que eram populares no momento, e que consideravam os interesses dos usuários que estavam presentes.

Segundo Bussotti, Trajano e Vendramim, (2009), aproveitamos a oportunidade de propiciar às crianças, adolescentes e familiares uma distração através da música, uma forma de rotina lúdica, que traz consigo brincadeiras, e jogos, que podem ser benéficos para a sua saúde. Por conta disso, utilizamos a música como “um recurso para humanizar o ambiente hospitalar” (BERGOLD et al., 2009, p.02), ajudando assim na interação social, e na comunicação. É por isso também, que realizamos atividades em grupo, onde expomos e compartilhamos as músicas que mais gostamos, e cantamos todos juntos, com diversos estilos e gêneros musicais se contrapondo em um mar de lembranças de acontecimentos vivenciados em suas casas, escolas, em seus controversos ambientes em que estão continuamente vivendo. Essas lembranças e compartilhamentos de memórias, envolvidas e trazidas pelas músicas são de total importância para a convivência e reestruturação emocional dentro do hospital, pois, assim como relatado no trabalho de Gattino, Silva e Moura (2016, p.05), “após as atividades musicais de tocar, cantar e ouvir música, os pacientes relataram sentimentos de emoção, alívio e alegria”.

Para garantir a sensação de compartilhamento de sentimentos e emoções, utilizamos a dramatização com fantoches, que cria nos participantes uma liberdade de expressão através do brinquedo projetivo. Nessa proposta as crianças podem falar de seus anseios através dos personagens, colocando-se no lugar do fantoche, e externalizando seus medos e aflições, gerando assim uma relação entre seus sentimentos e ânsias.

Ainda dentro do contexto de histórias, realizamos atividades de histórias sonorizadas, onde o contador realiza e desenvolve a história, ao mesmo tempo que realiza sua sonoplastia, convidando os ouvintes a contribuírem som a produção sonora e dramatização.  Essas atividades foram relevantes para a socialização e comunicação daqueles que estavam conosco na intervenção, pois até mesmo os usuários mais isolados, que comumente não gostavam de participar, contribuíam na construção das histórias.

Outra atividade utilizada para promover a participação e a socialização das crianças e adolescentes, foi a criação de instrumentos musicais feitos com materiais recicláveis. Brito (2003, p. 69) nos fornece algumas informações positivas ao realizar essa atividade, pois “a construção de instrumentos estimula a pesquisa, a imaginação, o planejamento, a organização, a criatividade”.

A construção de instrumentos musicais ocorreu em dois momentos, sendo que no primeiro dia foram confeccionados instrumentos e no dia seguinte estes foram utilizados para tocar e cantar músicas escolhidas pelos usuários. Todos os que fizeram parte dessa proposta, em especial os familiares e cuidadores, mencionaram os efeitos positivos para o bem-estar, alegria e saúde emocional dos participantes ao poderem realizar propostas ativas e envolventes, que levam novidade para o ambiente da internação hospitalar. A atividade teve continuidade mesmo após a despedida dos músicos, pois os instrumentos foram guardados na sala de convivência, para que os usuários pudessem continuar brincando e tocando, ampliando assim o ambiente de intervenção.

Outra atividade de grande importância para a promoção da humanização e da saúde no ambiente hospitalar que merece ser menciona, refere-se à criação de uma paródia da música Dona Maria, do cantor Thiago Brava, sendo esta uma das mais pedidas durante as intervenções. A criação da letra desta paródia se deu através de um momento de conversação e descontração. As crianças, adolescentes e seus cuidadores estavam um pouco tímidos no início, então, começamos a perguntar o que elas gostavam de fazer, quais suas atividades favoritas, sua comida preferida, etc. A partir desse brainstorm, os participantes foram criando frases e externalizando seus desejos e sentimentos, culminando na letra da paródia a seguir:

“A vida é bela.

Ir ao jardim regar as flores e plantas.

Parte da música fica bela.

Paz nos nossos caminhos.

Seguir nossos caminhos.

Passando por isso, e seguindo nossos caminhos, para melhorar e poder ir embora.

Para brincar de bola e pega-pega.

Tratar os peixinhos, e cantar.

Cantando bem melhor. ”

É possível perceber que, apesar das dificuldades que os usuários estavam passando, eles ainda possuíam a esperança de encontrar um caminho melhor, constituído de paz e de retomada dos planos que foram adiados devido ao surgimento da doença. Muitas referências à natureza foram feitas, como cuidar de flores, plantas e peixes. Isso reflete o perfil de grande parte dos usuários que são provenientes de cidades do interior da região central do Rio Grande do Sul, e que tem o HUSM como hospital referência. Por isso, muitos deles estão há quilômetros de suas residências e tendo contato com a maioria dos parentes e amigos de forma remota, pois além da distância, questões financeiras também são cruciais. Tanto as crianças e adolescentes internados, quanto seus familiares e cuidadores encontram-se em isolamento e em estado de vulnerabilidade, pois questões sociais se somam àquelas da saúde, comprovando a necessidade de um espaço de escuta e de ressignificação de suas vivências, sentimentos e emoções.

Algumas atividades foram planejadas e realizadas de acordo com datas comemorativas do calendário a fim de tornar o cotidiano hospitalar mais alegre e próximo ao mundo extra-hospitalar. Podemos citar como exemplo a comemoração ao dia do Gaúcho, evento de grande importância para a tradição local. No dia destinado à atividade todos os integrantes das intervenções musicais foram vestidos com a indumentária gauchesca, o repertório escolhido priorizou musicais tradicionalistas, bem como a utilização de alguns instrumentos típicos, como a gaita de botão. Realizamos uma intervenção diferente, simulando um baile gaúcho, tocámos e cantávamos, possibilitando um momento de descontração. Esta atividade nos proporcionou dupla gratificação, tanto e principalmente pela alegria, sorrisos, coral de vozes e até mesmo algumas lágrimas de alguns acompanhantes e adolescentes que revelaram sentir falta de casa, quanto pela possibilidade de a música os transportar emocionalmente para suas tradições e cultura.

Ainda em relação às datas festivas, o dia da criança tem destaque especial, pois foram desenvolvidas atividades durante toda a semana do dia 12 de outubro. Destacamos a abertura da Semana da Criança com o Recital intitulado Cantando AfeTO, organizado por todos os integrantes do Programa CAACTO, e coordenado pela líder do grupo dos alunos da música. Além dos estudantes de música participantes do programa, contamos com a participação de outros alunos do curso de Música da UFSM, que se dispuseram a apresentar músicas populares e eruditas para animar as festividades. Neste recital aconteceram apresentações de grupo de violões, flauta transversa, coral e bandas. A abertura contou com a presença do grupo de Terapia Assistida por Animais, com a canina Pepê, integrante do grupo Afago Pet Terapia, e sua tutora. Pepê entrou desfilando e “dançou” a música de abertura do recital. Ela também faz parte das intervenções do Programa CAACTO, e para a sua participação em um ambiente musical ser possível, devido à sensibilidade auditiva dos cães, ensaios foram realizados e instrumentos musicais foram selecionados a fim de não ferir a audição ou assustar Pepê.

Na semana da criança foram realizadas intervenções especiais na sala de convivência, como sessão de cinema, brincadeiras, uso de fantasias e o desfecho contou com um grupo de praticantes de Rapel, entre eles um ex-paciente jovem adulto em remissão de um linfoma. O grupo de quatro pessoas vestidos de super-heróis e heroínas, desceram pelas janelas dos quartos das crianças e adolescentes e sala de convivência, em seguida interagiram com os usuários e distribuíram brinquedos.

Para encerrar nossa participação no programa no ano letivo de 2018, realizamos uma festa de encerramento, onde aconteceu um recital com músicas natalinas, com a participação de um Papai Noel, lanches especiais (produzidos pela equipe de nutrição do CTCriaC) e entrega de presentes, frutos de doações da comunidade.

Finalizamos assim um ano com diversas experiências, comprometimento, música, e sensação de dever cumprido.  Tudo isso nos faz crer que cada vez mais as intervenções musicais estão sendo observadas e aceitas em hospitais, pois a melhora na saúde não é somente visível no olhar dos acompanhantes, mas também no olhar clínico dos profissionais da saúde e especialistas no assunto, o que nos traz grande entusiasmo para seguirmos com o Programa CAACTO e ampliarmos nossas ações nos próximos anos.

4 CONCLUSÕES

Durante o ano de 2018 desenvolvemos intervenções musicais que consideraram a socialização, o brincar, a apreciação musical de suas canções preferidas e a criação musical por meio de temas do interesse dos usuários e familiares. As intervenções propiciaram não apenas a humanização hospitalar, mas também humanização e crescimento de todos os voluntários que ali trabalharam. Foi necessário muito estudo e reconstrução de nossas individualidades, a fim de compreender o que é a vida de uma família que passa pelo tratamento do câncer, e está afastada de sua rotina, familiares e amigos.

Assim, conclui-se que as intervenções musicais dentro do CTCriaC têm cumprido com seus objetivos de colaborar na humanização hospitalar e na proposição de um espaço educacional por meio da música. Além disso, este espaço tem sido de grande importância na formação dos alunos do Curso de Música integrantes do projeto, pois temos a possibilidade de experienciar possibilidades de atuação profissional no contexto educacional hospitalar. Soma-se a isso os momentos de trocas nas reuniões entre todos os integrantes do CAACTO fase II, que fomentam a interlocução teórico-prática para além do processo de adoecimento, pois permite a interdisciplinaridade na busca por melhores intervenções em benefício de todos os envolvidos no programa.

Tivemos dificuldades, especialmente no início da implementação do grupo de intervenções musicais, no que se refere ao estudo e conhecimento das peculiaridades do ambiente hospitalar. Com exceção do curso de Musicoterapia, que estuda diretamente esse ambiente, os demais Cursos de Música envolvidos no programa não têm em sua base curricular conteúdos aprofundados sobre os efeitos que a música oferece para a saúde. Ainda, na UFSM não existe o curso de Musicoterapia, o que gera uma falta de profissionais para atuação e implementação de projetos como o relatado nesse trabalho. Acreditamos que tanto musicoterapeutas, alunos dos cursos de música e tecnologia, bacharelados e licenciatura em Música têm muito o que colaborar mutuamente para a promoção da saúde, atuando de forma transdisciplinar entre si e com os demais profissionais do ambiente hospitalar. Porém, para isso ser possível, é necessária a fomentação de discussões, pesquisas e espaços para prática tanto hospitalar, quanto em outros ambientes de promoção à saúde. A UFSM é um laboratório incrível para essas ações, pois, dentro de suas instalações, existe o hospital, setores de promoção de saúde mental para profissionais e estudantes, bem como salas de aula e laboratórios diversos de extensão universitária.

A rotatividade dos usuários também se mostrou como uma dificuldade para o nosso grupo, especialmente no início das intervenções, mas a partir de estudos e de trabalhos de discussão conjunta, fomos encontrando alternativas e “cartas na manga” para lidar com essa situação. Por fim, salientamos a necessidade de pesquisas dentro da área e não apenas relatos como esse aqui proposto, que, metodologicamente, mostra-se limitado, a fim de identificar quais são as melhores atividades a serem desenvolvidas nesse ambiente, bem como seus benefícios e possíveis e feitos iatrogênicos, contribuindo, assim de forma mais sólida para a humanização hospitalar e a promoção da saúde integral dos usuários.

REFERÊNCIAS

ABRAMS, D. A.  et al. Inter-subject syncronization of brain responses during natural music listening. European Journal of Neuroscience, Oxford, v. 37, n. 9,  p. 1458-1469, may 2013.

DOI: 10.1111/ejn.12173 . Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ejn.12173. Acesso em:  30 mar. 2019.

BAKER, F. A.; MACDONALD, R. A. R., identity, achievement, satisfaction and ownership during therapeutic songwriting experiences with university students and retirees. Musicae Scientiae, California, v. 17, n. 2, p. 131– 146, 2013. DOI: 10.1177/1029864913476287.

BATTISTEL, A. L. H. T. Caacto fase II: Cuidado e atenção ao adolescente e à criança em tratamento oncológico.  Santa Maria, 2018. Portal de Projetos UFSM: https://portal.ufsm.br/projetos/publico/projetos/view.html?idProjeto=59679. Acesso em: 05 ago. 2019.

BERGOLD, L. B. et al. A utilização da música na humanização do ambiente hospitalar interfaces da Musicoterapia e Enfermagem. Revista Brasileira de Musicoterapia, Brasília,  ano 11, n. 9, p. 01-12, 2009. Disponível em: http://www.revistademusicoterapia.mus.br/ano-xi-numero-9-2009/. Acesso em: 21 dez. 2019.

BRASIL. Ministério da Educação.  Resolução CNE/CEB nº 2, de 10 de maio de 2016 . Define Diretrizes Nacionais para a operacionalização do ensino de Música na Educação Básica. Brasília : MEC, 2016. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=34011. Acesso em: 21 dez. 2019

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de Humanização- PNH. Brasília,  2013.  Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf. Acesso em: 05 ago. 2019.

BRITO, T. A . de. Música na educação infantil.  São Paulo : Ed. Peirópolis, 2003.

BUSSOTTI, E. A; TRAJANO, C; VENDRAMIM, P. A música e a criança hospitalizada. In: LEÃO, E. R. Cuidar de pessoas e música: uma visão multiprofissional. São Caetano do Sul : Ed. Yendis, 2009.

CHAN, A. S.; HO,Y.-C.; CHEUNG, M.-C.  Music training improves verbal memory. Nature, Inglaterra,  v. 396, n. 6707, p.128,  1998.   DOI: https://doi.org/10.1038/24075. Disponível em: https://www.nature.com/articles/24075. Acesso em: 05 out. 2019

GATTINO, G. S.;  SILVA, L. C. da; MOURA, A. Musicoterapia e educação musical no contexto hospitalar: aproximações e distanciamentos. Revista InCantare, Curitiba,  v.1, n. 7, p. 1-12, jan./jun. 2016.  Disponível em: http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/incantare/article/view/822. Acesso em: 17 abr. 2019.

GODOY, D. A. Musicoterapia, profissão e reconhecimento: uma questão de identidade, no contexto social brasileiro. Revista Brasileira de Musicoterapia, Brasília,  ano 16, n. 16 , p. 06-25, 2014. Disponível em: http://www.revistademusicoterapia.mus.br/ano-xvi-numero-16-2014/ . Acesso em: 21 dez. 2019.

HO,Y.-C.; CHEUNG, M.-C.; CHAN, A. S. Music training improves verbal but not visual memory: cross-sectional and longitudinal explorations in children. Neuropsychology, Washington, v. 17, n. 3, p. 439–450, jul. 2003. DOI: 10.1037/0894-4105.17.3.439. Disponível em: https://psycnet.apa.org/fulltext/2003-99630-015.html. Acesso em: 30 mar. 2019.

JOLY, I. Z.; ALLIPRANDINI, S. F. Práticas pedagógicas e musicais na comunidade: uma experiência em um hospital. In:  ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, 17., São Paulo, 2008. Anais [...]. São Paulo. Diversidade musical e compromisso social: o papel da educação musical. São Paulo: ABEM, 2008. p.01-06. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/view/6919387/praticas-pedagogicas-e-musicais-na-comunidade-uma-abem. Acesso em: 01 nov.2019.

KOELLREUTTER, H. J. O ensino da música num mundo modificado. In: KATER, C. (ed.)  Cadernos de estudo : educação musical 6.  Belo Horizonte : Atravez,1988. p. 37-44. Disponível em: https://www.carloskater.com.br/caderno-de-estudos. Acesso em: 05 ago. 2019.

LEVITIN, D. J. Neural Correlates of Musical Behaviors A Brief Overview , Music Therapy Perspectives, Estados Unidos,  v. 31, n. 1, p. 15–24, 1 jan. 2013.  DOI: https://doi.org/10.1093/mtp/31.1.15. Disponível em: https://academic.oup.com/mtp/issue/31/1. Acesso em: 17 abr. 2019.

MANTOVANI, M. O movimento corporal na educação musical: influências de Émile Jaques-Dalcroze. 2009. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes, 2009. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/95169. Acesso em: 01 set. 2019.

MASLAR, P. M.The effect of music on the reduction of pain: A review of the literature. The Arts In Psychotherapy, v.13, n. 3, p. 215-219, 1986. DOI:  https://doi.org/10.1016/0197-4556(86)90046-8 . Disponível em:  https://www.sciencedirect.com/journal/the-arts-in-psychotherapy/vol/13/issue/3. Acesso em: 17 abr. 2019

OLIVEIRA, C. C. ; GOMES, A .Breve história da musicoterapia, suas conceptualizações e práticas. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO- SPCE, 12., 2014, Portugal. Atas [...]. Portugal : SPCE, 2014. p. 764-774 Disponível em: http://www.spce.org.pt/assets/files/SPCE2_EIXOS_BOOK-CC1.pdf. Acesso em: 01 nov. 2019.

PARBERY-CLARK, A. et al. Musical experience and the aging auditory system: implications for cognitive abilities and hearing speech in noise. PLOS ONE, v. 6, n. 5, e18082, May 2011. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0018082. Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0018082. Acesso em: 10 maio 2019.

PENGO, M. M. S. B.; SANTOS, W. A. O papel do terapeuta ocupacional em oncologia. In: DE CARLO, M. M. R. do P.; LUZO, M. C. de M (org.). Terapia ocupacional: reabilitação física e contextos hospitalares. São Paulo: Roca, 2004. p. 233-255.

SILVA JÚNIOR, J. D. da. A utilização da música com objetivos terapêuticos: interfaces com a Bioética. 2008. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal de Goiás, Escola de Música e Artes Cênicas, Goiás 2008.

STRAIT, D. L.; KRAUS, N. Can you hear me now? Musical training shapes functional brain networks for selective auditory attention and hearing speech in noise. Frontiers in Psychology, Suiça, v. 2, n. 113, 2011.  DOI: 10.3389/fpsyg.2011.00113. Disponível em:  https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/issues/197265/. Acesso em: 01 ago. 2019.

SWANWICK, K. Ensinando Música Musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.

ZENDEL, B. R.; ALAIN, C. Musicians experience less age-related decline in central auditory processing. Psychology of Aging, Washington,  v. 27, n. 2, p. 410–417, 2012. DOI: 10.1037/a0024816. Disponível em: https://psycnet.apa.org/fulltext/2011-20240-001.html. Acesso em: 30 mar. 2019.

DAPesquisa, Florianópolis, v. 16, p. 01-15, fev. 2021.

DOI: https://doi.org/10.5965/18083129152021e0009